Beijo gélido

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Direto ao ponto, meu caro leitor: o que você entende quando, de chofre, se depara com um título como este que nomeia esta enunciação? Sei bem que muitos podem associá-lo à ideia de morte, coisas sem vida, entretanto, se a intenção for relacioná-lo ao ser humano, entendo que o filósofo alemão Heidegger já tentou trabalhar alguma coisa nesse sentido, ao buscar conduzir os seus discípulos, ou coisa parecida, ao limite entre as duas instâncias do existir, isto é, entre o viver e o morrer. Afinal de contas, o homem é um ser para a morte, eis a significativa interpelação. Poderia, nas linhas que se seguem, tentar responder a essa questão, entretanto, prefiro, sem mais delongas, esboçar algumas coisas que possam estar relacionadas ao beijo frio ou gélido, quase que sem vida, mesmo advindo de lábios que expressam toda a vivacidade, contudo, indicando um desenlace entre o emissor e o receptor.

Entre as páginas de duas obras bem distintas, me deparei com uma afirmação significativa. No livro Lições de abismo, de Gustavo Corção, fiquei estático como mosquito aprisionado na teia de dona aranha, quando o narrador sentenciou, logo nas linhas iniciais: “O amor e a morte não precisam de muito espaço”. O que foi isso, vos pergunto, meu caro leitor? Amor e morte não rimam nem em versos, ou quem sabe, um significativo poeta possa dizer que quem nunca amou, não sabe o que é viver, portanto, se ainda caminha, morre um pouco a cada dia. Será que o raciocínio serve também para o beijo que, mesmo sendo dado na face pode indicar a temperatura que emana do coração de quem o doa, buscando encontrar o mesmo calor advindo do centro do sujeito que recebe? Como podes ver, leitor amigo, hoje parece que estou um tanto quanto interpelativo. Aliás, quando não estou? Quem escreve o faz para responder ou perguntar? O ato da escrita tem como escopo a aspiração de quem o faz desejar dizer algo, mas só pode fazer se for possuidor de uma singela pergunta que, por mais pueril que seja, leva o interlocutor a refletir.

Mas deixemos a confecção de enunciações e, sem mais delongas, adentremos, eu e tu, no universo que mais interessa aqui: o beijo que é frio ou se esfriou com o passar do tempo e se isso aconteceu foi por conta de ter sido um dia portador de significativas temperaturas, capazes de aquecer os corpos nas noites mais frias de um rigoroso inverno que, de tempos em tempos, dá um oi por essas paragens. Sendo assim, a questão é simples: por que esfriou feito café, esquecido sobre a mesa, indicando que a pessoa saiu para mais um dia de trabalho e acabou olvidando da bebida quente e estimuladora? Será que foi mesmo amnésia ou o efeito de algo que pensou ser mágico no começo, mas que, com o passar dos dias, semanas, meses, anos, tudo foi ficando para depois e de depois em depois, o dia seguinte nunca chegou e a xícara permaneceu ali como uma promessa jamais realizada. Parece que a resposta é complexa, mas creio que não seja tanto assim, desde que todos que participam do baile intitulado amor ou do dia dos namorados se predisponham a falar sobre o café que vai esfriando paulatinamente, enquanto a vida se esvai em afazeres diários sem muito sentido, já que o beijo vai perdendo calor e sabor com a rotina composta de levantar, se preparar para o trabalho, voltar, almoçar, quando der, jantar, como se os casais ainda se dessem o trabalho dessa comensalidade, depois dormir e, se der, um sexo aqui e outro ali, mas tudo sem muita vida, portanto, sem prazer, apenas para se manter o compromisso assumido há algumas décadas.

Triste fim da humanidade que existe apenas para isso sem, no entanto, entender direito o papel que cabe a cada um dos dançantes no baile de debutantes da vida, a exemplo, do último evento da Monarquia brasileira, quando esta já agonizava lá pelos fins dos anos 80 do século dezenove. Enquanto tentava escrever essas linhas, fiquei tentado a buscar lá no fundo das memórias uma imagem rara para esses tempos ditos pós-modernos: o bule de café que permanece sobre a chapa do fogão a lenha, enquanto as brasas são mantidas para servir de acendedoras para a lenha futura que cozinhará o jantar duma família que passou o dia no campo preparando a terra para a safra vindoura. Esse café mantido aquecido tinha como escopo recepcionar os labutadores, enquanto a refeição era preparada e os lavradores tiravam o restinho de pó que o corpo adquiriu entre uma enxadada e outra, além de uma rastelada aqui e outro abano da peneira repleta de grãos que permitirão as famílias e o Brasil sonharem com dias melhores. Mas, por outro lado, e deixando o passado com os seus devidos pretéritos, se atentando aos tempos pós-modernos, o bule de outrora deu lugar a garrafa térmica, bem como o calor do beijo de outrora deu espaço ao selinho frio do presente, indicando que tudo se mantêm como dantes em busca do paraíso de Dante, contudo, os caminhantes não têm mais predisposição de seguir pela mesma estrada.

Se o passado não tem espaço no presente, será que o amor prometido num ontem pode ser reaquecido, meu caro leitor? Penso que a coisa fica mais complexa se, numa viagem aos alicerces do vir a ser, todos descobrirem que tudo não passou dum sonho no qual um dos nubentes desejou mais do que o outro, para não dizer, amou primeiro, portanto, acredito que seria possível transformar uma promessa em realização. Neste sentido, não tem o que se desesperar, pois o beijo nunca foi quente ou o sentimento tinha tamanha força para aquecer os lábios que se tocavam buscando uma sinergia que nunca existiu. Se isso é fato, então o que houve? Os sentimentos estavam numa garrafa térmica ou a brasa que mantinha o bule aquecido se esvaiu com um jato d’água atirado por outros olhares ou o verde do raminho de árvore, apanhado numa tarde de promessas na praça principal da cidade e colocado com todo carinho e esperança no meio de um livro de poemas, acabou secando, restando ali apenas as promessas de um tempo que nunca foi sacramentado? Como podes ver, meu caro leitor, são tantas perguntas que nos resta apenas o assento próximo ao antigo fogão de lenha e a esperança de que o tempo ou a estrela cadente traga as brasas que possam aquecer um singelo beijo vindouro, porque o do passado esfriou no do presente.

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