Sobras de um amor… parte II

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Quando Márcio acordou, Angélica já havia despertado e estava de pé olhando pela janela enquanto falava ao telefone. O jornalista notou que ela usava o mesmo camisolão do outro dia e sem nada por baixo. Não sabia se fazia menção de indicar que estava ali ou se voltava para o quarto e tentasse de lá fazer alusão que pretendia ir para a sala. Mas optou por ficar ali, observando lentamente cada curva do corpo da anfitriã, cuja idade já passava dos 30 anos. Com os olhos em Angélica e o pensamento vagueando aqui e acolá, fez menção de se virar para voltar por onde tinha vindo, quando a irmã de Amadeu se virou e o surpreendeu a olhando.

A arquiteta olhou para o hóspede sem nenhuma surpresa e ainda deu risadas. “- Não existe nada aqui que o senhor não tenha visto naquela manhã de nosso café. Então, não me preocupo, até porque nada daqui lhe pertence. Ente pode ir tirando o seu cavalinho da chuva, o sangue do seu pau e o desejo de suas mãos que jamais irão tocar esse corpo aqui”.

– Dona Angélica, preciso ir embora. Tenho que trocar de roupas e passar pelo Jornal. Quero resolver algumas pendências lá e se ficar aqui, minha vida não caminha. Antes deu conhecer o seu irmão e a madame, eu tinha uma existência aqui nesta cidade dos infernos e quero encerrá-la o mais rápido possível e seguir em frente. Quanto ao Amadeu, tenho certeza que seu dinheiro pagará os melhores especialistas do Brasil e do mundo para colocar os parafusos dele no lugar.

– Olha só. Acabei de falar com a minha mãe e lhe disse que o Amadeu está aqui comigo. Daqui a meia hora ela deve entrar por aquele elevador. Não vá antes disso. Não sei como ele vai reagir quando a vê-la aqui. Por isso preciso de sua presença. Amadeu o tem em grande conta, o enxerga como o melhor amigo. Depois disso, o senhor poderá ir tratar de sua vida. Prometo não lhe incomodar mais.

Ao dizer isso, Angélica se encaminhou ao quarto. Pretendia se arrumar e acordar o irmão. Não queria que a mãe a visse naqueles trajes sumários ou quase nenhum estando com um homem na sala. “- Ah, muito obrigado por estar aqui nesse momento complicado para mim. Não vou mais lhe pedir desculpas pela minha falta de compostura, mas prometo me controlar”.

A arquiteta voltou cerca de vinte minutos depois, encontrando Márcio no mesmo local. Passou por ele, lhe tocando o braço, dando risadas, dizendo a ele:

– Pronto! O senhor pode deixar a posição de guarda da rainha. Embora eu não seja nenhuma nobre ou tenha algo parecido com isso.

Márcio lhe perguntou sobre Amadeu e obteve como resposta que estava no banho e parecia normal, apenas perguntando se o repórter continuava ali. Depois do café da manhã queria jogar xadrez com ele. “- Eu expliquei que não seria possível porque o senhor tinha muito o que fazer, mas que todos poderíamos ir juntos ao apartamento dele, pegar os pertences dele, inclusive o tabuleiro e as peças que falam para o enxadrista quando este estiver fazendo um momento errado”, disse Angélica.

Assim que terminou de responder ao repórter, a arquiteta olhou num monitor de televisão e viu quando a mãe digitava alguma coisa no portão eletrônico. Em seguida, a irmã de Amadeu apertou um botão num controle remoto que fica próximo ao aparelho de tevê. “- Minha mãe chegou. Prepare-se. Tenho certeza que Amadeu vai fechar o tempo com ela, mas não poderia deixar de avisá-la. Estava aflita por conta do filho desgarrado”.

Enquanto Márcio se dirigia para o local onde Angélica esteve enquanto falava com a mãe, o elevador se abriu e dona Eleanora praticamente saltou de lá toda ansiosa, pensando que iria encontrar o filho a esperando na porta. Abraçou a filha já perguntando por Amadeu e olhou para os lados em que Márcio estava e, fechando a cara, foi falando entre os dentes com a filha.

