Sobras de um amor … parte III

17.

 

No final do dia quando aqueles que permaneceriam na mansão providenciavam suas higienizações para a ceia noturna que encerraria aquela primeira parte dos festejos comemorativos da junção dos negócios entre as famílias de Márcio e Angélica, Fernanda estava do lado do amigo como quem lhe pedisse proteção. Desde a observação feita por Ricardo, ela e o noivo não ficaram mais sozinhos e sempre que a situação caminhava para isso, a secretária da diretoria, se desvencilhava com Roberto ou Marzinho.

“- O que eu faço, meu amigo”, perguntou Fê ao editor.

– Querida se eu fizesse essa pergunta para ti sobre Angélica, o que me dirias?

Ao ouvir a resposta em forma de outra pergunta, a amiga refletiu e argumentou: “- Mas ele duvidou de sua masculinidade e tentou justificar como sendo hábito. Então acho que deveríamos parar por aqui, pois o machismo dele, ligado a um quantum de homofobia, foi enorme e não sei se tenho estomago para tanto”, explicou Fernanda.

– Fê! A primeira coisa que deve ter em mente é o seguinte: as qualidades dele são maiores do que os defeitos? Essa postura dele, faz parte da sua essência ou ele adquiriu isso junto dos colegas? Preste atenção que Ricardo nunca fez parte de nossa roda de amigos. Angélica vivia em outro universo e só apareceu no meu mundo porque atravessei o sinal vermelho, encontrando o irmão dela caído na sarjeta”.

Fernanda prestava muito atenção ao que Márcio dizia. “- Eu e ela vivemos às turras por uma série de fatores, inclusive por ciúmes retratados nessa perna imobilizada. Ela morou com outra mulher por cinco anos, sendo que teve um relacionamento por sete anos com Rosângela. Não sei quem aqui tem condições de condenar alguém. Creio que Ricardo está precisando, na verdade, é trocar de universo, deixando aqueles colegas de lado. Ele já sabe que você não fará parte da turminha dele. Angélica rompeu com uma sócia por conta do racismo e a mãe dela me agrediu em virtude da mesma visão preconceituosa. Portanto, eu tinha mil razões para não estar aqui hoje, mas estou porque acredito que as pessoas, que não tem na sua essência uma visão que externam por força do hábito, podem reformular suas visões de mundo que eram baseadas no senso comum”.

Fernanda pegou na mão do amigo que continuou a dizer: “- Muita gente pensa que sou homossexual, inclusive a Alice quando morei na casa dela por conta da briga com o meu pai. Ela só me aceitou lá porque queria esconder de todo mundo que gostava de mulheres e eu seria o disfarce perfeito, pois, na cabeça dela, eu era veado. Tive uma briga feroz com Rogério porque ele também achava que eu era gay”.

“- Você está querendo me dizer que não é a primeira vez que te dizem que tu és veado sem, no entanto, te conhecer, pois não é de ficar se atirando em cima de toda a mulher que passa diante de ti”, perguntou a amiga.

– Exato. Por isso que te digo: não estrague sua felicidade por uma observação triste e lamentável do seu noivo, mas lhe dê uma chance para se redimir. Deixe ele te fazer feliz. Você merece. É uma mulher genial, uma pessoa fantástica e está na hora de fazer esse belo coração contente. Mas isso se tu amas as qualidades dele e respeita os defeitos. Traga ele para junto de ti e não procure o Marzinho nele, pois com certeza, não encontrarás.

Fernanda ajudou Márcio a ficar em pé e o abraçou chorando, dizendo que a conversa tinha sido vital. “- Você e Angélica não se bicaram no começo. Saíram no braço e eu fiquei do lado das duas. Ela é minha esposa e tu és minha melhor amiga e eu sou meio egoísta: quero as duas em meu mundo. Então é trabalhar para conciliarmos as duas coisas”, explicou o editor.

A secretária de Angélica saiu em direção ao interior da mansão, enquanto o editor ficou no mesmo local olhando para o céu que começava a ser tingido de laranja, o que sempre o encantava. Não podia condenar e nem querer retratação de Ricardo pelo que disse a seu respeito, pois sabia que comentários daquele nível sempre foram feitos dentro da própria família, o que fez com que ele se afastasse lentamente dos primos e fosse construindo um mundo só seu. Como podia abrir a cabeça das pessoas e dizer que não era gay, mas apenas queria uma pessoa que lhe completasse a essência e não para ficar se exibindo com ela para cima e para baixo.

Enquanto dialogava com o laranja que abria espaço para o azul escuro e as primeiras estrelas no firmamento, Márcio voltou seu pensamento para o namoro e rápido noivado com Márcia. Tudo aconteceu tão veloz pelos motivos que todos já sabiam: ela queria provocar os pais e ele tentava evitar mais comentários sobre a sua sexualidade. Deu no que deu: agressões e mais humilhações que foram purgadas e revisitadas nos cinco anos que vivia ali naquela cidade escondido de todos, até a chegada de Angélica em sua vida.

Olhando firmemente para a primeira estrela que vislumbrou no céu, lhe perguntou para onde tudo aquilo o levaria. Se sentia desajustado de tudo e de todos e a esposa, que tanto amava, vivia em constantes instabilidades: um momento era o ciúme, outra era o medo do futuro. “Todos tem um certo receio do futuro, pois a vida pode terminar num cisco, numa fração de segundo, no entanto, quiçá esse medo, caminham”, pensou o editor que sentiu que alguém se aproximava.

Não fez menção de se virar e ver quem era, pois não seria ninguém estranho. “- Márcio posso falar contigo”, perguntou Ricardo. “- Achei que já tínhamos conversado tudo sobre a sua opinião a respeito de minha pessoa e dúvidas quanto ao fato deu ser ou não espada, pois você e seus amigos devem achar que só é homem aquele que fica dizendo que comeu fulana e beltrana, mas que no fundo todos sabem que tudo não passa de gorjeios de punheteiros, já que o verdadeiro homem transa e não sai contando, primeiro porque respeita a pessoa com quem está com ele, mas sempre há exceções e Fernanda faz parte dessa exceção e detesta ser motivo de conversa fiada entre seus colegas. Se eu souber de alguma coisa, tu já sabes das consequências”.

– Sei sim, meu caro. E novamente lhe rogo minhas sinceras desculpas. Conversei agora com Fernanda e meus pais que informaram que o mundo que eu conhecia, se pretender levar adiante meu relacionamento com a sua amiga, não deve fazer parte da vida que pretendo ter com ela daqui para frente.

– Meu caro, me responda uma coisa só: mas mais para ti do que à minha pessoa: o que você sente por Fernanda? Ela é uma mulher sensacional, bonita, inteligente, tem valores éticos e morais, apesar da vida fodida que levava até que nos conhecemos. Não é uma pessoa perfeita, mas sabe muito bem onde quer chegar. Então se quiser só sexo com ela, eu lhe peço encarecidamente, siga o seu caminho.

– Eu realmente a amo Márcio e sei que para viver em harmonia com ela, terei que rever muitas coisas que eu considerava com sendo a correta, pois nunca fui, vamos dizer, obrigado a rever minha visão de mundo.

– Mas tenho certeza de que essa sua visão de mundo não foi adquirida junto aos seus pais. Adélia e Romualdo me parecem ser sensatos e sua irmã, se fosse diferente do que é, jamais seria funcionária de minha esposa. Então só posso pensar duas coisas: ou você é imbecil ou inseguro.

– Outra coisa que eu não estava acostumado: com a sinceridade. Todos vocês são muito francos e verdadeiros uns com os outros. Isso me assustava e, de certa forma, me dava medo. Por exemplo, fiz um comentário com Fernanda e ela foi correndo de contar. O fez isso porque te ama e tenho certeza que isso ocorreria com Roberto. Danisa me disse que qualquer um que se aproximar de vocês e não entender esse sentimento que une os três, poderá ter problemas.

