18.
O casal despertou para uma segunda-feira chuvosa. O esposo se deslocou até o banheiro, esvaziando a bexiga, aproveitou para fazer a higienização completa, enquanto os ponteiros do relógio anunciavam que em pouco tempo seria nove horas. Quando voltou ao quarto, semivestido, encontrou a esposa sentada à cama com as mãos no rosto apresentando claramente sinais de quem havia chorado.
“- O que foi amor”, perguntou o marido.
– Por que não me pediu para te ajudar no banho? Isso significa que não quer ou não precisa mais de minha ajuda e, depois de tudo o que passei essa madrugada, agora está pensando em me deixar.
“- Quem foi que lhe disse isso”, explicou serenamente o editor.
– Eu que acho, pois se levantou e com as dificuldades que tem para se locomover, foi sozinho ao banheiro.
– Fiz isso porque não tinha intenção alguma de te acordar. Sua noite foi terrível, então achei que seria melhor te deixar repousando mais um pouco.
Ao dizer isso, o editor se sentou ao lado da esposa na cama, a puxando para si e a abraçando confortavelmente. “- Marzinho me desculpe por ter feito sua noite ser uma porcaria e meus pesadelos não me deixarem dormir”, desabafou a empresária.
– Você acha que tem condições de falar disso agora ou prefere só depois que conversar com a sua terapeuta?
– Deixemos a coisa serenar. Agora quero trabalhar e a tarde tenho as sessões. Você vai comigo?
– Se quiser, irei sim.
– Obrigado Márcio.
Assim que disse isso ao esposo, a empresária se levantou indo em direção ao banheiro. Retornou depois de meia-hora para se arrumar para aquela segunda-feira que prometia ser encharcada. “- Você pode me levar ao apartamento? Quero começar a arrumar algumas coisas para não ficar tudo acumulado para o dia da mudança. Desejo desocupar o imóvel até sexta-feira”, disse Márcio à esposa.
Angélica apenas concordou com a cabeça, fazendo com que o editor percebesse que ela estava em outra esfera, mas este optou por não fazer nenhuma observação quanto a isso. Os dois terminaram de se aprontar, deixaram o apartamento em direção à garagem e dentro do elevador, a empresária disse ao marido que ficaria boa para não ser mais um tormento para ele.
– Querida! Por que não para de ficar pensando que és um problema para nós? Eu lhe disse que estou contigo na chuva, no sol, na neve, na tempestade. Então vamos juntos passar por essa tormenta. Sei que no momento devo estar contigo sempre do seu lado, te apoiando e te ajudando a superar esse período tumultuoso.
“- E se não passar? Você terá paciência comigo? Podes falar isso agora, mas e se a noite acontecer novamente e amanhã, depois e depois”, perguntou Angélica de forma desesperadora.
– Se ocorrer de novo a noite, estarei lá contigo, da mesma forma se se repetir amanhã, depois e depois e mais depois.
Chegaram ao térreo, o esposo aguardou Angélica abrir a porta do carona e o ajudando a se ajustar no assento. Ela voltou para o local do motorista, conduzindo o automóvel em direção ao apartamento de Márcio. A cabeça dela estava totalmente voltada para as cenas que a atormentaram a noite toda.
“- Que horas é a sua sessão, amor”, perguntou Márcio.
– Está marcada para às 14 horas.
“- Almoçamos juntos e depois vamos até a sua terapeuta”, inquiriu o esposo.
– Não sei Márcio. Qualquer coisa eu te ligo.
Ao dizer isso ao marido, Angélica se desligou completamente como se estivesse no automático. Completamente mudos, os dois chegaram defronte ao prédio onde Márcio residia quando a conheceu e o imóvel acabou se tornando provisoriamente a sede de sua editora que caminhava para a inauguração e o ingresso no mercado editorial.
O editor ficou esperando, já que precisava da ajuda da esposa que, depois de alguns minutos, compreendeu o que acontecia ao seu redor. Saiu do banco do motorista e se deslocou até o outro lado do automóvel, abrindo a porta para Márcio, auxiliando-o a descer. Acompanhando-o até o interior do apartamento, Angélica fez tudo no automático, enquanto o seu acompanhante optou pelo silêncio. Em seguida se despediu dele com um beijo no rosto sem dizer absolutamente nada.
Márcio deu uma olhada pelo apartamento e sentiu saudades dos tempos em que o local havia sido sua casa, quando tentava trabalhar e fugir dos fantasmas. Agora estava ali, sem as assombrações do pretérito, contudo casado com uma mulher que podia ter o mundo aos seus pés, no entanto, não tinha conquistado a paz d’alma por conta das sucessivas agressões sexuais que sofreu do pai.
Enquanto caminhava lentamente para a cozinha objetivando preparar para si um café, recordou de uma frase dita pelo professor de Filosofia nos tempos de ensino médio. O desejo do docente era provocar a reflexão, já que a observação vinha do pensador inglês John Stuart Mill e dizia que “ninguém admite para si que seu critério de julgamento é a própria afinidade”*.
O editor ficou ali de pé, próximo do fogão, enquanto o café era filtrado e o pensamento na esposa e nos pesadelos da noite. “Mas por que agiu assim agora pela manhã”, se perguntava insistentemente o editor. Sorveu duas xicaras de café e, pelo aplicativo da confeitaria que pertencia à família de Angélica, pediu alguns produtos e ficou aguardando o pedido ser entregue. Abriu o seu computador e iniciou o trabalho daquela semana que seria fundamental para a concretização do seu sonho.
Reiniciou a leitura do romance de Alice e, na medida em que avançava pelas páginas, entendia os temores de Tarsila. O trabalho foi interrompido por sons de batidas na porta: o pedido que havia feito, tinha acabado de chegar. Ajustou a mesa para que pudesse continuar a atividade enquanto tomava café.
Na enunciação, sempre na terceira pessoa, a narradora contava tudo o que a amiga tinha passado, inclusive usando recursos linguísticos que poderiam levar o leitor a dar um veredicto, pois a intenção de quem construía o enredo era pedir uma opinião de uma terceira pessoa: o leitor. No texto, a pergunta era se a personagem deveria ou não lutar pelo amor dos tempos da adolescência, mesmo sabendo que ele poderia estar com outra pessoa.
Ao término da leitura, Márcio começou a escrever uma síntese para que Ricardo montasse três capas diferentes. Abordou as questões envolvendo o lado afetivo das personagens e o fato de a narradora crer-se homossexual e, depois de várias temporadas fora do país, retornou no afã de encontrar espaço dentro do coração do amigo da adolescência.
O celular vibrou e Márcio foi atender, observando que já passavam das dez horas. “- Alô! Tarsila! O que aconteceu”, perguntou o editor que obteve como resposta que a sócia optou por ficar na mansão. Havia levado o marido para o trabalho e voltado para a residência. “- Márcio aconteceu alguma coisa entre você e Angélica”, perguntou a cunhada.
“- Por que está me perguntando isso, Tarsila”, inquiriu o editor.
– Encontrei-a na empresa e o jeito dela não me pareceu agradável. Deduzi que tivessem brigado novamente. Não falei nada para Eleanora, mas fiquei preocupada com Angélica.
– Ela teve pesadelos a noite toda. Eu praticamente não dormir. Nem preciso lhe dizer o que pode ter provocado tais assombramentos soturnos. Mas estou aqui tentando adivinhar o que provocou o gatilho. Acho que foi aquele andador que meu pai arrumou não sei em que lugar ai da mansão. Era o que Jô usava e pode ter ficado no inconsciente dela.
