Mobilidade social ou a batalha do tostão contra o milhão no Brasil

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

         Existe de fato essa tal mobilidade social no Brasil, bem como a tão propalada meritocracia? Responder a essas duas interpelações requer do cidadão um quantum significativo de reflexão, seguida de racionalidade e quem sabe um tiquinho de emoção, justamente para quando precisar se posicionar em relação a que lado se está da peleja social entre ricos e pobres, pois se trata disso, somente isso e nada mais. O resto são aleivosias de líderes de diversos segmentos que, desejosos de se manterem no poder, vende o paraíso, desejando que o indivíduo permaneça no inferno – e aqui estou pensando na trilogia cravada pelo poeta medieval Dante Alighieri (1265-13210). Mas para não me deter nessa escaramuça de denuncismo disso e daquilo, creio ser salutar aqui indicar que nós, cientistas sociais, analisamos fenômenos sociais que repetem, de acordo com os olhares do sociólogo e professor da USP, Florestan Fernandes (1920-1995). Se isso é fato e tendo a crer que sim, passemos então, eu e tu, meu caro leitor, a buscar respostas plausíveis às duas perguntas que inauguram essa tentativa de reflexão sobre o Brasil, um dos países mais injustos da esfera global, levando em conta que há uma legislação vigente, todavia, ela não é suficiente para minimizar os estragos provocados por hábitos escravagistas que ainda campeiam pelos quatro cantos desses mais de oito milhões de quilômetros quadrados que formam a esfera geográfica desta Nação.

Para começo de conversa, parto da primeira pessoa, isto é, eu e aí vos digo como entendo o que significa mobilidade social. Objetivando não me alongar, isto é, ser longevo em meus olhares nas linhas que se seguem, afirmo que mobilidade social é a caminhada que o sujeito social faz durante a sua existência. Dito de outra forma: é a capacidade que ele tem de galgar os degraus que compõem a estrutura econômica duma determinada sociedade, no caso aqui a brasileira. Posto isso de forma bem lacônica e retornando às interpelações iniciais, quais são as chances de uma pessoa que nasce, vamos dizer, nos degraus de baixo da pirâmide social chegar ao topo dela? Quem disse nenhuma, se equivocou, entretanto, num universo em que o estamento, disfarçado de categorias sociais, dita a movimentação dentro das linhas sociais, sabemos o quão complexa é essa possibilidade, para não dizer quase inexistente. Mas vamos lá olhar, bem sinteticamente o que é possível aferir das determinadas observações feitas por três cientistas sociais de significativas envergaduras para se entender os fenômenos sociais que se repetem. Por exemplo, para o pensador alemão Karl Marx (1818-1883) a sociedade influencia o indivíduo. Desta maneira também pensa o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) e de forma diferente há o economista Max Weber (1864-1920) para quem é o indivíduo que influencia o meio em que vive.

Se adotarmos os olhares marxianos, nos quais o sujeito é a cara da sociedade em que vive, Machado de Assis (1839-1908), escritor brasileiro oferece significativa ferramenta para tentarmos buscar uma compreensão mais nítida do nosso presente. Segundo ele, antes de mudarmos as leis precisamos alterar os hábitos, portanto, não é o cachimbo que entorta a boca, mas sim o vício de pitá-lo. Desta forma, como é possível pensar numa mobilidade social a partir do mérito se ainda o ser humano é avaliado pela tonalidade de sua pele e não pela sua competência? Claro que aqui se observa o que é comumente definido como racismo estrutural e muito se tem dito sobre isso, entretanto, a movimentação da sociedade buscando o fim ou pelo menos a redução considerável dessa prática é ainda tímida.