“- Fernanda é minha amiga e me apelidou de perneta desligado porque tropeçou no meu pé enquanto eu lia com a perna esticada num bar em que estávamos e na segunda-feira nos reencontramos na fila de uma lotérica e tem sido assim desde então. Ela cuida de todos nós e nós cuidamos dela. Por isso que te disse: se não tem capacidade de cuidar dela, melhor se afastar para que ela não se machuque”, disse Márcio convicto.

– Eu a amo e sei que o sentimento dela é semelhante ao meu, sem contar que enxerga em meus pais, não futuros sogros, mas amigos e eu tenho que me interagir nesse sentido.

– Você não precisa abrir mão de suas coisas para ficar com Fernanda ou torná-la feliz, mas deve fazer uma profunda reflexão sobre quem tu és de fato, pois isso poderá entrar em rota de colisão com o jeito dela ser. Ela nunca aceitará ser troféu de ninguém e, se está sozinha ainda, é justamente por se manter fiel ao que pensa ser o melhor para si.

– Eu vejo como ela conversa com sua mulher. Nem parece que chegaram a sair nos tapas por conta de ciúmes de ti.

– Fernanda e Angélica têm coisas maravilhosas: são autênticas e é isso que primo no ser humano. Sua franqueza. Então, penso que terá que escolher: ou fica com Fê e se afaste daquela sua turma de mentecaptos, pois pessoas que julgam os outros sem conhecer; fazem competições entre si para comer o maior número de mulheres possíveis só podem receber essa adjetivação. Agora se optar por essa patota, esquece a minha amiga. Eu sinceramente se fosse você, ficaria com a segunda opção. Tenho certeza de que ela não te emprestará o guarda-chuvas, mas ficará na tempestade contigo.

– Eu sei Márcio.

– Observe que ela hipotecou parte do salário nos próximos cinco anos nas empresas de minha mulher para comprarem a vista o terreno e conseguirem um bom desconto. Sua irmã fará o projeto da casa do jeito que desejarem. Tua noiva colocará toda a reserva financeira dela nessa residência; seus pais estão empenhados, abraçaram ela. Então meu caro, deixe de alcovitice e trate de fazer Fernanda feliz, do contrário, tu terás sérios problemas comigo e não é porque pensa que sou gay ou não, pois a sua opinião sobre isso não me interessa. Se eu tivesse que provar alguma coisa, seria para a mulher que eu amo e essa tem certeza de que sou homem e também se não fosse, isso só diz respeito à eu e ela e mais ninguém.

– Obrigado Márcio pela conversa. Tenho certeza de que não o decepcionarei.

– Não é à minha pessoa que tu deves dizer isso, mas a Fernanda e não só falar, mas sobretudo não a decepcionar como vem fazendo nos últimos dias. Acho que já gastou seu arsenal de fazer merdas e ela tolerar. Não quero aconselhá-la a te deixar, pois se eu fizer isso, nem Jesus Cristo faz ela colocar aliança no dedo reafirmando o compromisso contigo.

Assim que Ricardo se afastou, Márcio percebeu que a conversa entre os dois tinha sido presenciada por Angélica e Fernanda. A secretária alcançou o noivo, o abraçando, indicando que caminharia com ele, o ajudando a aprender a conviver com a nova realidade que lhe se apresentava. O amor que tinha por Fernanda o pegou de surpresa e o fato de não terem transado ainda também, pois não queria apenas uma trepada, mas algo duradouro, já que se sentia seguro quando estava com ela.

“- Este teu amigo é foda. Nos encosta nas cordas e senta o braço sem dó nem piedade”, disse Ricardo para a noiva que, imensamente feliz lhe respondeu; “-Ele só quer o meu melhor e se isso for você meu preto, então, não se oporá e acho que deves começar a se acostumar com isso. Não quero levar para ele e nem ao Roberto os nossos problemas. Acho que devemos pensar mais em nossos projetos, inclusive casamento, escolha dos móveis. Espero que dentro de um ano estejamos fazendo uma festa desta para os nossos amigos”, expôs Fernanda toda empolgada e feliz.

Enquanto a secretária da diretoria das Organizações Oliveira buscava equilibrar o noivado depois daquelas infelizes observações feitas pelo noivo sobre o seu amigo. Angélica, abraçada ao marido, revela que ficou um tempão o observando enquanto ele conversava com a primeira estrela que surgiu no firmamento.

“- Amor, você fez algum pedido para aquela estrela que estava paquerando no céu”, inquiriu a esposa.

– Não! Só lhe perguntei para onde iríamos: eu e você.

– E ela respondeu?

– Acabou de me responder.

“- E o que foi que ela te disse”, questionou a empresária.

– Que vou te amar para sempre e isso é tudo o que eu precisava saber aqui e agora, pois o resto é consequência desse sentimento. Se o que sinto por ti continuar aqui dentro do meu coração, estarei em paz comigo mesmo e com o mundo.

“- E seu eu não estiver contigo amanhã, como será”, indagou a amada de Márcio.

– Eu seguirei te amando, pois não a amo para ser minha propriedade e exibi-la como prêmio. O meu sentimento por ti vai além do pertencimento um do outro, portanto, a única coisa que desejarei sempre é que tu estejas feliz. Se isso acontecer, mesmo que não seja comigo, estarei em paz com o meu amor. Por outro lado, saberei seguir em frente sozinho, pois não conseguirei amar outra pessoa como te amo.

– Marzinho, mas eu sou tão confusa. Vivo perguntando isso e aquilo e com um medo terrível do amanhã. Também te amo e quero te ver e te sentir feliz, mas tem isso tudo que me assombra.

– Querida! Eu não sei do amanhã. Só posso dizer sobre o ontem porque já foi vivenciado e do agora que está sendo vivido. Quando te vi pela primeira vez naquele boteco numa tarde de domingo, tinha certeza de que minha noite seria gelada e triste, mas depois daquele minuto te olhando, o frio foi embora e eu só pensava em lhe conhecer. Você surgiu como uma estrela para iluminar o meu dia e o meu futuro.

Angélica fixou o olhar no esposo que continuou. “- Se naquele dia alguém me disse como a minha esposa era e que não haveria futuro para nós dois, talvez eu pudesse até aceitar, mas ninguém disse nada. Muito pelo contrário, me aconselhou a não se aproximar de ti, pois não era assunto meu.

Com os olhos brilhando, Angélica continuou fitando o esposo que completou: “- O futuro daquele dia é o nosso presente. Então, hoje vou te amar de todo o meu coração, pois se naquele dia, sem te conhecer, minha vida foi aquecida, imagina agora que lhe tenho aqui comigo todos os dias, horas, minutos, segundos, fazendo loucuras por conta do sentimento que me tens”.

– Quer dizer então que não preciso ter medo do amanhã e nem do seu devir?

– Amor. Uma vez eu te disse e repito agora: perto dos seus, os problemas que eu tinha eram nada, só coisas quiméricas. Existem coisas aí dentro de ti que talvez não saiam nunca, mas tu terás que aprender a conviver com eles. Essa merda de observação de Ricardo, não foi a primeira e nem a última vez que ouvirei questionamentos sobre a minha sexualidade, contudo, se eu ficar arrumando confusão com todo mundo, não conseguirei ser feliz. Não posso atrapalhar a felicidade deles porque aquele o moleque cresceu convivendo com gente de mente reduzida e agora ele se depara com uma realidade diferente. Se quiser seguir em frente com Fernanda, terá que mudar muito a maneira como vê o mundo e assim será conosco.

Angélica envolveu o marido num abraço, o beijando ternamente e sentindo o calor que envolvia a alma dos dois. “- Meu amor, não sei como será o amanhã, mas hoje posso te garantir que a única coisa que desejo é estar contigo todos os dias”, disse a esposa.