– O que esse negro está fazendo aqui? Já não basta aquela outra mulher-macho que você trouxe para cá e nos envergonhar. Agora mais um? Tu tens péssimo gosto para homens, mulheres e amigos. Cadê o Amadeu? Vim buscá-lo. Não quero ele se misturando a essa gente preta.

– Calma mãe! Ele não vai a lugar nenhum. Ficará aqui comigo até ter condições de tomar as próprias decisões. Por favor não se intrometa. Olha o que vocês fizeram com ele por conta dessa visão racista e preconceituosa que têm. Será que não perceberam ainda quanto mal estão nos fazendo?

Márcio ouviu a conversa de longe e quando se aproximou, avisou Angélica que iria embora. Já tinha escutado ofensas de mais nos últimos tempos. Não ficaria ali ouvindo uma senhora que pensa que tem o rei do mundo barriga.

– Você não vai embora coisa nenhuma. Aqui é a minha casa e fica quem eu quero. A senhora minha mãe que se emende. Se quiser o filho de volta, terá que colaborar. Tenho certeza de que Amadeu não quererá retornar para aquele ambiente repressor que ela e o senhor meu pai nos criou.

– Faça-me o favor, Angélica. Querendo me ensinar alguma coisa. Logo se vê que são esses pretos desqualificados que estão metendo essas ideias rebeldes em sua cabeça. Já acabaram com o meu Amadeu e agora querem destruir você.

Quando o repórter fez menção de dizer alguma coisa, Angélica olhou para ele e pediu: “- Márcio, por favor, vá lá no quarto e chame o Amadeu. Diga-lhe que a nossa mãe quer falar com ele”.

Ao se distanciar das duas, o repórter escutou a arquiteta dizendo à mãe que esta deveria pegar leve com seus comentários, principalmente porque não estava na casa dela. Lá eram as suas regras, mas na casa dos filhos, as mesmas não se aplicavam. “- Se a senhora está pensando em ter Amadeu de volta, acho melhor começar a mudar esse seu posicionamento, pois quando ele souber que perdeu a amada por conta do racismo de vocês, ai é que eu quero vê-lo perdoar vocês. E não adianta contar comigo, pois ficarei sempre do lado dele. Estou de saco cheio desse racismo, dessa ideia de que são superiores e usam isso a partir do dinheiro que tem e essa ausência de cor de pele!”

Eleanora olhou para onde Márcio tinha se dirigido e de volta para a filha que completou:

– Este aí que a senhora acabou de humilhar, ofender sem, no entanto, lhe conhecer o caráter, os valores éticos e morais, acaba de me ajudar a trazer Amadeu de volta. E deu um trabalhão danado para fazê-lo ficar aqui até que seu filho despertasse. Eu estava com medo da reação dele. Aliás, ainda estou, porque quando ele te ver aqui, com certeza entrará em parafuso novamente. Então se prepare se for escorraçada.

– Essa sua opinião de ser contra tudo e todos, principalmente seus pais, não me interessa. Isso é perfumaria e deve ter sido encontrada nessas porcarias que vocês andam lendo para ter um diploma superior. O que vale mesmo é a prática e no fundo, no fundo, esses pretos são todos da mesma laia.

Quando Márcio saia do quarto em companhia de Amadeu, Eleanora correu em direção ao filho e a primeira coisa que ela perguntou:

– Esses pretos malditos fizeram alguma coisa contra você meu filho?

Márcio olhou para a mãe de Angélica, se dirigindo à arquiteta, pedindo para que quando o elevador chegasse no térreo, ela liberasse a porta. Tinha que ir embora. “-Preciso ir, se ficar aqui serei deselegante com a sua mãe e essa é a última coisa que pretendo neste momento!”

– Você foi bem pago pelo serviço. De agora em diante não tem mais serventia para nós. Contente-se com o que recebeu e sai já daqui, seu negro insolente!

O repórter ia responder, contudo, optou pelo silêncio e saiu. Assim que o elevador abriu e ele entrou, Amadeu entrou também, lhe dizendo: “- Viu a Rainha branca que matou a minha Rainha Preta? Ela não para de assassinar as peças das quais eu mais gosto. Fique aí a senhora com esse seu trebelhar mortífero. Não volto, não volto e não volto”.