De acordo com material divulgado no último dia 11 de outubro pelo jornal Folha de S. Paulo, “Filho de família pobre tem só 2,5% de chance de alcançar o topo” – esse é o título da matéria que aponta logo de início que “as desigualdades sociais, regionais e de renda no Brasil contribuem para perpetuar uma estrutura de baixa mobilidade social no país, que dificulta a ascensão dos mais pobres e assegura a permanência dos mais ricos no topo”. A enunciação segue informando que “estudo inédito sobre o tema mostra que metade dos filhos de pais situados entre os 20% mais pobres do Brasil permanece nesse mesmo grupo de renda quando adultos, enquanto metade dos filhos dos 20% mais ricos se mantém no topo”.

Parece-me que essa pequena amostra dá conta do que os cientistas sociais que se ocupam em compreender a manutenção da miséria e altos índices famélicos em nosso país vêm apresentando, mesmo que muitos dizem ser um chororô daqueles que não ascendem socialmente e ainda recebem as cusparadas dum sistema desigual, cujos integrantes gostam de dizer que quem está nos estratos inferiores da sociedade brasileira lá se encontra por vontade própria, que não se esforça e que a Nação tem sua meritocracia, portanto, o brasileiro precisa batalhar muito para chegar ao topo da pirâmide social. “‘Uma parte do Brasil sustenta o discurso de que, se você se esforçar na vida, você se dá bem. O estudo coloca uma interrogação nisso’, afirma o economista Breno Sampaio”. A pesquisa que o periódico divulgou aponta que a situação não é bem assim, dando azo ao que indica as teorias marxianas sobre a sociedade capitalista e seu modo de produção. Interessante notar como o sistema se adaptou perfeitamente ao quadro brasileiro que, em 13 de maio de 1888, eliminou a escravidão, mas não livrou o país do escravismo que acaba ganhando outras nuanças apontadas pelo trabalho feito pelos pesquisadores Diogo Brito. Alexandre Fonseca, Paolo Pinotti, Breno Sampaio e Lucas Warwar por intermédio do Gappe (Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Econômicas) da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Posto isso, fico cá com uma nova interpelação que provavelmente não será respondida nessa reflexão: diante do que a pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco revelou, seria possível entender por que há uma tentativa das autoridades palacianas, situadas em Brasília, em defenestrar as instituições de ensino superior no Brasil mantidas com recursos oriundos dos bolsos dos trabalhadores? Deixando a pergunta para outro momento, voltemos ao material divulgado pelo jornal de circulação nacional. De acordo com a matéria assinada pela jornalista Idiana Tomazelli, “o estudo representa uma fotografia das condições sociais e de renda desses filhos quando eles atingem idades entre 25 e 31 anos. Não se trata de projeção para as crianças de hoje, embora dê pistas dos problemas a serem endereçados por meio de políticas públicas. O acompanhamento da evolução dos indicadores está nos planos para novos estudos. O levantamento analisa dois conceitos de mobilidade social, a relativa e a absoluta. A mobilidade relativa compara a situação de crianças que nasceram em pontos diferentes da distribuição de renda e serve para medir o chamado efeito permanência – isto é, se o rico permanece rico enquanto o pobre continua pobre”.

A matéria informa ainda que “um dos resultados mostra que, se a distribuição de renda no Brasil fosse medida em uma escala com 100 degraus, uma família que começasse na posição 25 demoraria sete gerações para chegar ao mesmo patamar de uma família que se encontrava no degrau 75. O estudo também traz as probabilidades de se manter rico ou pobre, ou mudar sua posição social. Os filhos de pais que estão entre os 20% mais pobres têm 46,1% de chance de permanecer nesse grupo, mais só 2,5% de subir ao topo. Os dados são ainda piores quando distinguidos por raça: crianças pretas ou pardas têm 52,8% de permanecer na pobreza, percentual que cai a 33,7% para brancas. Já os filhos de pais que estão entre os 20% mais ricos têm 48,5% de chance de permanecer no topo e só 4% de cair para a base da pirâmide. Ser branco amplia a probabilidade de manter a riqueza para 54,1%, enquanto ser preto ou pardo aumenta a chance de migrar para a pobreza para 5,7%” [https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/filhos-de-familias-pobres-tem-so-25-de-chance-de-chegar-ao-topo-no-brasil.shtml].

