Sobras de um amor… parte II

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            Assim que Eleanora se acomodou no banco traseiro do automóvel blindado que era utilizado pelos pais da arquiteta, Angélica deu ordens aos motoristas para que não saíssem da rota em hipótese alguma. Mesmo que a mãe implorasse para pararem em algum lugar, não deveriam atendê-la. Se dessem ouvidos a ela, todos seriam demitidos. “- Quem paga os salários deles é o Jô, portanto, farão exatamente o que eu mandar. Agora vai lá ficar com os seus pretos. Só quero ver onde essa história vai parar. Não quero essa gente dentro de minha casa com intimidades”, berrou a matriarca da família.

A arquiteta fingiu que não escutou, mas era bom se preparar. A mãe não ia deixar barato aquela confusão na sala do proprietário do jornal. “Acho que com a minha ordem expressa, o motorista e os seguranças não mudarão a rota”, pensou Angélica se dirigindo ao seu carro, onde Amadeu e Márcio a esperavam. O jornalista estava apreensivo, pois sabia que a senhora, toda poderosa, não pararia por ali e recordou o que Tarsilha tinha lhe dito naquela conversa duas noites antes e naquela despedida lá no Bar da Net.

– Eu sei que tua mãe quer o meu couro e não vai sossegar enquanto não me vir pelado correndo na rua principal dessa maldita cidade esquecida por deus e governada pelo tridente dos infernos. Deixe-me em casa, preciso sair logo daqui, antes que minha vida vire do avesso, mais do que já está. Agora eu entendo porque Tarsila desapareceu, sem deixar vestígios.

“- Você não vai a lugar algum até termos uma conversa. E chega disso e daquilo. Parece uma criança chorando que quer logo o brinquedo, mas a mamãezinha não quer comprar”, vociferou a arquiteta.

– Não fale assim com o meu amigo, Angélica. Eu não te falei Márcio que ela é igualzinha a Rainha branca e por isso a chamo de Rainha também, só que número 2. Vamos descer nos dois desse carro, mesmo que esteja em movimento. Prefiro me esfolar todo do que ficar ouvindo os insultos de dona Eleanora em miniatura fantasiada de Senhora dona do baile. A Angélica só quer peitar minha mãe para fazer charme e dizer que é independente, mas basta eles baterem o pé para ela correr e se esconder em baixo da cama. Fez muito isso quando éramos crianças.

– Tudo bem Amadeu. Não vamos alongar mais isso. Eu vou com vocês até o apartamento de sua irmã. Conversamos e eu sigo o meu caminho.

Depois dessa observação seguiram os três em silêncio. O repórter, pensando lá consigo mesmo, buscava encontrar uma maneira de deixar aquela cidade o mais rápido possível. Quanto mais sonhava com aquilo, mais a coisa ficava complicada. Queria apenas deixar mais uma situação ruim para trás e tentar recomeçar em outro lugar, nem que fosse para vender doces, balas e crônicas no farol. Não ficaria mais um dia no meio daquela família de doidos.

Enquanto o trio fazia o movimento de volta ao prédio da arquiteta que, no trajeto ligou para a sua empresa cancelando todos os compromissos para aquele dia, no caminho contrário e ameaçando deus e todo mundo, Eleanora fez o motorista parar em várias imobiliárias da cidade. Queria saber em qual delas, Márcio mantinha contrato de locação. Depois de passar em umas seis empresas do ramo, achou a que mantinha a relação comercial com o jornalista. Ficou surpresa quando soube que a filha era dona do apartamento e havia comprado o imóvel fazia uma semana.

– Na condição de mãe e herdeira direta da filha, quero que o senhor mande sua equipe lá. Tire tudo o que estiver dentro do apartamento e o lacre.

– Mas o que está acontecendo dona Eleanora?

– Nada! Absolutamente nada! Estou apenas ordenando e o senhor será muito bem remunerado por isso. Quero fazer uma surpresa para uma sobrinha que faz aniversário e está chegando da Europa para passar uma temporada com a gente e não tem onde ficar.

– Mas não posso fazer isso da noite para o dia. Preciso avisar o Márcio.

– Não tem necessidade alguma. Ele já sabe e me autorizou, inclusive para o senhor mandar as coisas dele para esse depósito que fica neste neste endereço. Depois o rapaz passará lá para dar o destino que lhe aprouver. O senhor tem máquina que passa cartões aqui?

– Tenho sim senhora!