*John Stuart Mill. Introdução. In. Da liberdade individual e econômica: princípios e aplicações do pensamento Liberal. Trad. Carlos Szlak. São Paulo: Faro Editorial, 2019, p. 18.
– Está certo Márcio. Eu falei com Amadeu para ficar de olho nela e qualquer coisa te acionar. Se precisar, passo aí e te levo para as organizações.
– Correto querida. Obrigado pela preocupação. Ficarei aqui de antena ligada. Sei que qualquer coisa o Roberto me informa. Olha, já fiz a resenha do romance da Alice para Ricardo fazer as capas. Você pode concluir do romance que traduziu para o português?
“- Concluirei agora e já mandarei uma cópia para ti e outra para o Ricardo”, respondeu a tradutora.
– Obrigado querida! Bom trabalho. Deixe-me voltar aqui para a conclusão do terceiro livro que vamos lançar na inauguração da editora.
Assim que desligou o telefone e abriu o arquivo do outro texto, Márcio ouviu baterem na porta. “- Já vai”, disse o editor, caminhando com dificuldades chegou ao local e, ao abri-la se deparou com Roberto que parecia ter visto um fantasma ou uma coleção deles.
– Márcio você precisa vir comigo. Angélica se trancou dentro da sala de reuniões e quebrou tudo. Conseguimos arrombar a porta enquanto Fernanda acionou os seguranças, isolando o andar. Ela queria pular do prédio, mas foi contida pelo irmão que pediu para ti ir lá urgente. Então vamos.
Já dentro do automóvel, o editor ligou para Amadeu e pediu para passar o telefone para a esposa. “- É seu marido”, disse o vice-presidente entregando o aparelho para Angélica que vociferou: “- O que ele quer comigo? Eu sei que vai pedir a separação. Então não quero ouvir a voz dele dizendo que está no advogado”, falou de forma exasperada a presidente das Organizações Oliveira.
“- Márcio quanto tempo levam para chegar aqui”, perguntou Amadeu.
“- Já estamos chegando. Vocês falaram com alguém? Ligaram para Eleanora? Quem além de ti e Fernanda estão sabendo desse surto dela”, perguntou Márcio.
– Ninguém! Agimos rápido e falamos que havia um problema para ser resolvido.
– Está bem Amadeu! Daqui uns dez minutos estamos aí.
Dentro do previsto, o editor entrou pelos fundos da empresa, pegando o elevador reservado à presidência e, ao chegar na sala de reuniões, pediu para Fernanda e Roberto evitar comentários na empresa. Ao ingressar no ambiente, Márcio viu a esposa encolhida num canto da sala, tendo o irmão junto dela. Por conta da perna imobilizada, o marido permaneceu de pé, pedindo que o cunhado a levantasse.
Assim que a empresária estava totalmente ereta, porém com os olhos fixos no chão, o marido se dirigiu a ela, a envolvendo num abraço, perguntando baixinho para a esposa: “- O que aconteceu meu amor? Fale comigo”, estimulou o editor, enquanto o ambiente era esvaziado e todos esperavam o casal deixar a sala. Os seguranças foram dispensados, mas o andar estava vetado a qualquer pessoa, inclusive os diretores que foram avisados para ficarem no primeiro andar e que só subiriam quando tudo estivesse resolvido.
O esposo ficou ali em pé abraçado à empresária por quase uma hora até que ela lhe perguntou se não iria se separar dela. “- Jamais, minha flor, eu lhe deixarei. Não precisa temer”, explicou o editor.
– Fiquei com tanto medo de que iria me ligar pedindo a separação que achei melhor pular aqui do prédio. Não conseguirei caminhar sem você, meu amor. Por favor não me deixe.
– Não irei a lugar nenhum sem a sua companhia. Mas o que foi que aconteceu para você agir assim?
– Eu não te deixei dormir a noite toda e meus pesadelos foram horríveis. Tive vontade de morrer e ficava pensando que se voltasse a conversar contigo, seria para me pedir a separação.
“- Não pedirei nada. Espere um pouquinho”, pediu Márcio.
Ligou para o celular do Roberto que entrou rapidamente na sala, saindo com a mesma velocidade. O esposo havia lhe solicitado para falar com a terapeuta dela. Tinha sessão no começo da tarde, mas queria antecipar para aquele momento. Era urgente.
O diretor voltou em cinco minutos, dizendo que estava tudo certo. A psicóloga havia conseguido fazer uns remanejamentos, de modo que poderia atendê-la nas próximas duas horas.
– Vem amor. Ricardo vai nos levar à sua terapeuta.
“- Você ficará lá comigo”, perguntou a empresária.
– Sim. Até terminar tudo.
“- Você tem certeza que não vão me mandar para uma clínica psiquiátrica”, questionou Angélica.
– Tenho. Agora vamos.
Ao passar pela secretária, Márcio pediu para a amiga segurar a onda até Roberto voltar. “- Pode deixar Marzinho”.
“- Não ligue para ninguém. Nem Eleanora e nem Tarsila”, pediu o esposo ao cunhado.
Ao chegarem no consultório, o casal entra e o editor pergunta se é preciso ele ficar com Angélica durante a consulta. A terapeuta pediu para Márcio aguardar na sala ao lado e qualquer coisa ela o acionaria.
Márcio beijou a esposa, dizendo que estava do lado de fora esperando-a concluir o atendimento. “- Obrigado amor. Mas não vai embora e me deixar aqui sozinha”, pediu Angélica.
Terminada a sessão, a psicóloga explicou que a empresária estava impactada pelas imagens do pesadelo, como se estivesse vivenciando tudo aquilo novamente e que o quadro foi desencadeado por alguma coisa que aconteceu no dia anterior e parecia ter passado despercebido, mas ela o guardou e quando estava descansando na banheira, tudo veio à tona. “- Agora ela precisa descansar e se o senhor conseguir identificar o que desencadeou tudo aquilo, não a deixe exposta mais a essas situações. Traga-a novamente amanhã à tarde, mas se precisar me acione. Tenham um bom dia”.
– Aguarde aqui, amor. Ligarei para o Roberto vir nos pegar.
Ao observar Márcio ligando para alguém, a terapeuta imaginou que fosse o motorista ou algo parecido. Enquanto tentava adivinhar quem o esposo havia acionada, Nancy deu uma olhada para o esposo e, sem que fosse notada, conferiu o material humano que Angélica tinha à sua disposição que, além de bonito, pelo jeito que conversou com ela parecia ser bem instruído e muito atencioso. “Uma pena que a cabeça dela não está dando conta de segurar esse casamento. Não sei até quando esse homem aguentará essas alucinações dela”, pensou a terapeuta se voltando para o seu universo profissional.
Em questões de minutos, Roberto apareceu e todos entraram no carro e foram direto à empresa. Repetiram o mesmo ritual, ingressando no prédio pelo elevador da diretoria, enquanto Fernanda os aguardava na saída. “- Obrigado Fê. Só viemos para trocar de automóvel. Roberto vai nos levar. Venha conosco e depois chamamos um transporte para vocês dois. Onde está Amadeu”, perguntou o editor.
– Na sala dele, despachando com os diretores. A coisa não podia parar. Ele está apreensivo com a irmã.
“- Diga para ele que está tudo bem. Estamos em casa e a tarde não vamos conversar com ninguém. Qualquer coisa que precisar de Angélica, transfira tudo para amanhã cedo”, explicou Márcio.
– Pode deixar Marzinho.
Fernanda entrou na sala e falou baixinho com Amadeu que anuiu com a cabeça, enquanto a secretária saiu para se encontrar com com o trio. O deslocamento entre as empresas e o apartamento da empresária foi feito rapidamente e quando entraram no imóvel, o casal de amigos ficou esperando na sala, enquanto o marido ministrava um calmante a Angélica que não demorou a cair no sono.