Eleanora olhou para a dupla enquanto o elevador se fechava. Voltando-se para a filha ameaçou Deus e todo mundo e se deixou cair no sofá.

– Está vendo o que a senhora fez depois de todo o trabalho que tive para trazer ele até aqui? E ainda ofendeu quem a senhora não conhece! Essa mania de se achar acima de todos. Não sei com quem aprendeu essas coisas horríveis. Não sei se nasceu assim, mas creio que não! Ninguém nasce racista, apenas se torna com o aprendizado ou aceita certas condições, talvez por dinheiro.

– Veja lá como fala comigo em mocinha. Eu ainda sou sua mãe. Embora você seja independente, mais ou menos isso, pois quem arruma a maior parte dos seus clientes somos eu e seu pai. Inclusive para bancar esse seu projeto aqui que mais parece um caixa-forte do que um conjunto de apartamentos.

Depois dessa revelação, Angélica se deixou jogar no sofá completamente atordoada. Imaginava que o sucesso da empresa que dirigia era em virtude de sua capacidade técnica, mas acabou de descobrir que tinha dedo de Eleanora e Jô. “Meu Deus do céu! Até onde esses dois são capazes para continuarem no domínio de nossas vidas”, pensou a arquiteta liberando o ar dos pulmões.

– Mãe, por favor, a senhora quer ir embora. Tenho muito trabalho para fazer no escritório e também saber para onde foi Amadeu. Márcio eu sei, agora meu irmão sabe lá deus onde andará nessas horas.

– Eu vou, mas diga a esse preto que o trabalho dele já era. Pode procurar emprego em outra cidade, porque aqui ele não conseguirá mais nada. Tenho certeza que foi ele, aquela sua negrinha que você chama de esposa que encheram a cabeça de vocês dois com essa baboseira toda. Eles podem ter a palavra, a fala, as ideais, mas nós ainda temos o dinheiro e isso é o que mais importa. O restante é conversa de pobre frustrado que não sabe o seu lugar na cozinha.

Eleanora desceu, Angélica avisou o motorista e os seguranças que a mãe estava indo embora. Que levassem ela para a casa. Não seguissem instrução nenhuma de ficar procurando o filho pelas ruas da cidade. Esse era assunto dela e de ninguém mais.

Quando tudo parecia em harmonia dentro do seu apartamento, Angélica ligou para Márcio. Queria saber onde se encontrava  e se Amadeu estaria com ele. “- Está aqui comigo sim. Viemos a uma padaria tomar café. Quando ele começou a falar do que tinha acabado de presenciar e ouvir de sua mãe, mudei de assunto. Quer conversar com ele?”. Diante do sim, da arquiteta, o repórter passou o telefone para o poeta enxadrista.

Assim que ouviu a voz da irmã, Amadeu se limitou a lhe dizer: “- Hoje não sei onde você está, mas desconfio que deve ser uma das estrelas do firmamento a me ofertar diariamente muitos verbos em formato de flores e aromas que chegam ao meu coração em forma de versos … em ti em suas danças encontrei ao mesmo tempo o belo e o sublime”.

Sem dizer mais nada passou o telefone ao jornalista e pediu um pão na chapa e sem que Márcio dissesse alguma solicitou duas omeletes: uma de catupiry e outra de bacon.

Angélica quis saber mais coisas, tipo como o irmão se encontrava e Márcio só disse que estava tudo bem, mas tinha uns caras estranhos rondando a padaria e ficava olhando para dentro do estabelecimento em direção aos dois. “- São os seguranças. Estão sempre em nossa cola. Coisas do senhor Jô”

– Cruzes! Não dá nem para peidar sossegado. Esses caras são como sombras. Estou fora. Vou cantar em outra freguesia. Essa aqui está cheio de caçadores e vai que meu canto é triste como o da Araponga.

– Não saia daí. Estou chegando para trazê-los de volta para cá.

– Tudo bem, mas ir para onde com esses caras cheirando a nossa bunda. Deus me livre. Mas veja bem. Você chega e leva o seu irmão embora. Eu vou até o jornal.