– Está vendo como a estrela já me respondeu a pergunta que lhe fiz. Estaremos juntos sempre porque te amo e sei do amor que me tens e isso é a coisa mais importante nesse momento, e é por isso que amo te amar meu amor.

Márcio aperta mais Angélica em seu peito no exato momento em que se aproxima do casal Eleanora e Judith. Em uníssono as duas disseram: “-Finalmente os dois se entenderam. Parabéns à dupla” e a sogra do editor completa: “- Agora vejam se não desperdiçam tempo com brigas, rusgas e portas fechadas e chutes nas canelas e partes intimas. Queremos vê-los bem”.

“- Mãe! O que eu faço sem esse homem em minha vida”, perguntou a empresária.

“- É só parar de se perguntar tanto sobre o futuro e viver o que sentes agora. Deixe o amanhã com o seu devido devir e o ontem com o seu respectivo pretérito”, disse Judith acrescentando que agora poderia voltar para a casa dela sabendo que o filho estava feliz com a dinamite dos olhos esverdeados que ele tanto amava.

“- Dona Judith, agora eu entendi profundamente o significado da pergunta que eu lhe fiz sobre a senhora deixar o meu pai: impossível”, disse Márcio todo feliz tendo Angélica envolvida em seus braços.

“- É meu nego! Teu pai é especial, assim como tu e seus irmãos. Eu moraria com Rogério até embaixo da ponte. Sem ele, uma mansão, como esta aqui, seria assombrada e sem vida. Espero que Angélica seja isso para ti e sua vida!”, informou Judith.

– Ela é mãe. Tenho que estar mais com ela, passar-lhe segurança, sem precisar deixar de ser quem eu sou.

Judith e Eleanora abraçaram Angélica porque a sentiram mais leve, serena e feliz. “- Venha filho, vamos jantar para depois cada um procurar o seu buraco e descansar. Teu pai vai bancar o almoço amanhã e já disse que será churrasco novamente e depois tu podes comer aquelas coisas de frescos”, disse a mãe rindo e dando um tapa carinhoso na bunda de Angélica que tinha consciênciade que segunda-feira tudo seria diferente, inclusive no hábito alimentar e também seguiria firme na terapia e Márcio estaria lá a sua espera.

Encerrado o jantar, cada um foi para o seu lugar na mansão ou em suas casas. Fernanda optou por ficar na casa de Adélia e Romualdo, mas nada de intimidades com o noivo. Ele ainda estava em débito e ela no vermelho. Mas ficaram todos conversando até de madrugada, acertando que na segunda-feira adquiririam o terreno e Ricardo estava ciente de que teria que mudar os hábitos, nem que para isso tivesse que mudar de amigos, mas naquela semana estaria completamente ocupado com os projetos encomendados por Márcio e Tarsila.

No apartamento da empresária, o casal chegou exausto. Márcio reclamava da perna imobilizada, querendo tirar todas as talas, mas foi aconselhado pela esposa que faltavam poucos dias e tudo estaria normalizado. Angélica o ajudou a se higienizar e depois foi a vez dela, enquanto o esposo a aguardava na cama. Quando a empresária se deitou ao seu lado, respirou fundo, dizendo ao marido: “- Amor, tu não sabes como essa cama fica enorme sem você aqui comigo. Não quero mais ela vazia. Desculpe-me por ontem a noite”.

– Querida. Haverá dias em que o Márcio homem terá que ceder espaço para o editor amigo e este muitas vezes ao Marzinho homem. Quero te contar sobre um livro que li e gostei e a editora publicará, bem como quando fizeres algo maravilhoso em seu escritório de arquitetura ou em suas empresas e me falar. Quero te levar para jantar e ao voltar para casa esteja mais leve do que sai. Desejo vivenciar contigo noites como aquela quando fomos naquele restaurante ali na cidade vizinha”.

“- Eu sei amor, mas às vezes a coisa da uma bagunçada aqui dentro da cabeça”, justificou Angélica.

– E é justamente nesses momentos que a amizade é fundamental. Quero estar contigo, como amigo, amante e esposo. Se for possível viver essas três etapas numa noite, ótimo. Se não for possível, que a amiga esteja presente, que a profissional esteja aqui comigo dividindo seus sonhos, desejos e inseguranças.

Angélica o abraçou e em seguida deixou os dois abajures com luzes fraquinhsa, enquanto o marido dizia ter medo também, mas não podia alimentá-lo, optando sempre por ver a situação sobre outro prisma.

“- Obrigado amor, por me amar assim. Eu também te amo do jeito que tu és. É o meu bombeiro quando preciso apagar os incêndios que minha consciência perturbada provoca e o meu marido quando me aquece provocando mil labaredas em todo os meus seres”, disse suspirando Angélica.

Sentindo o calor da esposa e ela o do marido, o casal adormeceu com o sono chegando lentamente, enquanto Márcio compreendia a impossibilidade de seguir em frente sem Angélica e, em virtude disso, não queria ser assombrado pelo futuro e nem pelo passado em que a empresária havia sido casada com outra mulher. Em seus pensamentos, como isso ainda não aconteceu, não havia porque pensar naquele momento. Ela, por sua vez, tentava entender tudo o que havia acontecido nos últimos dias e, por mais que se esforçasse, não conseguia dar conta de sua totalidade, compreendendo apenas que amava Márcio, independentemente de seu apreço por outras mulheres e, caso isso acontecesse no futuro, conversariam, então o presente era para estar ali inteira com ele, como o marido estava com ela.

A dupla desperta quando o Sol já ia alto, isto perto das 10 horas. Ao abrir os olhos Márcio observou que a esposa estava sobre o peito, a exemplo do que havia acontecido na primeira vez que dormiram juntos ainda na condição de amigos. O editor fez um movimento despertando lentamente a esposa que o abraça, beija, dizendo de forma carinhosa. “- Ainda bem que você está aqui comigo meu nego lindo”.

“- Vamos ficar mais um pouco aqui, amor. Não vamos a lugar nenhum hoje. Te quero só para mim. Não aguento mais ter que dividi-lo com ninguém”, pede a esposa, mas a resposta do marido foi negativa. Rindo Márcio lhe disse: “- Minha mãe e todos vão embora hoje e precisamos tratar dos últimos detalhes do supermercado e de ficar de olho no Esdras”.

– Não entendi. Quem comprou o terreno fui eu, quem entrou de sócio foi o general e minha mãe. Então que história é essa de tratar dos últimos detalhes? Ah! Já sei, quer ficar mais um pouquinho do lado da mamãe que mima o filhão de 35 anos.

Ao dizer isso, Angélica deixa a cama dando gargalhadas e jogando um beijo para o esposo dizendo que o amava loucamente. “-Venha! Deixe-me te ajudar a se higienizar. Na quarta-feira vou contigo ao ortopedista tirar essas talas e ver se a lesão cicatrizou”.

O editor se ajeitou do lado da cama, esperando o auxílio da empresária. O casal partiu para o chuveiro e assim que o marido terminou, se arrumou, ficou na sala esperando Angélica se aprontar. Queriam chegar cedo à mansão, pois Judith afirmou no sábado que sairiam no meio da tarde para não pegarem congestionamento na estrada e Mariana queria voltar ao seu mundo rapidamente. “- Não é por nada não Angélica, mas lá é o meu lugar. Me sinto bem no meu espaço. Pode ser que um dia eu venha desejar morar aqui, mas hoje tudo o que tenho e sei estão lá. Você me entende né”, explicou a cunhada.

“- Claro que eu te entendo, cunhada. Quando morei nos EUA desejava voltar o quanto antes possível. O ano não passava, se arrastava, até que chegou finalmente o dia deu estar onde eu realmente existo”, explicou a empresária na tarde do dia anterior.