– Traga para nos entendermos melhor.

Enquanto era despejado sem saber, Márcio tentava convencer Amadeu que era muito cedo para beberem ou passarem no bar. “- Você não disse que ia me ensinar a jogar xadrez? Como o peão pode enfrentar peças de maiores valores estando encharcado de álcool? E olha que ele é o único que se transforma em qualquer outra que ele desejar, por exemplo, virar Rainha”

– Mas só sei fazer isso, depois que tomar uns goles e conversar com a minha analista. Aliás, ela deve estar preocupada. Não me vê desde ontem à noite. Preciso lhe contar que a minha musa apareceu e desapareceu numa golada de uísque. Foi-se como chegou, num raio. A terapeuta precisa saber que estão tentando me encarcerar novamente se eu não aceitar as regras do grande Jô. Eu não tenho a paciência do outro Jô, mas não gosto do carrasco Jô do presente.

Olhando para Angélica e já completamente em outro mundo, Amadeu perguntou a ela se não podiam ir para aquele bar em que os mosquitos guerreavam com as aranhas, enquanto os clientes enchiam a cara. A irmã lhe respondeu que certa vez Márcio foi até o apartamento dela e esqueceu lá uma garrafa de uísque da mesma marca que ele bebia.

– Meu amigo! Você esteve dentro das cercanias do inimigo? Tu és um porreta ou te usaram como isca, alçapão para me fisgarem. Lá dentro eu não fico nem que Cristo volte à Terra. Se ficar encarcerado, terei que deixar o cabelo crescer para jogar minhas tranças para que Tarsila me salve da Rainha má!

Márcio, que estava no banco do carona, se voltou para conversar com Amadeu enquanto a arquiteta travava as portas do banco traseiro e acelerava para entrar no prédio.

Amadeu começava a gritar e dizer que o dia dela chegaria. Não adiantava se esconder debaixo da cama, pois a estrela-rainha a pegaria e a levaria para o calabouço, a deixando livre se o libertasse. Ao ouvir isso, a arquiteta começou a se desesperar e falar baixinho que tudo isso foi provocado pela presença da mãe e que havia sido imprudente em deixá-la entrar em casa naquela manhã.

“- Vamos entrar nesse castelo. Não tem guarda algum. Nem reis brancos caçadores de rainhas negras e nem rainhas brancas que devoram peões pretos”, lhe informou Márcio.

– Como não!? Eu vi uma lá logo cedinho tentando te devorar. Você não a enxergou? Se não, então corre perigo. Vai que está lá dentro com outros guardas a nos esperar.

Márcio continuou a conversar com Amadeu lhe dizendo que entraria com ele e Rodolfo serviria o uísque e depois o almoço. Em seguida jogariam xadrez.

– Você promete, Márcio?

O jornalista olhou para ele e fez menção com a cabeça, mas não sabia que sua antiga moradia estava sendo esvaziada e lacrada naquele momento por ordens da mãe de Angélica e Amadeu.

Ao entrarem no apartamento de Angélica, esta correu para o quarto, enquanto o repórter levava Amadeu para a cozinha e tentava acalmá-lo como se estivesse no boteco. Disse-lhe que ia buscar a bebida para os dois. Mas ao invés disso, entrou apressado no quarto da arquiteta perguntando se não havia ali uma garrafa de uísque da marca que o irmão costumava beber. Angélica disse que tinha uma garrafa pela metade no bar instalado na sala, mas já fazia muito tempo que a largou lá e não sabia se estava bom ou não!

Ao dizer isso a Márcio, ela levantou a cabeça, deixando que o jornalista percebesse o desespero estampado em seu rosto por ter visto como o irmão sair do ar do nada, era como se uma chave dentro da cabeça dele fosse desligada automaticamente. “- Márcio! O que faremos? Meu irmão está completamente destrambelhado!”

– Acalme-se! Vou lá ter com ele. Depois conversamos. Dê um jeito de preparar o almoço. Provavelmente ele vai querer comer daqui a pouco e, quem sabe, consigo fazer ele dormir. Agora nada de choro. Eu via seu irmão mudar da água para o vinho todos os dias.