– Se minha mãe cumprir a promessa dela. Esquece. Não vai precisar pedir demissão. É capaz de não passar da antessala do seu amigo editor e receber os valores de sua indenização. Vai por mim. Volte conosco e daqui tentamos resolver tudo. Preciso conversar contigo. Minha mãe me fez uma revelação que fez meu mundo desabar.

Não demorou dez minutos e Angélica adentrou à padaria e resolveu tomar café com os dois e depois voltariam para casa. Enquanto fazia o seu pedido, o telefone de Márcio, que estava em cima do balcão, tocou e foi a própria arquiteta quem atendeu, para espanto do jornalista.

– Alô! Com quem deseja falar?

– Com que estou falando?

– Por que quer saber?

– Quero falar com o Márcio, aquele filho de uma puta. Ele está aí?

Angélica quis saber com quem estava falando, contudo, já conhecia aquela voz. Em virtude disso, a própria arquiteta lhe disse.

– O que você deseja com ele João Marcelo?

– Quero mandá-lo ir para o inferno. Tem uma senhora aqui dizendo que ele a maltratou hoje de manhã em sua casa e que se eu não mandá-lo embora, vai fechar o meu jornal e eu é quem vou ficar pedindo esmolas no farol.

– É tudo mentira de minha mãe. Coloca ela aí pra eu falar com ela.

Quando Eleanora atendeu já foi falando de maneira autoritária.

– Quero aquele negrinho desqualificado fora do seu apartamento. E agora! Ele acaba de perdeu o emprego e será enxotado da cidade como um cão sarnento.

– A senhora não vai fazer porra nenhuma! Absolutamente nada. O Márcio está trabalhando comigo. Sou em que pago o salário dele. Então venha aqui em casa e solicite que eu o demita, dona Eleanora. Agora passe o telefone para o diretor e volte para casa. Não preciso pedir aos seguranças para tirá-la daí. Mas se for o caso, o farei antes de chegar aí.

Quando João Marcelo atendeu o telefone, a irmã de Amadeu pediu a ele para não levar em conta o que mãe lhe dissera e exigiu que mantivesse o que foi acordado. Explicou que foi Eleanora quem ofendeu Márcio e este ficou em silêncio, sem lhe dirigir a palavra.

Enquanto o proprietário do jornal desligava o telefone, Angélica escutou a mãe falando alto com ele: “- O senhor precisa fazer alguma coisa, se não esses pretos vão tomar conta de tudo. Já querem se casar com nossas filhas, mancharem nossas reputações com filhos nem pretos nem brancos”.

– Dona Eleanora! Vamos esperar a sua filha chegar e aí resolveremos isso de uma vez por toda. Agora se acalme.

Em meia hora, Angélica estava dentro da sala do dono do jornal, passando uma descompostura na mãe. “- A senhora não pode achar que o mundo tem que ser do jeito que deseja. O Márcio é um ótimo funcionário do jornal e se não fosse por ele, o Amadeu ainda estaria lá jogado naquela mesa de bar, conversando com peças invisíveis de xadrez. Então. Acho que não é com João Marcelo que a senhora precisa se entender, e sim com o senhor meu pai que você chama de marido. O rapaz fica com o trabalho dele, e a senhora vem comigo. Vamos ter uma conversa definitiva”, intimidou Angélica.

Eleanora olhou para o proprietário do jornal, para a filha e ao ver que tinha dois seguranças na antessala, se levantou e apenas pediu desculpas pelo incomodo causado pela sua precipitação. “-Mas o senhor sabe né! Os pretos nenhum prestam, a não ser para lavarem nossas privadas e olha que tem uns bem porcos!”

Quando a mãe da arquiteta saia da sala e já tendo os seguranças bem próximos, Angélica pediu mil desculpas a João Marcelo dizendo que o problema era com ela e não com o repórter. “- Não precisa fazer nada. Pode ficar sossegado. Isso não se repetirá mais. Os salários do senhor Márcio, continuarão a serem pagos pelo meu escritório, conforme combinamos. Se mudar alguma coisa eu aviso o senhor. E novamente, aceite minhas sinceras desculpas”.

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