Tendo essa conversa em pensamento, Angélica conduziu o automóvel até a mansão. Durante o trajeto apertava a mão do maridão, alisava a perna e determinado momento, pode ver que Márcio estava excitado. “Assim que tirarmos essas talas vamos nos divertir bastante. Estou com saudades de senti-lo todo dentro de mim”, pensou a esposa com um olhar terno para Márcio que compreendeu a cumplicidade presente naquela observação.

Ao ingressarem no estacionamento da residência, Débora já estava lá, indo recepcioná-los, bem como Fernanda, Ricardo, Adélia, Romualdo e o pessoal que tinha ficado para dormir na mansão. Novamente o general tentou voltar para a casa, mas o calor dos braços de Eleanora foi mais convincente e ele acabou sendo arrastado para a cama da sogra de Márcio que lhe proporcionou uma bela noite de amor.

Quando Angélica encontrou Eleanora, a notou diferente e suspirou no ouvido dela: “- O general fez o que com a minha mãe? Te levou para passear entre as estrelas como Tarsila faz com Amadeu”, perguntou a empresária.

“- Não vou te falar nada, pois nunca perguntei como teu marido te come”, disse a mãe dando risada com a filha. “- Estou feliz pela senhora. Ele é todo seu e ainda mais se deixar aquela farda verde-oliva”, respondeu a filha dando um beijo de felicidade na face da mãe.

“- E vocês dois? Como estão”, perguntou a matriarca.

“- Depois de ontem e de muito pensar, comecei a perceber que não adianta ficar preocupada com o que ainda não é. Tenho que viver o aqui e o agora e o que eu tenho é sempre esse homem maravilhoso do meu lado. O dia que ele deixar de ser, aí a gente conversa e dá o rumo que for preciso, mas até lá, não quero pensar mais nisso. Sei que se ficar sem ele no presente, ficarei despirocada e sem juízo como meu irmão ficou”, respondeu a filha, toda sorridente.

As duas deixaram Márcio aos cuidados dos pais e ingressarem para o interior da mansão. A conversa de mãe e filha foi mais de amiga para amiga. “- Filha, sei que não tenho direito de te pedir nada, pois sei o quanto fui uma mãe ausente, mas não deixe os pais do Marzinho ficarem se intrometendo entre vocês dois. Qualquer coisa que tiverem, procure não deixar vazar nada. Roberto é uma ótima pessoa, mas ainda se sente responsável pelo seu marido. Eles se cuidam, então um nada que falares para ele, cairá no ouvido de Judith que é um trator.

– Está bem mãe. Eu sei que me equivoquei ontem pela manhã. Márcio também não quer mais isso. Preciso deixar de ser infantil, mas não é fácil.

– Eu sei disso filha e compreendo os motivos que não te deixam confiar em sua mãe, mas não se afaste da terapia e, para que seu casamento caminhe, se feche entre você e seu marido, como Tarsila faz com Amadeu e o próprio Roberto com Danisa.

Angélica ficou olhando para a mãe, enquanto ela continuava. “- Eu conversei com Alexandre e entendo o motivo porque eles são tão discretos. Márcio é idêntico ao general justamente por não gostarem de exibicionismo e quando confiam são amáveis, mas se desconfiam, saem sem deixar pistas. Aí eu me lembrei da fuga de seu marido para o Pontal”

– Mãe. Eu e o Márcio estamos nos ajustando e é lógico que ele tem muito mais experiência, maturidade e viveu o mundo sem a proteção do dinheiro e os benefícios que Leônidas e Esdras tiveram. Então, tudo isso aqui para ele como para o seu general não é nada. O que importa são as pessoas. Sei que ele seria capaz de viver comigo numa palafita se sentisse que está me fazendo feliz.

Eleanora só olhava para a filha enquanto ela lhe abria o coração. “- Eu não conseguia viver o presente com ele. Estava sempre preocupada com o dia seguinte e daí o ciúme e sempre procurando fantasmas no futuro arrastando os do passado. Mas todos os amigos dele têm me ajudado, Tarsila também e principalmente ele, mãe, tem sido um amigo, antes de ser meu marido”, explicou Angélica.

– Fico imensamente feliz por ti. Não aguentava mais ver Judith ficar te passando descompostura por conta do filho dela e você estar sempre errada e eu sem saber como te ajudar, justamente por ter ciência de que sou culpada por muita coisa do seu presente.

– Mãe! Vamos tentar viver daqui para a frente. A senhora fez terapia para se entender. O meu marido tem lhe ensinado muita coisa e sei o quanto está lutando ai consigo mesma. Não desejo em hipótese alguma ficar lhe apontando o dedo e te acusando de coisas que hoje nós duas podemos enxergar diferente.

– Obrigado filha. Precisava ouvir isso de ti, sabendo que veio de sua alma.

– Márcio poderia ter metido o pé na minha bunda faz tempo, por tudo o que lhe aprontei e sei que muita coisa foi fruto de capricho, mas em nenhum momento desistiu de ficar comigo. Queria muito me esquecer, mas não me abandonar. Fernanda me disse de forma bem direta: se eu não puder amá-lo como mulher, é melhor deixá-lo e com certeza eu terei nele um amigo.

“- Alexandre é assim comigo filha. Tem sido o que seu pai não foi. Não o culpo, pois nunca me amou. Foi um ótimo marido, lá do jeito dele e nunca deixou me faltar nada, mas o dinheiro me cegou e eu não via mais nada. Foi preciso a porrada do seu marido naquela manhã no hospital para eu perceber que teria que mudar o meu jeito de ver o mundo e tratar as pessoas”, desabafou Eleanora.

– Ele vem batendo em muita gente, sem precisar usar as mãos, mãe. A postura dele com Ricardo ontem quando este zombou da masculinidade dele, foi impressionante e ainda não deixou a amiga se separar do noivo. Explicou para ela como deveria proceder e cobrou dele que faça Fernanda feliz.

– O pai dele pegou Ricardo pelo colarinho e disse que se ele duvidasse novamente da masculinidade do filho, o faria engolir as bolas. O moleque se borrou todo.

“- É isso mãe que me deixa tranquila. É saber que esse pessoal todo não está aqui por conta do dinheiro que temos. Não querem aparecer, detestam imagens, exposições e sabe por quê? Porque desejam ser livres e não querem ficar achando que são os donos do mundo”, explicou Angélica.

Eleanora olhou para a filha, dando uma piscadinha lhe disse: “- É todo seu, filha. Eles te adoram como tu és e não te pedirão para ser assim ou de outro jeito. Assim como você, também estou bestificada de ver como me sinto leve ao lado deles me ensinando cada dia mais um pouco”, revelou a matriarca.

– É essa paz que tenho medo de perder. Sei que Roberto, além de um bom profissional, é uma excelente pessoa que teve que ralar muito para chegar até aqui e não tem nada de arrogante e é diretor lá nas empresas, fora dela, é um homem comum que se volta para o amor que tem e recebe da mulher. Desejo ter isso também com o meu marido e sei que só depende de minha pessoa.

Enquanto mãe e filha conversam sem segredos no interior da mansão, Márcio chegou perto do irmão e do pai que lhe ofereceu um andador que achou na casa. “- Era do teu sogro e eu encontrei, perguntei para Eleanora e ela disse que se tu quiseres levar, é seu”.

– Não pai. Posso até usar aqui, mas na minha casa não quero nada disso.

“- Por que quem usou já morreu”, perguntou Rogério.

– Não pai. Prefiro não ter nada que lembre do Jô dentro do meu apartamento. Tenho tido muito trabalho para ajustar as porcarias que ele fez com os filhos. Mas deixa para lá, vamos seguir em frente.

– E tu e a tua dinamite dos olhos verdes?

– Estou conseguindo equilibrar as coisas e vocês têm sido geniais, mas creio que daqui para frente, não levaremos tantos problemas para os amigos e familiares. A jornada agora é colocar para funcionar a nova loja aqui na cidade e Esdras se ajustar de vez com Débora.

– Filhão! Ela é osso duro de roer.