Quando Márcio chegou à sala, Roberto e Fernanda quis saber mais sobre o surto dela, mas o marido não quis entrar muito em detalhes, pois teria que revelar mais do que pretendia. Se concentrou em dizer que ela carrega coisas complexas que aconteceram no passado que explicavam muito do seu comportamento e do irmão que ficou cinco anos vagando à esmo pelas ruas da cidade, querendo reencontrar Tarsila.
“- Não vai nos dizer mais nada, não é Marzinho”, perguntou Roberto.
“- Disse o que precisavam saber. Se ela quiser um dia contar mais detalhes a vocês, aí é com ela. Espero que me compreendam”, explicou o editor.
“- Claro que entendemos, meu querido”, disse Fernanda. “Sempre agimos assim. Confiamos um no outro e sabemos que existem coisas que a própria pessoa tem que se sentir à vontade para dizer. Mas de qualquer forma, estamos aqui para o que der e vier”, completou a amiga.
– Deixarei o meu telefone ligado, mas só me acione se for coisa urgente. Não digam nada a ninguém na empresa. Se insistirem em perguntar, diga-lhes apenas que ela teve uma crise de enxaqueca.
“- E você acha que alguém falará alguma coisa, depois que aquelas duas foram demitidas e os três diretores também? Entenderam que estão lá para fazer jus ao salário que recebem e só. A vida pessoal da família da presidente não diz respeito a ninguém”, informou a secretária que sempre ficava atenta às conversas nos corredores e no cafezinho.
O boato que corria nos bastidores é que Fernanda foi colocada lá como um olho do marido de Angélica e que nada passava despercebido por ela. Uma das funcionárias chegou a dizer para uma parceira de sala que a secretária era amante do marido de Angélica, pois a esposa era sapata e queria esconder de todo mundo. Assim que Patrícia terminou de falar, Fernanda entrou na sala e, trancando a porta por dentro, foi tirar satisfação com a servidora.
Patrícia negou que tivesse insinuado qualquer coisa sobre a vida pessoal dos diretores, do amigo Márcio e dela. “- Bom! Se você não disse nada, então podemos rever as gravações de momentos antes”, disse a secretária, indicando um ponto vermelho quase que imperceptível no forro da sala. Antes mesmo que a funcionária pudesse dizer alguma coisa, Fê ligou para Márcio explicando o ocorrido e solicitando que separasse o áudio e o vídeo da sala em que estava. “- Subirei com duas colaboradoras daqui desta sala. Escutei algo, mas creio que foi coisa de minha cabeça”.
Quando Fernanda adentrou a sala de Roberto com Patrícia e Rosimeire, o diretor já tinha escutado a conversa por inteiro e estava em companhia de Amadeu, o vice-presidente, pois Angélica cuidava das coisas de seu escritório de arquitetura.
Roberto entregou dois fones de ouvido para as duas, perguntando se elas iriam desmentir o que falaram. A conversa foi mais longa, inclusive a dupla discutia sobre a sanidade mental do vice-presidente, dizendo que desconfiava que ele e Márcio eram amantes e que Tarsila era amante de Angélica e que tudo foi arranjado para não parecerem quatro “pederastas”.
“- Então quer dizer que os patrões que pagam seus salários são um bando de pederastas”, perguntou Amadeu olhando sinceramente para as duas, observando o quanto elas não tinham noção alguma do que vinham dizendo. Alertadas, as duas foram, mas o desejo e a vontade de falar da vida alheia ainda permeia a mente das pessoas, principalmente daquelas que não tem nada a oferecer aos seus semelhantes, exceto a alcovitice.
“- Meu cunhando costuma ser muito condescendente com quem lhe ofende a honra, mas três diretores foram sumariamente demitidos porque fizeram uma aposta duvidando da masculinidade dele e do caráter de minha irmã, a pessoa que não deixou isso aqui ir as ruinas depois da morte do presidente”, explicou Amadeu a dupla de funcionárias.
As duas servidoras permaneceram em silêncio, pois não sabiam o que dizer, enquanto o vice-presidente continuou o diálogo através de rua de mão única. “- As duas não têm nojo, repúdio de receber os salários pagos por uma trupe de degenerados? Se eu tivesse essa visão de mundo que vocês têm pediria demissão. Pensando assim, como duas puritanas que pagam as idas aos motéis com homens casados com adiantamento que fazem aqui na empresa para que os nomes dos amantes não apareçam, acho que podem repensar seriamente se desejam permanecer em nossos quadros de colabores”.
“- Isso não é verdade”, tentou dizer Patrícia.
“- Roberto, traga os documentos que acabaram de chegar do RH”, pediu o vice-presidente ao seu diretor de comunicação.
O executivo foi até sua sala, fez as cópias e entregou nas mãos de Amadeu. “- Eu posso ser doidivanas, casado com uma preta que é amante de minha irmã, como vocês disseram e meu esposo é o Márcio, um jornalista de caráter, mas quero que as duas tenham certeza de uma coisa: minha esposa que espera o nosso primeiro filho e o meu cunhado, tem caráter para dar e vender às duas e a qualquer outro que eu conheço”.
Patrícia e Rosimeire ficaram sem saber o que dizer e Amadeu completou: “- Só resta uma coisa a vocês duas: pedirem demissão, pois se eu assinar a demissão será por justa causa e essas notas, com as respectivas imagens da dupla entrando no motel com dois gerentes nossos, pararão nas mãos das respectivas esposas e eles também serão sumariamente demitidos. A escolha é das duas”.
Quando tentavam esboçar uma reação, Amadeu, com muita calma disse as colaboradoras: “- Sabem porque Fernanda é secretária da diretoria, tendo ingressado em nossas organizações depois de vocês duas? Por uma razão muito obvia: ela é portadora de valores éticos e morais e quando tem que dizer alguma coisa, não fica com alcovitice. Acho que deveriam aprender um pouco disso. Ninguém é melhor do que ninguém, mas o que diferencia um sujeito do outro são as escolhas que cada um faz em suas vidas. Espero que tenham entendido bem a nossa conversa. Eu aguardo, antes do almoço o pedido de demissão das duas, do contrário, as mulheres que vocês desrespeitam saberão da patifaria da dupla. Eu aprendi que nunca devemos fazer com o outro aquilo que não queremos que façam conosco. Tenham um ótimo dia e obrigado Fernanda por nos mostrar a verdadeira face dessas funcionárias”, disse Amadeu voltando para a sua sala.
Essa situação havia acontecido uma semana antes do surto de Angélica e todos já sabiam que o andar em que ficava a presidência das empresas, era minado e todos deveriam tomar cuidado com o que diziam, pois além das câmeras de segurança, ainda tinha a puxa-saco dos presidentes que era amiga especial do marido da arquiteta e o diretor de comunicação, embora dividisse as responsabilidades com os demais diretores das Organizações Oliveira, tinha um tratamento diferenciado justamente por conta das relações pessoais que mantinha com a família proprietária das empresas.
Por isso Márcio, Roberto e Fernanda confiavam tanto um no outro e ninguém ficava querendo saber além do que o amigo estava disposto a falar. Naquele momento no apartamento da empresária, a secretária começava a entender o que o editor havia lhe dito naquela tarde em que ela e Angélica saíram no braço. Ele sabia mais do que dizia e não a deixaria em hipótese alguma, pois a amava acima de tudo e também era humano e não a abandonaria de forma alguma. “- Marzinho, fique bem e cuide dela como cuidou de nós dois”, disse Fernanda fazendo sinal para ela e para o diretor de comunicação das Organizações Oliveira.
