Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
O bom, meu caro leitor, de se ter memória e mais ainda coisas significativas para se lembrar é, ao estar numa fila de lotérica no início de cada mês, ter coisas para se rememorar, rir sozinho, fazer aquela cara de assustado por ter se passado tanto tempo daquela xarada que ouviu, por exemplo, no renque do restaurante universitário quando fazia um curso superior que se acreditava iria gabaritá-lo para mudar o mundo. Todavia, nessas andanças toda, daqui para lá e de lá para cá, dentro de um ônibus, trem, e quem sabe avião, se descobre que o orbe não mudará até que cessem suas leituras equivocadas das coisas.
Pois bem! Um dia desses que tinha, dentro de minha pastinha, uma série de códigos de barras para serem liberadas, estava lá recordando coisas passadistas quando escutei uma pessoa que caminhava ao guichê dizendo que pagaria apenas 30% da fatura do cartão de crédito, restando para o mês seguinte outros 70% que seriam acrescidos de juros e multas, tornando quase que impossível a quitação da dívida junto à administradora do tal referido crédito comercial.
Enquanto a pessoa confabulava com o tamanho do rombo em suas finanças, fiquei ali pensando na conversa com uma amiga de outrora que gostava de coser uns versos depois de muito conjugar verbos e colocando outras tantas rimas para fazer sentido ao que lhe vinha n’alma. “- Fabiano, quais são as chances deu encontrar um amor nesse mundão de meu deus”, me perguntou a parceira, enquanto esperávamos a nossa vez de encher o bandejão.
Diga-se de passagem, meus caros leitores, que eu e ela formávamos a dupla de esfomeados da universidade. Éramos os dois que mais pediam arroz e feijão, segundo nos observou tempos depois o funcionário que nos atendia diariamente. “- Creio que 100% ou até mesmo 0%, levando em conta que a distância entre zero e 1 é o infinito”, respondi sarcasticamente para a minha amiga de comensalidades cotidianas.
– Pois é! Eu te diria que 30%.
“- Sendo assim, creio que na sua matemática, três é maior que sete”, tentei argumentar.
“- Por que me diz isso”, me interpelou Mariana.
– É só você observar tudo o que colocou nesses 30%. Os valores que desejar ver professados pelo seu amor. O que almeja com ele. Por exemplo, o sexo para ser perfeito entre duas pessoas precisa de 50% de cada um e quando o casal atingir o orgasmo, os dois se sentirão plenos e sentindo que cada um atingiu 200%.
“- Mas eu não estou falando disso”, disse Mari.
– Agora eu entendi. Os trinta que tu dizes é a possibilidade de encontrar um grande amor aos 30 anos e não se tornar uma balzaquiana?
“- Não homem de deus. Estou dizendo que os 70% vencerá sempre, pois dificilmente viverei o amor pleno. Entendeu agora”, tentou explicar minha amiga.
– Ah sim! Contudo, penso diferente de ti. Acho que encontrará sim, se saber olhar para o lado correto, para a pessoa certa e parar de matematizar tudo, inclusive o próprio coração. Apenas ame e pronto. Haverá dias que será fogo e outros aquela brasa que cozinha os alimentos lentamente. Portanto, amar pode ser fogo, como dizia aquele escritor antigo, mas também é possível ser aquela garoa que cai enquanto você espera em baixo do ponto de ônibus e o ser, que moverá seu mundo, passe lentamente diante dos seus olhos.
Enquanto tentava convencê-la de que trinta é maior do que setenta quando o assunto é amor, chegamos ao ponto de abastecermos nossos pratos. Ali pedimos 50% de arroz, portanto, amido e 50% de feijão, logicamente, ferro. Olha só meus caros leitores que coisa maravilhosa amido e ferro que combinam tão bem como duas pessoas que se amam e sabem muito bem a importância do sentimento, portanto, sem esse lance de vampirismo, meu isso e aquilo, ciúmes e outras coisas próprias do mundo capitalista. Ou tu achas que o amor não é capitalizado como investimentos nas bolsas de valores monetárias e sentimentais?
Mas deixando a economia para outros momentos, pois o interessante aqui é saber que entre uma garfada e outra, minha amiga tentava me convencer de que poderia encontrar o verdadeiro amor cedendo apenas 30% do seu coração, pois os outros 70% diziam respeito à sua individualidade e sobre isso não se negociava. “- Por exemplo, Biano, não existi isso de dividir casa, cama e outras coisas. Cada um no seu ambiente e quando der vontade de se verem, conversarem e aí, se pintar um clima, tem os locais apropriados para as trocas de energias”.
– Você está querendo me dizer que amar necessariamente não precisa haver o desejo de morar juntos?
“- Posso te fazer uma pergunta”, quis saber Mariana que antes mesmo d’eu responder já foi sentenciando. “-Adoro você, mas jamais dividiria minha casa contigo. Tu tens muitas esquisitices, como fazer tudo igual, ou pensa que não reparei que todo dia olhas para ver se o feijão ficou ajeitado do mesmo jeito no seu prato”.
– Cruzes nunca reparei.
“- Claro! Não reparamos no que fazemos todos os dias do mesmo jeito”, me disse Mariana, de maneira direta.
Fiquei lá pensando sobre os motivos que levaram ela me dizer que não se casaria comigo ou me amaria dentro de seus 30%. “- Imaginemos que eu deseje saber sobre os motivos que te levariam a nunca me amar. Você me explicaria?”
– Claro, já que as razões são bem obvias. Tu terias que entrar com seus 30%, sobrando para nós dois outros 140% para construirmos o nosso mundo com projetos a dois e como sei que tua viagem é outra, então esquece.
“- Oh loco! Já cravou a espada no meu coração, antes mesmo dele lhe dar uma piscadela”, perguntei em tom de troça.
– Veja bem, meu querido amigo. Quando digo 30%, estou dizendo que numa escala de 0 a 10, seriam três o grau de minha devoção ao seu coração e ao meu amor por ti. Mas como sei que esperar os outros 7 de ti é chover no molhado, então, nem cheguei a pensar na hipótese. E agora vamos mudar de assunto. Nunca me apaixonaria por ti, e sei que isso não aconteceria de sua parte, pois sabemos muito um do outro e qualquer relacionamento para além da amizade seria uma tragédia para nós.
Diante dessa constatação e por saber que quando Mariana dizia “vamos mudar de assunto” é porque o tema não tinha mais interesse para ela, então o negócio era mudar o foco da conversa. Sendo assim afirmei: “- Esse filé de corvina está uma delícia”.
– Não é corvina, é porquinho. Está vendo como nunca me apaixonaria por ti? Não consegue nem distinguir um peixe de outro.
“- Mas para que fazer distinção, se todos vão parar em nossa barriga”, afirmei de maneira sarcástica.
“- Assim que terminarmos, preciso que me ajude com aquela lição de italiano que tenho que apresentar amanhã no seminário”, sentenciou Mariana enquanto eu dava mais uma garfada no meu prato de comida.
E foi assim que devorei 70% do meu almoço, esperando entender um dia os 70% que minha amiga dizia. Mas se não compreendesse, não haveria problema algum, já que bastava a sua amizade e a certeza de que ela nunca desaparecia da face da terra.
Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.