– E vem me dizer que dona Judith é diferente? Ou senhor pensa que a gente não sabe que colocou um cabresto e ai de tu se sair da linha.

– Moleque me respeita. Porra pelos menos você deveria apresentar um pouco de medo do seu pai.

Todos caíram na gargalhada porque sabiam que quem mandava na casa e em tudo era a mãe deles. Ela só não intervinha quando sabia que os filhos estavam errados e aí o chumbo era dobrado.

Márcio perguntou a Esdras como estava indo o relacionamento com Débora e a resposta que obteve fez com que todos rissem novamente. “- Acho que está andando muito com a tua esposa e fazendo as tarefas com mamãe. Pelo amor de deus, que coisa do cão. Não dá trégua e não me olha, mas fica tocaiando para ver onde estou observando. Mas tirando isso, excelente pessoa que me ajuda a enxergar um mundo que eu não via ou me recusava a aceita-lo”.

– Fico feliz por ti meu irmão. E já vai pensando aí em amarrar sua vida aqui na cidade, pois duvido que ela sairá daqui,deixando os pais sozinhos. Se bem que do jeito que Fernanda se afeiçoou a eles.

– E você filho? Se entendeu com o noivo dela?

– Pai, eu sei que se ficar pilhando, contribuirei para a infelicidade da Fê e ela gosta do cara. Agora ele sabe que a coisa é complicada e, se não a fizer feliz, enfrentará todos nós. Ah! Gostei de sua atitude ontem.

– É filho. Aprendi muito nessas semanas convivendo contigo mais de perto e com a família de tua esposa e pude ver o quanto estava equivocado. Obrigado por me ensinar mais um pouco, me tornando menos ignorante.

– Seu Rogério, quando nos abrimos ao conhecimento, tendemos a ficar mais leves e serenos, inclusive aceitar aquilo que não podemos mudar. Racismo, homofobia e toda sorte de preconceitos ainda existem porque as pessoas não fazem a devida reflexão. Acho que Ricardo terá uma grande chance de repensar todos os valores que acredita ser dele, mas que na verdade, estava apenas reproduzindo pensamentos que nunca foram seus e sei que Fernanda o ajudará nessa jornada.

Esdras observava tudo em silêncio, buscando compreender um pouco mais sobre o que ia pela cabeça do irmão e de como isso foi fundamental para encontrar pessoas especiais como a sua esposa e Débora. “- Não precisamos ser pessoas como Dom Quixote, pai. Devemos sempre fazer ao outro aquilo que gostaríamos que fizessem conosco. Naquela noite em que tentei surrar os amantes de Márcia e acabei levando a pior, entendi, cinco anos depois que nunca devemos reagir e sim agir. A reação é fruto do destempero e do instinto e a ação parte da razão e isso não significa que deixamos de sentir, mas o ódio é tão compartilhado quanto o amor, portanto quem odeia absorve um quanto significativo do veneno que destila”.

“- Então foi por isso que não revidou quando tua sogra te ofendeu dentro do apartamento de Angélica enquanto tu tentavas devolver a eles o bem mais precioso que é o filho que estava completamente alucinado”, inquiriu o pai.

– Brigar com ela naquelas condições seria apenas alimentar tudo aquilo que fez Amadeu ficar sem eira nem beira. Eu só queria vê-lo de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído e por conta de ignorância de alguns. E em seguida, queria fazer como um tatu e me esconder no primeiro buraco que eu achasse.

“- Aí a coisa mudou tudo e hoje estamos casados e felizes”, disse Angélica que havia escutado em silêncio boa parte da conversa entre pai e filho.

Ao ouvir a voz da mulher, os olhos de Márcio brilharam e essa alteração não passou despercebido de Rogério e Esdras. A esposa abraçou o marido, lhe dando um beijo na face. “- Sei de uma futura arquiteta que sente a mesma coisa pelo seu irmão, meu amado esposo”, disse a empresária olhando para Esdras.

O irmão e o pai de Marzinho trocam olhares tentando dizer um ao outro que aquela dinamite de olhos esverdeados era completamente doida pelo marido e que podia explodir a qualquer momento caso ele a deixasse.

Rogério serviu o filho com carnes com aquela quantidade de gordura que ele adorava. Angélica só olhou e não disse nada, pois sabia que no dia seguinte poderiam iniciar a mudança do hábito alimentar e que o marido estava totalmente de acordo.

– Filho, se eu pudesse voltar no tempo, com certeza faria tudo diferente, inclusive teria feito muito mais por ti aqui nessa cidade e tenho certeza de que não sofreria tanto. Leônidas e Esdras ficaram comigo e, junto de sua mãe, desfrutaram do melhor.

“- Senhor Rogério. Seu filho é o que é pelo que aprendeu com o mundo e foi bem amparado por Roberto e Fernanda. Eles se cuidaram e tomam conta um do outro até hoje e sei que será assim, então, creio que todos nós podemos fazer mais daqui para frente. O passado só serve para nos indicar o que não devemos fazer no futuro”, disse Angélica.

– Eu sei querida, mas esse meu filho, em silêncio foi me mostrando que as coisas não eram do jeito que eu pensava que deveriam ser. Mas às vezes dói aqui dentro ao observamos os valores que nossos filhos têm quando alguém de fora nos mostra aquilo que recusamos a ver. Você e tua mãe me apresentaram um filho que eu não conhecia, justamente porque queria que ele fosse do jeito que eu imaginava: um pegador, comedor, garanhão, mas Márcio não é nada disso. Por não ser do jeito que eu queria que fosse é que esse homem te levou a atravessar o estado para reencontrá-lo no Pontal.

“- Rogério! Ele é tudo isso e mais um pouco, inclusive eu não conseguia ver direito por conta do meu egoísmo, porque tem muito do senhor e de Judith. Há muita coisa da própria essência dele, mas também uma quantidade significativa do recebeu dos pais. E por isso me sinto amplamente amada por ele e imensamente feliz por não ter me abandonado durante minhas crises infantis”, disse Angélica.

Assim que terminou de falar, Débora se aproximou do quarteto e tirou Esdras da conversa. “- Amor vem comigo. Estou com saudades de ti e de seus beijos, além do que preciso conversar uma coisa contigo”, disse a secretária de Angélica.

– Vocês me dão licença que a futura dona da pensão está me chamando.

Todos deram risadas e a esposa de Márcio aproveitou para deixar pai e filho sozinhos. Entendeu que os dois tinham muito o que conversar. Precisavam deixar de ser pai e filho e se tornarem amigos.

Quando a empresária entrou na mansão, Judith perguntou pelo filho. “-Está lá construindo uma relação de amizade com o pai. Deixei os dois sozinhos. Eles necessitam e o Márcio sentia muita falta dele, da segurança e do amigo”.

“- Verdade menina. Não sei como Marzinho segurou a onda aqui durante todo esse tempo”, disse a mãe.

– Teu filho é um homem especial e sou grata por tê-lo do meu lado. Sei que fiz muitas besteiras e que poderei fazer amanhã, porque não sou santa e nem perfeita, mas tenho certeza de que Márcio estará sempre comigo, Judith.

Sogra e nora deixam a casa e, ao se dirigirem à varanda, enxergam o pai ajudando o filho a caminhar até a piscina. “- Pai! O que o senhor viu na mãe? Ela é dose para elefante, mas nunca vi e nem ouvi o senhor levantar a voz para ela”, perguntou o filho.

– Marzinho. Se estou de pé hoje, isso acontece porque Judith nunca me deixou cair. Mesmo com a minha ignorância, cuidou de ti aqui. Abriu mão de muita coisa para ficar de pé, depois do baque que tivemos nas finanças por conta da sua briga com aqueles degenerados. Hoje posso entender que se fosse comigo, eu tinha matado os três e a merda seria pior. Nunca precisei carregar sua mãe e nem ela a mim, pois nós dois nos carregamos juntos.

– Nunca apareceu ninguém para atrapalhar vocês dois?