– Obrigado pessoal pela força. E não deixe nada vazar nas empresas. O assunto é complicadíssimo, por isso conto com a discrição de vocês e fiquem de olho em qualquer movimentação diferente lá dentro.
– Fique calmo Márcio. Depois daquela confusão da semana passada em que duas funcionárias foram obrigadas a pedir demissão por conta de conversas que não tinham nada a ver com o trabalho delas dentro da empresa, o pessoal ficou esperto e se falam, pelo menos não é dentro da empresa e o conteúdo não tem nada de veracidade.
O editor acompanhou os amigos até o térreo e ficou com eles aguardando a chegada do transporte que pediram. Fernanda abraçada ao amigo, transmitia-lhe força e Roberto o abraçou do outro lado. “- Tudo ficará bem, meu amigo. Sabíamos que isso aconteceria, assim que terminasse a tempestade de ciúmes provocada pelo medo que ela tinha de te perder”, disse o diretor de comunicação.
– Eu sei Roberto. Agora ela precisa do amigo e não do homem. É aquilo que eu sempre dizia a vocês: num relacionamento é necessário ter doses maiores de amizade do que de sexo e querer almejar construir uma carreira profissional sólida. Hoje Angélica quer o amigo e não vou abandoná-la em hipótese alguma. Se eu carecer dos dois para conduzirem a editora até que ela fica minimamente segura, os acionarei.
“- Pode ficar tranquilo Marzinho. Se precisar estamos à disposição e contataremos Tarsila”, disse Fernanda.
– Amanhã teremos uma nova sessão. Mas aguardarei para ver como ela acordará. Creio que dormirá a tarde inteira.
“- E essa sua perna, meu amigo. Como ela está”, perguntou Roberto.
– Depois de amanhã vamos ao ortopedista tirar esse incomodo.
Assim que o veículo chegou, Fernanda e Roberto ingressaram no automóvel, Márcio subiu e foi ver como Angélica estava. Percebeu que ela dormia do mesmo jeito. Acariciou -lhe os cabelos, passou a mão na face da esposa, dizendo baixinho: “- Tudo ficará bem, meu amor. Cuidarei de você do jeito que seu coração merece”. Como quem escuta a fala do marido, a esposa se movimentou de forma a buscar o corpo dele na cama para se proteger. O editor se deixou ficar mais uns vinte minutos ali, saindo em seguida para providenciar algo para comer.
Após se alimentar, o esposo voltou a ficar do lado da esposa. Primeiro, se sentou e ao perceber que ela o procurava, acabou se deitando de forma que Angélica pôde se aconchegar a ele. Ficou pensando como a cabeça da empresária estava desarrumada e que o amor lhe pegara desprevenida.
Enquanto Márcio e Angélica, dentro do apartamento, tentavam se entender por intermédio do sono, fora do prédio a chuva voltou a castigar a cidade. “Porra! Desde que cheguei a aqui, nunca havia chovido tanto nessa época do ano como agora”, pensou o editor tentando controlar o sono, mas foi em vão, acabando por adormecer com a empresária em seus braços. Quem assistia a cena de fora do quadro, tentava imaginar como era possível os dois estarem assim em plena tarde de segunda-feira enquanto o mundo lá, mesmo que encharcado pela água que descia do céu, vivia acelerado e todos querendo encontrar um lugar de destaque na sociedade.
A noite se aproximava rapidamente e a chuva parecia querer abandonar a cidade, Márcio e Angélica continuavam mergulhados no sono. Ele vencido pelo cansaço do dia e ela por conta dos calmantes que ingeriu no começo da tarde. Porém, o marido foi despertado pelo som do telefone. Achando que era Roberto, atendeu, contudo, não era o diretor das empresas da esposa, mas sim sua sogra.
“- Alô! Márcio! O que aconteceu com minha filha hoje de manhã”, perguntou Eleanora.
Antes mesmo de o genro falar alguma coisa, ela sentenciou: “- Sei que você, Roberto e Fernanda são amigos, mas eles não cumpriram o acordado e me informaram que Angélica tentou se matar hoje pela manhã e se tu não chegas a tempo, ela teria pulado da janela do andar da diretoria.
“- Te ligar mais a noite, mas como já está sabendo, não vejo problema em lhe falar”, disse o genro pedindo para que ela o aguardasse até que deixasse o quarto e, assim que chegasse na sala, ligaria de volta.
Devidamente ajustado na poltrona e com a perna acomodada na mesinha de centro, o editor retornou à ligação da sogra. “- Eleanora. A coisa começou ontem a noite depois que chegamos de sua casa. Ela teve pesadelos a noite toda e, creio que foram em virtude dos estupros praticados pelo seu marido. Ele bagunçou toda a cabeça e a vida de sua filha. Estou te falando isso porque em um determinado momento, ela gritava para não fazerem isso com ela”, explicou Márcio tentando se controlar, pois amava em demasia a esposa.
– Mil perdões Márcio. Sei que tenho uma enorme responsabilidade nisso.
– Eleanora, não podemos apagar o passado, mas temos que aprender a lidar com os estragos que ele nos deixa e o seu marido foi um crápula para os próprios filhos e nada justifica o que fez com os dois e, parece que a minha esposa ficou com a pior parte, que foi as sucessivas sevicias sexuais praticadas por ele.
“- E por que ela tentou se matar hoje pela manhã”, inquiriu a sogra.
– Por várias razões e creio que uma delas é não querer conviver com esse fantasma da violência sexual e o outro ela me disse quando a encontrei encolhida perto da janela abraçada ao irmão. Ficou desesperada que, por conta da noite horrível que tivemos, eu fosse deixá-la.
“- E você chegou a dizer isso a ela”, perguntou Eleanora.
Já com lágrimas nos olhos, o genro disse que não. “- Em hipótese alguma eu vou deixá-la. É minha esposa, minha amiga e caminharei com ela até o final e tenho certeza de que, juntos vamos equilibrar isso. Pedi ao Roberto para adiantar a sessão terapêutica que ela tinha à tarde e ele conseguiu ajeitar um horário pela manhã.
“- E tu tens ideia do que pode ter provocado esse surto”, questionou a mãe de Angélica.
– Creio que o gatilho foi acionado por algo que ela viu, presenciou aí em sua casa ontem. Pode ser um objeto. Penso que foi aquele andador que era do Jô que meu pai encontrou e pediu para eu usar. Ele até sugeriu que eu o trouxesse aqui para a nossa casa.
“- O que sugere que façamos, meu amigo? Sei que não dá para alterar o ontem e também não quero ficar arrastando essa bola de ferro chamada culpa. Se fizer isso, não conseguirei ajudar meus filhos”, desabafou Eleanora.
– Só tem um jeito. Embora não tenha poder nenhum sobre isso, mas creio que a saída seria você deixar a mansão e morar em outro lugar. Podemos, se tu me permites, transformar o imóvel na sede da fundação. Tem bastante espaço e podemos transformá-lo num lugar para a realização de diversos projetos sociais e psicopedagógicos.
– Nós já tínhamos conversado sobre isso, meu amigo. Mas agora, entendo que devemos acelerar essa questão, inclusive Tarsila também acha que podemos nos transferir para um apartamento maior ou uma casa bem menor do que esta aqui. Também pretendo sair daqui, pois tem muitas lembranças da minha antiga vida que não tem mais sentido no agora.