O repórter se dirigiu ao bar do apartamento, encontrou a garrafa de uísque e pegou dois copos. Nem pensou no gelo. Ia propor a Amadeu que bebessem estilo “cowboy”, puro. Quando o jornalista e o poeta alucinado estavam sentados à mesa bebendo e conversando sobre jogos de luzes, poesia, crônica e sobre as formas como o repórter escrevia, Angélica apareceu. Márcio percebeu que ela havia retocado a maquiagem, mas os olhos esverdeados pareciam mais brilhantes e com mais tonalidade. A arquiteta passou a mão pelo ombro do visitante e apenas com o olhar agradeceu por ele estar ali com eles. Em seguida perguntou ao irmão o que ele queria almoçar.

– Desde que não sejam aquelas gororobas que servem quando nos colocam no calabouço do castelo por desobedecer a ordem do soberano, comeria qualquer coisa. Estou começando a ficar com fome e o estômago já se engraça com os órgãos internos mais próximos a ele.

A arquiteta falou baixinho no ouvido de Márcio que precisaria sair para comprar comida. Pediu para ele ficar com Amadeu. O repórter anuiu com o olhar, indicando a garrafa de uísque. Provavelmente iria precisar de outra para ficar conversando com o irmão dela. Ela confirmou que traria umas garrafas. Quando ia saindo, Márcio ficou em pé e a acompanhou até o elevador.

– Traga as garrafas para deixar de reserva. Claro que não vamos usá-la. Vamos ver se é possível mudarmos os hábitos do seu irmão. Não creio que uma ruptura brusca seja a ideal, mas é preciso começar de algum lugar.

Quando o elevador chegou, Márcio deu um leve beijo na face de Angélica dizendo que a esperava voltar. Mas na parte da tarde precisaria cuidar da sua vida         – Está bem, senhor Márcio. De qualquer forma, sou grata por me ajudar com ele nesse primeiro momento até eu decidir o que fazer.

Angélica poderia ter optado por ter feito as compras por meio do aplicativo, mas queria ficar um tempinho consigo mesma processando tudo aquilo que estava lhe acontecendo. Rosângela foi à Alemanha e não havia lhe dado nenhum retorno sobre como estava lá. Se o apartamento estava arrumado aa seu gosto. “Tudo bem que não estamos nos melhores dos momentos, entretanto poderia me dar um alô. Mas a irmã deve ter lhe envenenado a cabeça e já pode ter embarcado e com medo de que fossemos atrás dela, não duvido muito que pegou o avião em outra cidade”, raciocinou a arquiteta enquanto o elevador chegava à garagem do prédio.

Assim que colocou o carro em movimento, acionou Rodolfo para estar no bar. Precisaria de uma daquelas caixas de uísque que havia lá. “Tomara que Márcio tenha razão e não vá entrar no barco do Amadeu e encher a cara também. Motivos ele tem e de sobra. Mas apesar de ser tímido e tentar se livrar dum passado horrível, tem caráter. Foi humilhado pela minha mãe e não desceu do salto. Acho que agora entendo a história do chicote na mão de quem bate, mas o agressor deseja transferi-lo para o violentado. De fato, nunca podemos reagir”, pensou a arquiteta respirando fundo, enquanto estacionava o carro e ouvia a música em que o intérprete dizia “minha meiga senhorita eu não tenho nada, mas o que tenho servirá para nós dois … ”. Desligou-se de tudo: da poesia sonora, dos pensamentos. Rodolfo apenas encostou perto do veículo e ela disse para colocar uma das caixas de bebida no porta-malas do carro.

Assim que o misto de garçom e segurança terminou de atendê-la, a ouviu dizer que era para fechar o local e ir para casa, ficando de prontidão. Talvez precisasse dos serviços no período da tarde. Do estabelecimento, Angélica foi ao supermercado. Ao pensar nas ofensas que ouviu da boca da mãe, direcionada à Márcio entendeu como ele, o irmão e Tarsila eram frágeis naquele mundo recheado pelo preconceito. Recordou a revelação que Eleanora tinha lhe feito logo pela manhã e falou para si mesma: “Que droga de vida! Quando vou deixar de ser oprimida por esse pessoal. Preciso arrumar um jeito de contornar isso, mas como?”

Ao entrar no estabelecimento comercial ficou surpresa com o fato de não saber o que pegar, pois quem sempre fazia as compras era Rosângela e normalmente coisas rápidas. Eram raros os almoços entre o casal. Então tudo ficava sempre para um jantar e depois no dia seguinte é que iam se preocupar com o que fazer. Com a esposa era sempre o aqui e o agora. Pensou em ligar para Márcio, mas deduziu que também deveria ser uma negação na cozinha. Pensou, pensou e optou por repetir a última refeição descente que tinha feito com a esposa: salmão grelhado com creme de maracujá. Para acompanhar, vinho branco.