– Acho que oferecer a buceta é relativamente fácil e aceitável, mas ofertar-te a alma é coisa mais complexa, pois requer do doador um conhecimento de si mesmo. E essa entrega dela é a mesma que tu fazes com a sua dinamite. Você não a ama por conta disso tudo aqui, pois se fosse isso, seria covardia. Ela tem algo de magistral que só sua alma enxerga e teu coração não encontrará palavra para descrever, mas há uma vontade eterna de estar com ela, de vê-la feliz. Quando dormes com tua esposa, é como se estivesse deitado sobre o brilho das estrelas. É como se o Arquiteto do Universo tivesse edificado o mundo só para vocês dois.

– É isso mesmo pai. Mas como sabe disso tudo?

– É o que sinto quando estou com a sua mãe e eu não encontrei isso com mulher nenhuma. Então para que ficar procurando se eu já encontrei o que buscava nessa existência.

Pai e filho se sentaram num banco afastado de todos e somente as duas viram quando Márcio se deitou no colo do Rogério e continuaram a conversa e o assunto eram as duas mulheres que preenchiam a vida deles. “- Pai, Angélica é pavio curto e temperamental. O que eu faço”, perguntou Márcio a Rogério.

– Nada! Mulheres assim são excelentes. Caminham contigo até o fim da vida. Estarão contigo na montanha, na palafita, no palácio, na favela, na mansão, não importam onde estiverem, desde que tu estejas com ela. Sua mulher tem um medo danado de ser feliz, a exemplo do que aconteceu com Mariana quando chegou até nós”.

– É! A mãe cuidou dela.

– Deu-lhe o que ela precisava: amor, carinho, atenção e amizade. Tua mulher, pelo que pude observar, está tendo isso contigo. Gosto muito de Eleanora, tenho respeito por ela, mas acho que pecou na educação dos filhos e ainda bem que reconhece isso.

Ao ver a cena, Angélica fez menção de ir até onde os dois estavam, mas foi contida por Judith. “- O momento é dos dois. Nunca vi meu filho deitado no colo do pai. Com certeza está procurando proteção e certezas que ainda não tem dentro dele”.

De repente Márcio levantou a cabeça e olhando para o pai ouviu atentamente o que ele disse: “- Filho. Tua mãe me falou que ela foi casada com outra mulher por cinco anos e a deixou para ficar contigo. Então preste atenção: se ela mudou tudo isso é porque tu és a pessoa especial na vida dela. Trocou o certo por algo a ser edificado, então sob hipótese alguma a deixe. Haverá momentos em que ela questionará as escolhas, mas não a deixe com dúvidas a respeito de sua capacidade de entendê-la. Agora não diga a ninguém que sei que sua esposa é bissexual, pois isso só diz respeito a você e a ela e mais ninguém”.

– Obrigado pai. Precisava ouvir isso do senhor.

“- Agora cuide dela para que não lhe quebre a outra perna”, zombou Rogério.

Ao dizer isso ao filho, os dois caíram na gargalhada e Márcio se ajeitou no banco, olhando para piscina se notou emocionalmente se sentindo bem. Percebeu que tinha recebido um presente: o coração do pai que sempre quis ter consigo e não tinha como senti-lo.

Por mais que tentasse se segurar, Angélica não conseguiu ficar só olhando. Caminhou rapidamente para onde os dois estavam. Desejava participar da conversa e quando ia se aproximando, Rogério disse ao filho: “- Olha o que estou lhe dizendo. É parecidíssima com a sua mãe, só que branca. Cuide desse cristal como o eu cuido do meu. Judith parece ser forte, mas tem uma fragilidade que não é do fato de ser mulher, mas de um ser que tem muita sensibilidade para um mundo cruel, cheio de invejas, ódios e ressentimentos”, explicou Rogério.

“- Posso saber o que tanto pai e filho tem para conversar”, perguntou Angélica.

– Estava aqui dizendo para o meu filhote como tu é maravilhosa, bela, linda, quiçá ser parecida com Judith: um cristal que solta faíscas quando mexem com seus respectivos cônjuges.

“- Por que o olho do Marzinho tem um brilho regado a lágrimas”, inquiriu a nora.

“- Por que descobriu que ficaria a noite inteira contando as estrelas até achar a que se parece contigo e te presentear com um cometa que os levaria para ficar fora da órbita da terra por toda a eternidade”, respondeu Rogério.

Ao dar a resposta à nora Rogério se levantou, indo se encontrar com a mulher que também chegava. “- Vai amar meu filho assim lá na China. Obrigado menina por faze o meu Marzinho feliz. Ele só quis saber o que deveria fazer para tê-la todos os dias pertinho dele. Então eu disse para que quando você entrasse no coração dele, deveria jogar a chave fora e não deixar nem uma brisa atrapalhar esse amor dos dois”, disse rindo Rogério abraçando Judith, caminhando em direção a churrasqueira.

– Amor! Achei lindo você se deitar no colo do seu pai.

– Naquele momento eu senti que ele nunca me deixará cair. Quando soube que pegou Ricardo pelo colarinho porque esteve duvidou da minha sexualidade, entendi que o pai que eu sempre quis estava chegando. Ao mesmo tempo deixou de ser o patriarca da família para ser o amigo que sempre sonhei em ter nele.

– É por isso que os seus olhos estavam brilhando, meu amor.

– Por isso e pelo amor que lhe tenho. Ele me falou muito sobre a minha mãe e o que ela lhe significa. Me perguntou se era a mesma coisa comigo em relação a ti.

“- E qual conclusão que você chegou”, indagou a empresária

– Que desejo ir contigo até o fim do mundo. Meu pai me disse que sabe do seu casamento de cinco anos com Rosângela e que se você desfez tudo é porque realmente me ama e que poderá ter trovoadas, mas para eu não me afastar de ti um milímetro se quer.

“- Amor! Essa informação me tira um peso enorme do coração”, revelou a esposa.

– Me disse que ninguém, absolutamente ninguém deve se meter entre nós dois e que precisamos saber resolver nossos problemas, como ele faz com a minha mãe.

Angélica com os olhos lacrimejados, abraça o marido, o beijando ternamente, dizendo que iriam trabalhar juntos a relação e que ambos não deixariam o outro cair. “- Não estou preocupado com a sua bissexualidade, pois sei que está inteira aqui comigo e isso é o mais importante. E quando alguma coisa parecer estremecer a nossa paz, vamos dialogar e muito. Acho que essa conversa com o meu pai foi a última aba da caixa do nosso casamento que precisava ser fechada”, explicou Marzinho.

Assim que terminou de falar, observou que Amadeu e Tarsila se aproximavam. Angélica se sentou no chão com o irmão como faziam desde a adolescência e a cunhada ocupou o espaço do lado de Márcio. “- Meu amigo mosquito, a minha Tarsilinha aqui mostrou a edição do livro que vocês fizeram e está perfeito. Como tu conseguiu fazer isso com a minha irmã querendo lhe quebrar a perna”, perguntou o poeta.

– Meu amigo vate, fiquei sabendo que se tu olhar do lado para alguma sirigaita, serás um trovador dentro dum féretro.

“- Quem te disse uma sandice dessas? Sou um homem livre, tenho uma liberdade ampla em todos os sentidos e por isso escolhi amar eternamente minha nega linda que está sentada do seu lado”, revelou o poeta.

Márcio percebeu que aquele trovador do boteco havia retornado. Estava com saudades daqueles tempos e das charadas do amigo. “- Tarsilinha, fiz esse bosta de escritor e que agora é editor, sei que como leitor é um excelente profissional, agora como escritor, tentar achar minha linda irmãzinha aqui no fundo de um copo”, afirmou Amadeu à esposa.

Tarsila só olhava e ria baixinho. “- Meu amor. Esse homem passou um vexame danado dentro dum cinema na Alemanha porque havia discutido com a dinamite dele. Ela ameaçou atrapalhar a projeção do filme, caso não voltasse com ela”.