– Então, minha cara, enquanto Angélica estiver nesse processo, não pretendo levá-la mais à sua casa. Não é nada contra ti, mas é para tentar preservar um pouco mais a sanidade dela e não expô-la a lugares que lhe lembram as violências sofridas. Eu acho que ela até aguentou demais.
– Está certo Márcio. Amanhã vamos iniciar o processo de mudança. Se for muito complicado, Tarsila e Amadeu vão para o apartamento que ele usava e eu procuro outro imóvel para residir até que encontre uma casa. Não gosto muito de apartamento.
– Grato pela sua compreensão, Eleanora.
“- Eu é que sou grata por ti não abandonar minha filha e ter auxiliado meu menino num momento complicado da vida dele, enquanto eu só ficava preocupada com os olhares ao redor e querer agradar o Jô”, desabafou a sogra.
– Boa noite. Amanhã nos falaremos mais. Ela tem terapia no período da tarde. Verificarei se tem condições de trabalhar na parte da manhã. Beijos.
Ao desligar o telefone, o editor só escutou a pergunta: “- Para quem tu está mandando beijo? É para aquela vagabunda da Aline que quer te tirar de mim? Se for, pode ir direto para os braços dela. Eu sei que está procurando um motivo para me abandonar”, vociferou Angélica que estava de pé encostada no pilar do vão que levava da copa para a sala.
“- Era a sua mãe. Roberto ligou para ela contando o que tinha acontecido contigo hoje pela manhã nas empresas”, explicou Márcio sem fazer alusão à conclusão estapafúrdia que a esposa havia chegado sem que ele tivesse tido tempo de responder à pergunta ela lhe fez.
“- Sente-se aqui”, chamou o esposo. Angélica correspondeu ao pedido, se ajustando ao lado dele. “- Como tu está agora amor”, perguntou o marido, dando um beijo na face da esposa lhe segurando a mão.
– Aí amor, me desculpe. Estou sempre achando que irás me deixar e, sinceramente quero te dar paz, mas está muito difícil. Tem muita coisa me assombrando e hoje de manhã eu só queria dar um fim a isso tudo.
– E me deixar viúvo?
A empresária mostrou um leve sorriso ao marido dizendo que naquele momento que desejou se jogar do prédio, só pensava que Márcio não quereria mais ficar com ela por conta dos pesadelos da noite anterior. “- Eu já falei, mas sempre repetirei. Não tenho motivos algum para te abandonar. Caminharei contigo nessa nossa jornada chamada vida. Estarei com você, como estive ontem e agora aqui nesse momento”.
Angélica olhou para o marido e com os olhos cheios de lágrimas, lhe pede para ampará-la sempre. “- Por favor, querido, não me deixe cair nunca. Olha o que aconteceu quando eu não conseguia te ver”, explicou a empresária.
– Amor. Você precisa se alimentar. Não comeu nada o dia todo. Quer que eu te prepare alguma coisa?
Antes de Márcio concluir a pergunta, o elevador abriu, saindo de lá Eleanora e seu namorado, o general Alexandre com duas pizzas grandes nas mãos e a sogra com sacolas contendo refrigerantes e cervejas sem e com álcool.
“- Mamãe”, disse surpresa Angélica.
– Márcio, mil desculpas, não poderia deixar de vir ver como minha filha está. Espero que me compreendas.
– Tudo bem Eleanora, deixarei vocês duas conversarem.
A sogra pega a filha pela mão e entram dentro do quarto para dialogarem mais à vontade. A mãe não queria expor aquele grave problema familiar ao general. No momento oportuno, lhe contaria, mas não naquelas condições.
Alexandre colocou as pizzas em cima da mesa, em seguida pegando as sacolas que Eleanora deixou no chão da sala. Quando voltou da copa, estava com duas cervejas nas mãos, sendo que uma delas era sem álcool para o genro da namorada.
– Meu caro, parece que demorarão para encontrar a serenidade. Desculpe-me, mas os dois passam mais tempo resolvendo problemas do que realmente se amando.
– General, tem coisas que o dinheiro não ajuda, só atrapalha. Minha esposa e Amadeu sempre tiveram tudo, menos o principal: amor. Viviam num mundo que bastavam estalar os dedos que as coisas se materializavam, mas o que os dois desejavam era o simples amor.
– Sei que não entrará em detalhes comigo, e também não quero me enfronhar em coisas que não me dizem respeito, mas pelo que Eleanora me disse você é quem está oferecendo isso aos dois. Amadeu ficou cinco anos num mundo de loucura, porque Tarsila desapareceu e tudo por conta da tonalidade da pele dela.
– General! O que vou lhe falar, tu sabes de fio a pavio, pois não chegou as altas patentes do Exército sem nunca ter sofrido preconceitos raciais que sempre foram disfarçados, portanto, quando nós pretos chegamos em determinados locais é apenas para resgatar a nossa alma preta que apareceu antes e já foi sendo açoitada pelo racismo que permeia a nossa sociedade antes mesmo de a República ter sido implantada pelos seus superiores históricos.
– Eu sei bem o que é isso, meu caro. Aquele filho de uma puta que tentou me humilhar no restaurante de sua sogra, vivia me provocando no quartel, mas teve o fim que mereceu.
“- Sim. Já saiu alguma coisa sobre a tentativa de homicídio dele, general”, interpelou o editor.
– Foi encontrado enforcado dentro da cela, tendo na boca uma carta direcionada à mulher lhe pedindo perdão a também ao filho que está vindo ao mundo. O cara é tão calhorda que tirou a própria vida e não pensou na esposa que dizia amar, a deixando grávida.
– E quando foi isso, Alexandre.
– Na semana seguinte à prisão. Foram buscá-lo para uma instrução do processo na Justiça Militar por ter tentado contra a minha vida e o acharam dependurado na cela. Uma cena deplorável.
“- E a esposa dele? Você sabe do paradeiro”, perguntou Márcio.
– Ninguém sabe, mas por que a preocupação com aquele racista filho de uma puta.
– O racista era ele. Será que a mulher compactuava com isso? O filho que ela espera? Não pode chegar a esse mundo sem nenhuma assistência.
– Eu não sei de nada, mas se tu fazes questão, posso procurar saber, mas por que? Pretende fazer alguma coisa?
– Não sei, general. Primeiro precisamos localizá-la e saber se não está precisando de nada. Acho que podemos dar-lhe alguma assistência, afinal ele era funcionário do restaurante de Eleanora e a mulher tem direito a algum tipo de indenização, pensão e outros direitos.
– Tudo bem, meu caro. Levantarei todas essas informações, depois te transmito.
Assim que o general terminou, mãe e filha deixam o quarto e, pela cara de Angélica, esta tinha chorado um bocado. Alexandre ajudou Márcio a se levantar do sofá e em seguida foi abraçado pela esposa que, sorrindo, lhe deu um beijo carinhoso. “- Obrigado amor, por ser esse marido lindo e um excelente amigo. Te amo”.
Já à mesa, o general fez questão de servir todos. Um pedaço para cada e a conversa foi sobre o fato de Roberto ter desfeito o pacto feito pela manhã e conversado com Eleanora. “- Márcio, por favor, não vá discutir com seu amigo que me falou do ocorrido. O ato dele, indica que também é nosso amigo e quer o bem de todos nós, além de ser o meu diretor de comunicação, portanto, tenho que saber de tudo o que acontece lá dentro”.
– Tudo bem, sogra. Não vou arrumar confusão com Roberto. Se ele agiu assim é porque tinha lá suas razões e se achar que deve me falar, tudo bem. Caso não queira, compreenderei.
“- Obrigado Marzinho pela compreensão. Sei que tenho uma significativa contribuição negativa para isso tudo, mas não posso mudar o passado, contudo tentarei, dentro das minhas possibilidades, alterar tudo isso”, externou Eleanora.