Feitas as compras, era hora de voltar para casa. Encarar de um lado o irmão alucinado e do outro um homem belo, gentil, ético, porém, atormentado pelo passado e pelo desejo de fugir sempre, como se os fatos não o perseguissem, principalmente na memória e no coração. “E essa agora! Os meus clientes não foram conquistados pela minha capacidade, mas por indicação dos meus pais. Até que ponto sou diferente do Márcio e do Amadeu. Tarsila pelo menos largou tudo e foi com Rosângela à Europa se reordenar”.

Chegou em casa e Márcio viu quando a televisão indicava o carro da arquiteta parando no estacionamento do prédio. Também enxergou quando ela saindo do automóvel. Ficou ali só olhando a Angélica que se mostrava dona do mundo e de uma elegância fora do comum para seus 30 e poucos anos, mas de uma fragilidade. Sabendo-se observada, Angélica olhou em direção à câmera de sua vaga e fez um gesto para Márcio descer para lhe ajudar com as compras. “- No elevador aperte o G. Estou te esperando”, lhe disse Angélica ou pelo menos foi isso que o repórter entendeu a partir da leitura labial que fez da irmã de Amadeu.

Enquanto descia pelo elevador, o atormentado jornalista ficou pensando no tal “G” e o que isso significa para as mulheres. Percebeu que entendia muito, mas na teoria, porque tremia de medo diante da possibilidade delas adivinharem o que ia em seus pensamento quando as olhava. Por isso usava de muita sutileza que raramente era percebida, contudo, a irmã de Amadeu foi uma dessas que captou a forma como os olhos conduzia à sua maneira sutil de despi-las com lasciva e muita sexualidade, sem cair na vulgaridade, sem lhes tocar. Não conseguiu disfarçar um sorriso que procurou esconder quando estava diante da arquiteta.

– E Amadeu?

– Está dormindo no sofá. Apagou quando falava de como Tarsila havia lhe tirado um espinho de sua alma, apenas com o olhar. Ele descrevia como se estivesse vivenciando aquilo novamente. Parecia preso aqueles momentos.

– É, senhor Márcio, tem outros tantos que passam a existência presos vivendo apenas a noite em que o céu desabou sobre suas cabeças.

– Concordo com a senhora, dona Angélica e acho que é possível acrescentar aquelas que diante do primeiro problema que a vida lhe impõe, se esconde debaixo da cama, quando não comprando pessoas e pisando com o salto fino do sapato de mil reais no saco dos homens, como se isso fosse resolver todas as querelas que o viver em si coloca para todos nós.

– O senhor tem um repertório rebuscado. Acho que foi isso que produziu esse enorme chifre que carrega aí na cabeça, fazendo o coração sangrar eternamente como o fígado de Prometeu. Fala bonito, mas é um frouxo.

– Cure-se a si mesma minha cara arquiteta e depois falaremos de minhas feridas.

A troca de gentilezas durou até que o elevador parasse no centro do apartamento da irmã de Amadeu. “- Segure-o enquanto eu levo as compras para a mesa. Agora a caixa de uísque o senhor mesmo que a carregue. Não bebo isso mesmo e não quero vê-lo aqui enchendo a cara.

– E quem lhe disse que vou ficar aqui? Depois do almoço darei no pé. Prometi que em 72h estarei longe dessa cidade.

Desta vez, Angélica optou pelo silêncio. Não queria alongar uma conversa daquele nível com o repórter que desenvolveu a ideia fixa de deixar tudo para trás e se esconder num outro buraco e, quem sabe, em um emprego mixuruca durante o dia e a noite lambendo as feridas e as lavando com porres e mais porres, até o fígado ser devorado por uma cirrose sentimental.

– Você me ajuda com o almoço, senhor Márcio.

– Ajudo sim. Desta maneira eu vejo o que colocará nessa comida. Pelo sentimento que me devota, é capaz de adicionar chumbinho no meio do rango.

– Antes que eu me esqueça: vai tomar no olho do seu cu. Jamais iria desperdiçar tanto chumbinho assim.

Angélica falou com tanta convicção que Márcio tentou ficar sério, mas não aguentou aquele olhar que não estava castanho, enganando as intenções de sua dona. Por fim acabou por gargalhar. Desde que o conheceu, a arquiteta nunca tinha visto o repórter rir daquele jeito.

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