“- É verdade minha irmã que você ameaçou se jogar na frente dum carro, se o meu amigo mosquito não voltasse contigo? Fiquei sabendo que tu querias ficar nua num terminal rodoviário. Isso é muita paixão mesmo”, falou gargalhando o vice-presidente das Organizações Oliveira.

Márcio olhou para o amigo que estava abraçado à irmã, percebendo que os dois estavam imensamente felizes. “- Márcio, escreva uma crônica sobre isso: tenho até o título: a peladona do terminal rodoviário”, disse Amadeu rindo, levando um soco no braço desferido pela irmã.

“- Tarsila, nos diga o momento em que percebeu que não conseguiria seguir em frente sem o seu Amadeu”, perguntou Angélica.

– Quando eu o vi no aeroporto na Alemanha. Ali entendi que meus anseios acabavam de ser atendidos. O ser que me faria ser a pessoa mais feliz do mundo estava indo em minha direção naquele corredor vindo do Brasil direto para o meu coração. E você Marzinho, quando percebeu que minha cunhada seguiria contigo até a eternidade. Não enrola, seja direto como eu fui.

– Quando no Bar da Net tu me pediu para fugir dela. Eu fiz isso, mas ela me encontrou, inclusive invadiu o quarto de hotel em que eu estava lá no Pontal.

Antes que Márcio perguntasse a esposa, esta foi direta: “- Quando ameacei ficar pelada no terminal rodoviário naquela cidade do Pontal que nem sei o nome. Ali eu havia descoberto a essência desse homem maravilhoso. E você meu irmão”, perguntou a empresária.

– Naquela manhã em seu apartamento quando te disse que aliança não serve para afastar as moscas que gostam de desejar o ser do seu semelhante. Quando estava lá tomando café com vocês, soube que iria encontrar a minha rainha. Sei que ela tem mais ciúmes do que minha irmã aqui, mas eu não facilito, né meu amigo mosquito.

Todos riram e, em seguida, os casais ficaram conversando sobre diversos assuntos, inclusive o filho que Tarsila e Amadeu esperavam e se Mário e Angélica tinham intenções de terem um também. “- Primeiro, preciso ajustar tudo aqui dentro. Pode ser que no futuro, venhamos ter um bebê, mas no momento, ainda estamos muito bagunçados e não temos condições nenhuma de gerar uma outra vida”, disse Angélica, contando com a anuência de Márcio que completou: “- Eleanora já aguarda o primeiro neto chegar, bem como Judith também, então eu e a minha arquiteta do amor, podemos adiar o sonho de sermos pais”, expôs o editor.

Nesse momento apareceu Judith com dois pratos repletos de carne. “- Filho! Obrigado pela cena que vi quando deitastes no colo do teu pai: finalmente se tornaram amigos. Agora come e vamos agilizando as coisas, Rogério já começou a falar que precisa voltar para o mundo dele. Se falar a terceira vez, terei que dar uns murros naquela cara de homem apressado”, disse a mãe rindo às gargalhadas.

Auxiliado pela esposa e pelo amigo, Márcio se levantou e lentamente caminhou para junto da mãe que estava propensa a começar a ajustar a bagagem para deixarem a mansão. Enquanto Judith conversava com o filho, Tarsila e Amadeu conversava com Angélica. “- Minha irmã como anda tu com o seu esposo”, perguntou o poeta.

“- Querido, estamos caminhando, mas quero a partir de agora dar um novo rumo em tudo. Conversei bastante aqui com a sua esposa, com Fernanda, com Eleanora e sei que tudo depende de meus esforços em viver um dia de cada vez e, sobretudo, dar paz ao coração de Márcio que já demonstrou mais de uma vez o quanto me ama”, explicou a empresária que aproveitou a saída do marido para dialogar mais à vontade com os dois.

– Ele cuidará da editora juntamente com Tarsila. Eu e tu das nossas empresas. Estou criando uma para eu e ele, mas como sei que não vai cair de cabeça no negócio, pois não é a praia dele, pedirei inicialmente ajuda do Roberto que é amigo de Márcio. Lentamente quero que Débora cuide mais do escritório de arquitetura e que você, Amadeu, se inteire mais das empresas, pois transferirei a presidência para ti e ai sim, ficarei mais tranquila cuidando dos negócios meu e dele. Tarsila quero transferir o percentual do Márcio para essa empresa, mas isso será bem mais lá na frente. Espero que não se oponha.

“- Se ele não achar ruim, não vejo problema nenhum, mas tu sabes que ele deseja não te ter lá com a gente”, explicou a cunhada.

– Eu só vou incorporar a parte acionária dele e não farei nenhuma intervenção.

“- Mas antes de fazer isso, conversaremos com ele. Adoro o Marzinho e não quero que fique sabendo depois que tudo estiver pronto. Se for desta forma, pode contar comigo”, revelou Tarsila.

– Está certo, mas isso não é para agora não. Eu e Amadeu vamos trabalhar juntos nas empresas por um ano ou um pouco mais e depois farei as mudanças. Claro que se ele topar e minha mãe achar que está correto.

– Por mim tudo bem, desde que eu não deixe de escrever minhas poesias, meus textos e minhas crônicas e também que nossas empresas possam patrocinar projetos culturais objetivando a descoberta de novos talentos para o mundo das artes.

Tudo acordado para um futuro não muito distante, o trio se desloca para onde o pessoal estava se aglutinando dando sequência no churrasco que caminhava ao seu final. Esdras ficaria num apart-hotel alugado pelo pai. Ninguém se habilitou a oferecer o apartamento de Márcio, pois o imóvel já havia sido assegurado para Fernanda que aguardava a transferência dos documentos e imóveis para onde funcionaria a editora e em seguida se mudaria para lá. Ricardo entendeu que não tinha condições de pedir nada, apenas aguardar o tempo da construção da residência que o casal edificaria para pensar num lance mais ousado. Mas não tinha pressa, pois em seu interior, a noiva era de fato a mulher especial que o destino colocou em seu caminho.

Encerrado o churrasco, todos se dirigiram para seus respectivos ambientes e Esdras foi conduzido ao hotel por Ricardo que acertou com ele um programa a noite com Fernanda e Débora e o local seria o restaurante de Alexandre. A amiga de Márcio lhe disse que não iria com ele em lugares que o noivo costumava frequentar antes de conhecê-la.

– Não vou e não adianta insistir. Se quiser ir, pode ir sozinho e amanhã passe em minha casa e deixe a aliança que mando derreter e faço um par de brincos, já que meu noivo prefere ficar cheirando o saco dos amigos a ficar com a futura esposa.

Fernanda disse isso estando entre os pais dele. Ricardo só olhou e concordou, marcando o horário que passaria na casa dela. O general ligou para o seu cozinheiro, dizendo que também estaria lá com a sua namorada. Assim que desligou informou aos casais que não queria ninguém segurando vela para ele e Eleanora.

Márcio e Angélica foram para o apartamento, enquanto Tarsila e Amadeu resolveram ir ao cinema. Não convidou ninguém porque desejavam ficar a sós. “- Você entende né, meu amigo mosquito? Fiquei dois dias com você aqui e agora preciso de paz com a minha musa, a dona do meu coração, a rainha Tarsilinha”, disse rindo.

– Claro meu amigo vate. Também quero ficar a sós com a minha esposa. Ainda não marcamos nada, mas penso que poderíamos jantar fora ou até mesmo dar uma espichada na cidade vizinha. Lá tem um restaurante que trabalha com peixes e derivados. Não quero ver a cara do general, Eleanora e nem de ninguém que ficou comigo desde ontem.