Os números dizem muito e não aferidos a partir dum ouvir dizer comum no universo do senso comum ou coisa que o valha, mas das informações oficiais que constam na base do Governo Federal, portanto, as mudanças devem surgir das práticas adotadas pelos nossos gestores. Mas aqui entra uma questão interessante posta por Marx em seu livro A Ideologia Alemã (São Paulo: Boitempo, 2007). Nessa obra, o autor de O Capital (São Paulo: Boitempo, 2011), afirmou que a ideologia tem como objetivo inverter o real. Desta forma, quando um postulante ao cargo eletivo diz que fará isso e aquilo, é preciso entender para quem ele está se dirigindo tudo isso e o seu lugar de fala na sociedade. Será que o Estado existe mesmo para equilibrar as desavenças entre os indivíduos, como nos coloca alguns filósofos da esfera política, como Thomas Hobbes (1588-1679)? Dialogando com a Divina Comédia (Jandira, SP: Principis, 2020), de Dante é possível dizer que o discurso diz uma coisa e a prática é totalmente outra, a exemplo do que aconteceu com Prometeu que tinha o fígado devorado por doze horas e na outra metade do dia o órgão se regenerava para ser degustado novamente quando o Sol grassasse no dia seguinte. Pois bem, deixando a esfera do literário, da arte e da mitologia e retornando aqui para o Brasil real onde a ficção costuma não chegar, pois ao filho do pobre descendente do elemento africano, a educação de qualidade é algo distante, portanto, mesmo que deseje utilizá-la como mecanismo de ascensão social, no afã de vivenciar a tão sonhada meritocracia, esbarrará no hábito afirmado por Machado de Assis em seu conto Teoria do medalhão (São Paulo: Paz e Terra, 1997).

Mas, diante do colocado nas linhas acima, se o meu leitor desejar bater o pé dizendo que aqui no Brasil é possível que um sujeito saia dos escombros da senzala pós-moderna, creio que deve nos mostrar como isso é possível, já que o cientista social trabalha com fenômenos sociais que se repetem e o que se olha no presente é a luta do tostão contra o milhão, sendo que a mediadora dessa batalha deve ser a legislação, mas esta penderá sempre, por intermédio de uma miríade de hermenêuticas, para os lados do predicativo do sujeito, isto é, o sobrenome e não para o mérito. Sendo assim, qual seria o posicionamento de um cientista social que conhece a realidade, segundo a qual, a sociedade influencia o sujeito e no caso do Brasil, uma ordem estamental, disfarçada de capitalismo, na qual a senzala ganha outro nome e a chibata é designada como salário mínimo? De acordo com Florestan Fernandes, não há outro caminho que não o de se colocar do lado dos oprimidos e neste sentido, o saber passa a ser o da militância. Parece-me que nesse ponto é que compreendo a batalha do presente: o tostão, de acordo com a pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco, luta para chegar ao topo da pirâmide, mas o barão não deixa, pois aquilo que o faz nobiliárquico deve ser mantido, mesmo que enquanto se dá filé-mignon para a sua prole, a senzala rói osso e revira as latas de lixo, conforme nos dizia Manuel Bandeira (1886-1968) e os seus parnasianos versos. Como podem enxergar, ou melhor, ler, meus caros leitores, a problemática é mais profunda do que muitos querem fazer a patuleia crer e ainda há outros que têm fervorosos preconceitos com aqueles que, de acordo com o cantor e compositor Belchior (1946-2017), desce do Norte para tentar a sorte no Sul, mas aí são outros quinhentos, como se diz no jargão popular, dos quais tratarei em outra oportunidade. Para o momento, é significativo que todos entendam que há uma diferença gritante entre o Brasil que muitos políticos dizem existir, querendo empurrá-lo goela abaixo do cidadão desavisado e o país de fato, em que os hábitos coloniais permanecem ainda nessas primeiras décadas do século XXI.

 

Gilberto de Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

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