O jantar transcorreu serenamente, até porque o anfitrião não se indisporia com a sogra por conta de o amigo ter lhe falado da crise e tentativa de suicídio da esposa, até porque ela tinha uma parcela considerável naquelas crises, bem como nas loucuras que Amadeu fez por cinco anos, até que se reencontrou com Tarsila.
Enquanto mãe e filha terminavam de ajustar tudo em seu devido lugar na cozinha, Márcio ficou de prosa com o general e o foco da conversa foi o livro em que o militar seria a personagem principal. “-Alexandre, quarta-feira tirarei essas talas e na quinta-feira marcaremos a primeira entrevista”, disse o editor perguntando quanto tempo ele achava legal para as conversas.
“- Márcio pode ser duas horas por dia e que tal no meu restaurante. Você aparece e almoçamos juntos e aí vou falando e tu anotando ou gravando tudo. Fica a seu critério”, informou Alexandre.
– Ótimo general. Acho que pode ser mesmo na hora do almoço. Assim não atravessamos nossos afazeres. Não se incomode se Angélica quiser estar presente. Acho que quererá passar mais tempo comigo, mas não posso deixar de trabalhar. Não desejo adiar a inauguração da editora. Te quero lá com a minha sogra.
– E o que tens em mente para a esposa do garçom?
– Preciso ver com o meu pai e o Leônidas, mas penso em conseguir alguma coisa para ela no supermercado. O dinheiro vai ajudá-la na criação do filho e também a pensão que receberá. Como ele estava preso sob a responsabilidade do Estado, talvez um advogado consiga uma indenização. Mas não tratarei disso nos próximos dias, pois tenho que cuidar da minha esposa.
– Eleanora é muito grata a ti por estar assistindo a filha dela e também por ter socorrido o filho daquele mundo de sandice. Ela me falou que não existe dinheiro nenhum no mundo que pague o trabalho que fizestes com os dois.
– Meu caro general. Uma coisa levou a outra. Eu queria apenas fazer uma matéria diferente com uma pessoa que me pareceu não ter vínculo nenhum com a mendicância. E aquele doidivanas me ensinou, através de suas charadas, muitas coisas sobre a minha própria pessoa que eu não queria enxergar.
“- Como assim? Desculpe-me pela pergunta, se sinta à vontade se não quiser responder”, disse o militar.
– Há cinco anos, a exemplo de Amadeu, eu vivia num mundo sem saber o porquê estava nele, correndo de um problema que não me deixava, todavia, eu o alimentava diariamente, me afundando nele. Numa segunda-feira, como a de hoje, parei num boteco decidido a encher a cara até perder os sentidos, mas acabei tendo que me sentar na mesma mesa que o irmão de Angélica estava.
– E foi nesse dia que a conheceu?
– Não! Foi num domingo à tarde. Passei pelo bar completamente desnorteado e quando estava sentado na mesma mesa de sempre, ela apareceu para saber como estavam indo as coisas com Amadeu. Notei-a logo de cara e não consegui parar de pensar nela, até que apareceu no meu apartamento como se fosse a dona do mundo. Meu sangue ferveu porque queria expulsá-la da minha casa e de um lugar em que havia entrado sem ser autorizada.
“- E está morando aí desde então, meu caro amigo”, perguntou o general.
-Está e espero que nunca o deixe vazio.
Assim que o editor respondeu à pergunta do militar, Eleanora, abraçada com a filha chega à sala, pedindo ao namorado para irem embora. “- Já vi que minha filhota aqui está bem cuidada pelo marido e tenho certeza de que não terá novos problemas como os da noite passada e o da manhã de hoje”, explicou a sogra.
Angélica entrou com o casal no elevador, enquanto o marido ficou sentando no mesmo lugar de sempre. A chuva tinha diminuído bastante, mas os raios circulavam pelo céu, indicando que a noite poderia ser mais pesada ainda. Trovões ressoavam também, enquanto o editor, com muito custo tinha se levantado, ficando de pé observando o céu chuvoso.
Enquanto se deliciava com a iluminação que as faíscas proporcionavam ao céu naquele começo de noite encharcado, Márcio não percebeu que a empresária estava de volta e o observava silenciosamente. Calmamente se aproximou do esposo, abraçando-o pela cintura, lhe dando um beijo no pescoço, agradecendo com uma voz serena e em baixo tom o coração que a ofertava todos os dias.
Com um pouco de dificuldades, o editor se virou, abraçando a esposa lhe dizendo que o mundo dele não seria o mesmo se ela não existisse. “- Mas estou toda confusa, cheia de problemas, neuras e te confesso não sei se conseguirei me livrar desses traumas, meu amor”.
“- Quantas vezes teve esse tipo de crise quando esteve casada com Rosângela”, perguntou o editor.
– Por que está perguntando isso, amor.
– Quero fazer uma comparação.
– Nunca tive nenhum lance desses. Tanto é que contei a ela os estupros que sofri e depois dormia muito bem. Sem pesadelo algum.
Márcio ficou em silêncio pensando e depois respondeu: “- Talvez por isso é que tenha optado por ter mulheres em sua companhia e não homens. Provavelmente nós representaríamos uma continuidade daquelas sevícias que sofrias de seu pai. Sua iniciação sexual se deu de forma agressiva, invasiva e sem o seu consentimento”.
Desta vez quem ficou pensativa foi a esposa que inquiriu o marido: “- Então você acha que nunca conseguiremos nos relacionarmos como homem e mulher, pois eu poderia te rechaçar”, indagou Angélica.
– Primeiro: Amor, já transamos e isso significa que não seria empecilho algum, mas temos que estar atento a tudo. Creio também que é possível não te expor a situações que possam recordar, não os atos em si, mas a pessoa que os praticava.
– A minha terapeuta me disse coisas semelhantes. De certa forma, fiquei com muito medo de que pudesses me deixar e os fantasmas continuassem a me assombrar, por isso, posso ter desejado eliminar a minha própria vida. Uma coisa levando a outra.
– É um conjunto de fatores que tu precisas encontrar as respostas para sair desse tenebroso labirinto. Estarei contigo durante todo esse processo.
– E se eu não conseguir me realizar sexualmente contigo? Tu me deixarás? Procurarás outra? Te pergunto isso porque sempre escuto dizer que quando os casais não encontram o que busca no casamento, a tendência é tentar achar fora dele.
– Amor: eu compreendo a sua ansiedade para que possamos viver e ter uma vida a dois, harmônica, mas também não é possível escondermos um do outro que para chegarmos a isso teremos um caminho a ser percorrido. Não estou preocupado com sexo. Como já lhe disse, ele é uma parte significativa num relacionamento a dois, mas um casal não pode fundamentar tudo apenas no gozo, na trepada. Para chegar a esse ponto, a dupla precisa estar muito bem sintonizada.
Angélica olhou para o esposo que continuou: “- No momento, estou mais preocupado em estar contigo durante essa travessia do que em realmente me satisfazer sexualmente. Amanhã tens sessão terapêutica novamente e aí na quarta-feira, se quiser, converse com a sua sexóloga. Roberto deve me levar pela manhã para tirar essas talas.
– Quem te levará sou eu! Afinal tu tens uma esposa que, mesmo estando às vezes fora de foco, te ama muito. Faço questão de estar junto contigo e quero uma avaliação detalhada do ortopedista.
– Tudo bem amor. Tu podes esperar aqui enquanto eu tomo um banho? Agora se quiser também fique lá no quarto.