Rogério, Judith, Leônidas e Mariana jantariam na estrada, caso não desse tempo de chegar à cidade em que residiam. A esposa de Léo abraçou Angélica agradecendo o apoio, o carinho e a compreensão, olhando para a sogra como se esta fosse a mãe que nunca teve. “- Eu e Marzinho, assim que estivermos tudo sereno, iremos até vocês. Ficaremos lá um final de semana”, informou a empresária.

Um a um os automóveis foram deixando a mansão e o general entrou em seu automóvel dizendo a Eleanora que estaria de volta às 20 horas para jantarem e esticarem um programa que ela só conheceria depois do jantar.

Quando Angélica e Márcio chegaram ao apartamento, a empresária fez aquela cara de quem estava cansada e que se pudesse não iria a lugar nenhum. “- Tudo bem amor. Falei aquilo lá porque achei que pretendesse dar uma esticada na noite, mas se não está afim, fiquemos aqui em casa”, expôs o marido.

“- Sabe o que desejo agora, meu amor”, perguntou Angélica.

– Me diga!

“- Um bom banho e se não se importar, preciso desse tempo comigo mesma. Tudo bem para ti, Marzinho”, questionou a esposa?

– Vai lá. Ouvirei umas músicas aqui, tomando alguma coisa e ler um pouco.

Angélica lhe deu um beijo afetuoso e entrou para o quarto e o fechando por dentro, se deixou ficar lá e, enquanto preparava o seu banho pensou em tudo o que aconteceu naquele final de semana, desde a sexta-feira quando sua mãe, o general e os pais de Marzinho jantaram com eles e a discussão que tiveram e o esposo acabou dormindo no quarto de hóspedes.

Depois de tudo pronto, entrou na banheira, se desligando do mundo, enquanto a alma passeava por vários lugares, inclusive nos momentos em que tinha sido violentada pelo pai. Não sabe ao certo de sonhou ou se vivenciou aqueles momentos de terror, mas quando percebeu estava aos berros dentro da banheira e Márcio batendo na porta desesperado para saber o que tinha acontecido.

Aos poucos ela foi se recompondo, enquanto o marido batia desesperadamente na porta que foi aberta pela esposa. “- O que aconteceu amor? Por que trancou a porta por dentro? Quer me matar do coração”, disse exasperadamente o editor.

Angélica se agarrou ao marido chorando e tentando dizer o que tinha acontecido. Ela queria, mas toda vez que recuperava mentalmente o que justificaria o que diria, chorava mais ainda. Calmamente, Márcio a levou para a cama, mesmo arrastando com a perna imobilizada, pegou um roupão, pedindo a ela para vestir. “- Não me deixe aqui sozinha. Estou com medo, muito medo amor. Não me deixe por favor”.

– Calma! Não vou a lugar nenhum! Coloque esse roupão e venha comigo para a sala. Lá, depois que se acalmar me diga o que aconteceu.

– Você promete que não me deixará sozinha essa noite?

– Sim, meu amor. Estou aqui contigo. Agora se veste e vem comigo.

Tentando se equilibrar com a perna imobilizado, Márcio consegue com muita calma levar a esposa, em pânico, até o sofá e, depois de sentá-la no sofá, se ajeitou do seu lado, segurando a sua mão aguardando que tudo pudesse passar e ela lhe dizer o que tinha acontecido durante o tempo em que ficou dentro da banheira.

Sem dizer nada, Angélica se deitou no colo do marido e em silêncio acabou dormindo com o esposo fazendo cafuné e colocando na tevê um canal com música suave. Acompanhado pelo sono da esposa, o editor também acabou dormindo e só despertou quando escutou sons de trovões e a sala estava sendo iluminada pelos raios que riscavam o céu. Olhou para o relógio, observando que tinha dormido mais de duas horas. Tentou acordar a esposa, mas essa fez menção de não querer acordar.

Diante da recusa, Márcio pegou algumas almofadas e fez de travesseiro para a esposa, enquanto, com muita dificuldade conseguiu deixar o sofá, indo em direção ao banheiro para se aliviar, aproveitando para tomar banho. Assim que deixou o quarto, encontrou Angélica desperta e, ao lhe perguntar o que tinha acontecido, a mulher informou que não tinha condições de falar.

– Só sei que parecia ser real. Era como se estivesse vivendo tudo novamente.

– Entendi, amor. Fale disso amanhã com a sua analista. Estarei contigo e ficarei na antessala te esperando. Agora venha aqui, vamos assistir o espetáculo dos raios que cruzam e iluminam os céus. Olha que maravilha.

– Amor. Se não se importar, quero ir para cama. Você vem comigo? Estou com medo de que os pesadelos voltem.

– Tudo bem! Vamos. Eu ficarei acordado até que o seu sono chegue. Tenho certeza de que eles não lhe visitarão mais. Ficou tudo no passado e ele só estará aqui se deixarmos.

Angélica foi a primeira cair na cama e o marido se deitou ao seu lado, deixando que ela se ajustasse ao seu corpo como quem busca proteção. “- Calma, meu amor. Estou aqui e nada de ruim lhe acontecerá. Agora descanse”.

Em silêncio o editor ficou pensando no que teria acontecido e logo lhe veio à mente as violências sexuais que a esposa sofreu do pai. Quis encontrar o gatilho que poderia ter provocado aquilo tudo. Repassou os dois dias e não encontrou nada, exceto aquele andador que Rogério tinha encontrado na mansão e lhe dado para ajudar na movimentação pelo espaço durante o churrasco. De alguma forma, a esposa viu aquilo e tudo voltou à sua memória e ainda mais porque ela pode ter visto Márcio tentando usar o equipamento.

Quando Márcio caminhava para o sono que seria regido pela chuva que caia lá fora, foi despertado pelos gritos da esposa que, com os olhos serrados o esmurrava vociferando para parar com aquilo que a estava machucando. Lentamente, o editor foi passando a mão na cabeça de Angélica e falando baixinho com ela dizendo para se acalmar que era só um pesadelo.

Angélica abriu os olhos e chorando pedia socorro ao marido. “- Calma. Está aqui comigo e a salvo. Nada do passado vai te afetar o aqui e o agora no presente. Espere um pouco que vou pegar um copo d’água pra ti”, disse o esposo. “- Não demore, por favor amor”, pediu Angélica.

Assim que Márcio chegou, entregou o copo para Angélica que se assustou com um trovão seguido de um raio, deixando o copo cair, se espatifando no chão, espalhando caco para todos os lados e molhando o piso. O esposo, puxando de uma perna foi e voltou com outro copo e enquanto ela ingeria o líquido, Márcio buscou os apetrechos e começou a limpar o chão.

Angélica depositou o copo sobre o criado-mudo e foi para a sala e ficou olhando pela janela o espetáculo no céu, enquanto a chuva caia torrencialmente sobre a cidade. Terminado a limpeza no quarto, o editor foi ter com ela, a abraçando pela cintura. Ela se virou para ele, o beijando ternamente, pediu desculpas ao esposo. “- Você entendeu meus medos, amor”, perguntou Angélica.

– Entendi sim, querida. Quer voltar a dormir. Amanhã conversaremos com a sua terapeuta.

“- Está bem meu Marzinho, mas promete que estará sempre comigo? Tenho medo de ficar sozinha e ser devorada por esses pesadelos”, revelou toda chorosa Angélica.

– Estarei aqui contigo e em qualquer outro lugar em que estiveres. Agora venha, vamos descansar que os ponteiros já passam das três horas.

Retornaram para a cama e Angélica conseguiu dormir mais tranquilamente, enquanto o marido, preocupado com ela, cochilava, sendo que também foi assombrado por pesadelos e num deles, a esposa tinha cometido suicídio, se jogando da janela do apartamento. Acordou assustado e, suando muito, olhou desesperadamente para a esposa, percebeu que ela dormia serenamente. Mergulhando novamente no silêncio do apartamento e do sono, tendo de fundo a orquestra que a chuva oferecia, sendo regida pelos raios e trovões naquela madrugada de segunda-feira.

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