– Prefiro te esperar dentro do quarto mesmo, Marzinho. Depois eu tomo banho também e ficamos juntinhos até o sono chegar. Amanhã quero estar cedinho nas empresas. Hoje ficou tudo por fazer. Se bem que Amadeu conduzirá bem as coisas, tendo a ajuda do Roberto e da Fernanda.
Quando o esposo deixa o banheiro, Angélica está deitada na cama olhando para o teto, pensando em tudo o que aconteceu naquela segunda-feira. Se perguntava de onde brotava tanto medo de o esposo a deixá-la. Seria a certeza de que antes mesmo de Márcio ser seu marido, era o amigo que Fernanda tinha clareza de que nunca lhe deixaria na mão. Alice retornou das sombras com aquele romance porque descobriu essa peculiaridade nele.
Enquanto a empresária conversava consigo mesma, o editor permaneceu em pé só a observando e a reflexão parecia ser semelhante, mas de um ponto de vista de alguém que tinha certeza absoluta de que não deixaria aquela mulher sozinha em hipótese alguma.
Do nada, Angélica se voltou para o esposo lhe perguntando em que mundo ele estava. “- Num em que se você não estiver, ficará completamente cinzento, sem vida e pesado como chumbo”, disse Márcio piscando, olhando todo sentimental para a empresária. “- O que viu em mim, Marzinho? Sou toda atrapalhada. Hoje tentei colocar fim à minha vida; raramente conseguimos dar uma trepada de responsa; sou ciumenta ao extremo e ainda por cima tenho preferência por mulheres e sei que não quer o meu dinheiro”, perguntou a empresária.
– Posso pensar, enquanto a senhorita se banha? Quem sabe eu não tenha uma resposta à altura de Vossa Alteza, dona Angélica.
Ela se levantou, passou pelo marido lhe dando um carinhoso beijo e se perdendo dentro do banheiro. O editor caminhou até a janela do quarto e, enquanto olhava o mundo externo, pensava na pergunta que Angélica lhe fez. A esposa surgiu em sua vida como se fosse um furacão, mandona, autoritária, dona de si e do mundo, mas, no entanto, tudo aquilo era mera casca, invólucro que escondia um precioso cristal.
Buscou mentalmente o momento em que percebeu que a desejava mais do que uma amiga. Nunca existiu aquele sentimento por Alice, por Márcia e nem por Fernanda com quem teve mais intimidade do que com a noiva, com a qual chegou a transar em vários momentos desde o início do namoro até aquela noite assombrosa. Angélica o tornava inseguro, com medo, cujas sensações só passavam quando estava próximo dela.
Recordou que ela queria vencê-lo a força, dominá-lo e como não havia forma de dobrá-lo, o agredia. Primeiro com palavras, depois com as mãos e por fim com aquele pontapé infeliz que o deixou com a perna imobilizada. Naquele momento, enquanto via a chuva desabar fora do prédio, Márcio entendeu o que aquela mulher fazia com ele.
O editor tinha certeza de que criou uma rotina para não se perder no mundo que tanto medo lhe dava. Não desejava nada que tornasse o seu dia seguinte incerto. Não queria ter muitos amigos, pois desejava sempre compreender todos para não ser surpreendido com alguma coisa diferente. Era metódico por opção e por temor, mas Angélica apareceu rasgando tudo isso, tirando-o de sua zona de conforto, contudo, ao destruir sua vida pacata, dissolveu o medo que Márcio tanto tinha do dia seguinte.
“- O que tanto meu preto pensa olhando a chuva que o céu manda para esta cidade”, perguntou Angélica, o tirando de seus devaneios. Ao voltar a sua face para a esposa, Márcio estava mais apaixonado ainda e a empresária percebeu uma ligeira mudança que foi sentida pelo seu coração.
Antes mesmo que ele pudesse se deslocar onde ela estava, vestida com um roupão, a empresária chegou até Márcio o abraçando e, sem dizer nada, aguardou que o esposo lhe revelasse o que ia em sua alma e que os olhos entregavam a partir daquele brilho lindo que emanava.
– Antes de a senhora aparecer em minha vida, era tudo regulado, marcado, mas, encontrar seu irmão que fazia tudo do mesmo jeito, fez eu me enxergar. Aqui agora entendi porque sou louco por ti e acho que Roberto e Fernanda perceberam isso antes que eu mesmo. Digamos que minha vida era metódica, porque havia aqui dentro um medo terrível do mundo, da vida, da existência em si. Recordei aqui nossas brigas, suas birras, seu mandonismo, esse seu jeito de bagunçar toda a minha vida, mas ao mesmo tempo em que acabou com aquele meu modo de viver, mandastes embora um medo que eu tinha aqui dentro.
A esposa ficou ouvindo e estimulando a dizer mais: “- Quando estou contigo, não me transformo num super-homem, mas consigo ser o ser que sou, isto é, um indivíduo simples que ama de paixão sua esposa e tem certeza de que irá com ela até o fim da vida, pois o amor dela não o deixa com medo do amanhã. Pelo contrário, me dá certezas sobre a terça-feira e os dias vindouros. Se você, minha flor, não estiver comigo, tenho certeza de que secarei como uma roseira que perdeu o sentido do seu existir. Obrigado por me permitir te amar assim do jeito que tu és.
Com os olhos marejados, Angélica beija o marido, lhe dizendo que, por tudo o que fez passar nos últimos meses, não mereceria tanto amor por parte dele, além de amizade, carinho e paz. “- Mas tentarei corresponder a tanto sentimento que me tens, meu amor”.
– É o que sinto por ti, mas sei que um dia poderá surgir outro alguém em sua vida e se isso acontecer, seguirei em frene te amando do mesmo jeito, contudo, em silêncio e lutando bastante para não sucumbir às saudades que sentirei de ti e dessa segurança que me passa.
– Amor! Não vamos mais falar dum futuro que é incerto para todos nós e nem ficarmos atentos a um passado que não nos serve mais. Então que tal amarmos o que temos agora: eu a você e vice-versa? Sei que dizendo assim parece fácil, mas compreendo que há um caminho longo a percorrer, mas tenho plena certeza de que estará sempre comigo, na condição de meu marido, meu amante, meu amigo, meu tudo, minha rosa que nunca murchará.
Dizendo isso, Angélica puxa o marido para a cama. Os dois olham para o relógio e percebem que a madrugada já se aproximava. Quando o casal se deita e a empresária se ajeita no peito do editor, pede que Márcio a ajude a ficar inteira no relacionamento. “- Amor! Não quero lhe garantir estar contigo pela eternidade, mas desejo transformar seu presente num dia eterno. Aquele mesmo medo que tinhas antes deu chegar de supetão em sua vida, eu também era portadora e pensando rapidamente depois do que me disse, entendi parte do meu surto hoje pela manhã. Pavor de me deixar e aquele temor voltar a fazer parte da minha vida. Assim como tu, não sei como seria a minha terça-feira sem ter o seu olhar caminhando comigo”.
Márcio ouviu toda a declaração da esposa e, silenciosamente deixou que o perfume que emanava d’alma da esposa lhe embriagasse o espírito. Lentamente o sono foi chegando para a dupla que se sentia mais leve a cada conversa, cujo conteúdo objetivava fortalecer o sentimento que unia a dupla, que de longe, parecia irreconciliável, porém o editor era a pessoa que a empresária precisava em sua frívola vida de outrora e ela se encaixava exatamente naquilo que Márcio desejava para si: alguém que expulsasse o medo terrível que tinha do dia seguinte.
Quando Márcio e Angélica acordaram na terça-feira, a chuva tinha reduzido consideravelmente e, enquanto se ajustavam para ir ao trabalho, os dois repassavam a agenda e pelo olhar da esposa, se sentia mais leve, segura e consciente de que o dia seria significativo. “- Amor! Depois que tomarmos café, te deixarei no seu apartamento para continuar arrumando tudo. Em seguida almoçaremos juntos e de lá para a terapia e logo após a consulta conferiremos como ficou a sede de sua editora”.
– Ótimo paixão. Depois escolherei os móveis que decorarão o ambiente. Eu não abro mão disso. Afinal quem vai trabalhar lá sou eu e não a senhorita.
– Quem disse? Se tu escolher mobília como se vestia, esquece. Tarsila, Fernanda e Débora me auxiliarão. O máximo que tu e Roberto farão é ficar num barzinho próximo nos esperando.
– Fazer o quê né? Se eu disser não, o mundo acaba. Então quero ele inteirinho contigo dentro.
Já dentro do elevador, Márcio fez questão de segurar bem firme na mão da empresária e ela o observou detalhadamente, lhe agradecendo pela paixão, pelo amor, pela amizade e o carinho que ele a transmita. “- Marzinho. Hoje gostaria de roubar uma estrela para iluminar sua vida eternamente”, disse toda eufórica a empresária.
– Não seria melhor tu ser essa estrela? Deixe aquelas que estão no céu para iluminar o caminho de nosso amor, enquanto você e seu coração me enchem de regozijo por existir em minha vida.
Entraram no automóvel, se deslocando à confeitaria. Ao adentrarem o prédio e se acomodaram à mesma mesa de sempre, Jordana se dirigiu à empresária para agradecer a ajuda que a família recebeu por conta da tragédia que se afetou a todos. “- Querida, não precisa agradecer nada. Fiz aquilo que achei certo, pois se estivesse em seu lugar desejaria que me estendesse a mão num momento de infortúnio. Por isso, lhe solicito que não falemos mais nisso e que não fique dizendo nada a ninguém. Quem ajudou não quer publicidade e espero que quem recebeu o auxílio também faça o mesmo”.
– Obrigado dona Angélica. Seremos gratos sempre.
– Agora volte ao trabalho, pois é ele quem lhe garante o salário mensal.
Márcio olhava em silêncio para a esposa, enquanto ela dialogava serenamente com a funcionária. Nem parecia aquela mulher do dia anterior que estava encolhida no canto da sala, sendo protegida pelo irmão. Quando ela volta as atenções para o esposo, este apenas lhe soprou um eu te amo que a deixou toda encabulada e com os olhos brilhando.
Assim que sorveu um quantum de café quente, o editor escutou o som do seu celular e, ao atender, ouviu Roberto perguntando se estava tudo certo e se a Angélica estaria nas empresas naquela manhã. “-Sim. Estamos a caminho. Eu ficarei na editora e ela chegará logo depois”, informou o esposo.
– Márcio, marcarei amanhã com o ortopedista para você tirar essas talas e ver se tudo ficou cicatrizado. Adiantarei umas coisas aqui hoje para ir contigo.
– Pode marcar, meu amigo, mas tenho certeza de que não precisará me acompanhar. A dona da pensão não te liberará em hipótese alguma. Ela já disse que não abre mão de me acompanhar amanhã. Sendo assim, só marque o retorno. Sou grato a ti, Roberto, pois sei que hoje à tarde tu terás outra coisa para fazer: me fazer companhia enquanto espero as mulheres escolherem os móveis de minha editora.
Roberto gargalhou, pois sabia o quanto Márcio não apitava nada de nada. Para não brigar em casa, sempre fazia os gostos da mulher. Não era por conta do dinheiro dela, mas porque o editor tinha aversão por quiméricas querelas, como aquela de mobiliar a própria empresa.
Terminaram o café da manhã, deixando a confeitaria de mãos dadas, porém, antes mesmo de saírem do prédio, Márcio abraçou a esposa e esta, parando, lhe deu um fraternal beijo que provocou inveja em quem estava no interior do estabelecimento e nos colaboradores.
Maria Rita olhou para Jordana, lhe perguntando se ela sabia porque o marido da patroa estava arrastando de uma perna. Diante da resposta negativa, ela completou: “- Ela lhe deu um pontapé porque ficou cega de ciúmes. Foi naquela noite em que o marido estava com mais dois homens e acho que um era irmão dele, pois se pareciam muito e umas mulheres se sentaram à mesa com eles. Uma delas começou a passar a mão no marido ai da patroa e justamente nessa hora que ela chegou”.
– Como sabes disso Maria Rita?
– Minha irmã é garçonete lá a noite para poder pagar a faculdade. Ela me falou que a coisa foi feia e depois no dia seguinte viu ele entrando numa clínica ortopédica com um daqueles cara que estava com ele na lanchonete na noite anterior.
“- É! Ela é doida mesmo. Se fez isso com o marido, imagina o que não faria com aquelas mulheres”, disse Jordana.
– Ela já espancou uma ex-namorada dele no banheiro do restaurante que a família mantém no shopping. Por isso eu nem me arrisco a olhá-lo. Ele é o que se pode chamar de homem especial, mas já tem dona e que proprietária! Lógico que arrisco uma olhadela, mas com um medo danado.
O gerente ouviu a conversa das duas e começou a rir. “- Meninas! Esse homem passa maus bocados na mão dessa mulher aí. Ela é osso duro de roer. Ai dele se olhar diferente para os lados. Vocês já presenciaram isso aqui, então tomem cuidado. Fiquei sabendo que o celular dele é grampeado e ele sabe, mas nem liga. Ou seja, ela sabe para quem ele liga e quem lhe telefona. Certa vez, a briga foi de lascar aroeira. Ele estava num motel e a mãe ligou para saber como o cara estava e ela quem atendeu, achando que era de uma amante dele. Então imaginem o rolo que deu”.
Dentro do carro, Angélica abraçava e beijava mais intensamente o marido, dizendo que iria amá-lo sempre. “- Agora vamos. Temos muito trabalho hoje e o dia promete ser longo. Mas a noite quero tê-lo em meus braços e quem sabe podemos sair e fazer aquele programa que desejava realizar no domingo à noite”, disse Angélica.
Ao terminar de dizer, a empresária ligou o carro e em questão de minutos o casal estava defronte ao prédio em que Márcio havia morado e agora tinha se tornado a sede provisória da Jardim da Leitura. Ela o ajudou a chegar no imóvel e quando estava à porta para sair, Tarsila chegou, cumprimentando a cunhada, indo logo para a cozinha passar um café.
Ao se despedir, Angélica pediu para a cunhada tomar conta do marido. “-Pode deixar, dona dinamite dos olhos esverdeados, mas se bem que se eu conheço esse homem, não dará um passo sem estar contigo. O amor dele é maior do que a via láctea”, disse a tradutora caindo na gargalhada.
Já no térreo, Angélica sentiu o corpo leve, como se sua alma quisesse conduzi-la pelas estrelas e o veículo fosse as nuvens. “Acho que não é só ele que tem esse amor. Também não consigo mais andar sem tê-lo comigo e a certeza de que a noite estaremos juntos”, pensou a empresária dando um leve sorriso para si mesma.
Nas Organizações Oliveira, um caminhão de trabalho e reuniões a aguardavam. Algumas decisões já haviam sido todas por Amadeu no dia anterior, mas existiam outras que deveriam ser tomadas em conjunto. “- É bom tê-la aqui conosco novamente, dona Angélica”, disse Ricardo quando ela ingressou no andar da diretoria de suas empresas. “- Graças ao seu amigo e o amor que ele me tem”, meu caro Ricardo, disse a patroa.