43
O final de semana passou rapidinho e no começo da noite de domingo, todos estavam de volta. Márcio e Angélica precisavam preparar tudo para a viagem no dia seguinte. Amadeu foi para a mansão, parecendo uma criança. Ajudado por Eleadora arrumou toda a sua bagagem que não era muito. Dizia que deveria comprar algo lá na Europa, então, porque transportar tanta bagagem. “- Mãe, montarei meu guarda-roupa conforme os gostos de Tarsila. E como vou reencontrá-la, roupa será o que menos importará desde o momento que eu a ver na Alemanha”.
No apartamento de Angélica, Márcio se esforçava para deixá-la calma, principalmente no que diz respeito ao que ele deveria levar. Judith queria que ele se vestisse de acordo com os gostos dela e a empresária também. “- As duas! Querem parar de discutir sobre isso. Eu preciso levar uma meia dúzia de cuecas e roupas adequadas para o país. Mas devo lembrá-las, nobres mulheres de minha vida, que no próximo domingo quero estar de volta aqui e de preferência com a senhorita e ambos preparando a oficialização do nosso amor”, suplicou o jornalista.
Depois dessa suplica, as duas se aquietaram e o jornalista pode, calmamente, fazer as malas. Estava ansioso por vários motivos: era a primeira vez que sairia do Brasil e de avião. Então o temor era natural, mas nenhum superava o medo de perder Angélica para Rosângela.
Ao terminar de arrumar as suas coisas, ficou na sala enquanto ela ajeitava suas roupas para o encontro com Rosângela e colocar um fim àquele tormento todo ou um recomeço com a antropóloga. De qualquer forma, a viagem era definitiva para muitas coisas e todos os envolvidos.
Enquanto Márcio estava na sala, Judith sentou do seu lado, procurando acalmá-lo. “- Filho! Por tudo o que o você passou para chegar até aqui, inclusive um coma alcóolico por conta dessa moça, se acalme. Eu tenho certeza de que vocês voltarão de lá mais unidos do que já estão”.
– Mãe! E se ela optar por ficar com a esposa? Elas estão juntas há sete anos!
– Marzinho! Só tem um jeito de saber. Indo lá e aguardar. Mas não implore. Não exija nada. Nunca cobre ninguém sobre aquilo que você mesmo não consegue lhe dar. Durante a viagem, passe confiança a ela. É o que Angélica está precisando e tenho certeza que metade das brigas entre vocês cessará. A outra é por conta do gênio briguento dela e desse seu jeito conciliador. Então relaxe e dará tudo certo! Você participará do encontro entre as duas?
– Não! É uma situação delas. Eu ficarei na retaguarda. Tenho certeza de que ela terá força suficiente para se desvencilhar do relacionamento porque não tem mais sentido na nova realidade que Angélica pretende construir.
– Está certo filhão. Eu vou para o quarto. Quero ficar em silêncio orando por ti até o sono chegar. Amanhã, depois que vocês embarcarem, eu volto com Eleanora para a casa dela e os aguardo e não me deixe de dar notícias. Direi ao seu pai que está se recuperando e dentro de uns 10, 15 dias eu vou embora. Agora vai lá cuidar dela. Creio que deve estar tão tensa quando você.
Quando se encaminhava para o quarto de hóspedes, Judith cruzou com Angélica. “- Calma filha. Dará tudo certo para todos vocês e tenho certeza que voltará como minha nora. Não é esse o seu desejo e de meu filho? Lutem para realizá-lo. Eu e sua mãe estaremos sempre com vocês dois”.
– Obrigado dona Judith. Grato por ser tão amiga nesse momento complexo de minha existência. Acho que se eu tivesse conhecido Márcio antes eu não teria me envolvido com a professora.
– O antes já passou. Vocês se conheceram agora há coisa de dois meses e é isso que importa. O ontem só serve para nos alertarmos de que se continuarmos a fazer as mesmas coisas, já sabemos os resultados. Vai lá. Acho que o meu Marzinho pode te fazer muito feliz. É claro se você e seu ciúmes deixarem! Mas quer um conselho: rédea curta com ele. Deixe pensar que está no comando, mas na verdade quem diz sim ou não somos nós.
As duas deram risadas e Angélica foi ao encontro do jornalista. O flagrou em completo devaneio. “- Será que meu futuro noivo me permite viajar de primeira classe com ele”, pergunta a arquiteta, tirando o repórter do mundo em que estava.
– Oi amor! Desculpe-me. Estava longe, pensando em mil coisas e como minha vida mudou nos últimos dois meses. Estou prestes a fazer a minha primeira viagem internacional. Posso voltar de lá praticamente casado com uma mulher espetacular, porém, maluca, mas que eu não mudaria uma vírgula no jeito dela ser. É doido isso. Numa segunda-feira em que a semana estava começando e prometia se arrastar chorosamente, eu conheci seu irmão completamente alucinado e embarquei com ele, tentando achar uma simples matéria para preencher espaço numa edição dominical do jornal e hoje estou aqui, prestes a realizar tudo isso.
– Marzinho. Nossa vida não será nada fácil! Em comum, só temos o nosso amor. Do resto, eu sou tempestade e você é pura calmaria. Confesso que não sei se dará certo, mas pode ter certeza de que farei de tudo para que tenhamos finais de semana como esse de agora e de preferência com muito sexo.
– Keka! Uma coisa de cada vez. Não tente resolver tudo ao mesmo tempo. Primeiro, vamos a Alemanha e na volta continuaremos o seu acompanhamento. Quero participar de todos os momentos, claro aqueles dos quais eu posso participar. Não tenho pressa e, se ei estiver muito afoito, uso esses cinco dedos. É covardia cinco contra um, mas sei que resolverá momentaneamente uma situação.
– E se eu fracassar?
“- Minha querida, só fracassam aqueles que não tentam. Nunca se esqueça. Eu estarei contigo. A não ser que não queira”, responde Márcio.
– Parece doideira mesmo, amor. Há dois meses eu apareço na sua vida feito um furacão e você entrar na minha sorrateiramente. Enquanto eu quero derrubar uns satélites, tu queres ficar olhando a água percorrer o seu curso natural. Quanto mais eu corria do seu sorriso, mais ele me atraia. Eu desejei muito não ser verdade o que o coração já sentia: um desejo enorme de estar em seus braços e tê-lo nos meus. Ficar como ficamos embaixo daquele abacateiro no final da tarde de sexta-feira. Marzinho eu desejei muito que me detestasse, mas quanto mais eu queria isso, mais ficava doida, molhada, querendo-te pertinho de mim para ver se as brasas internas diminuíam de intensidade.
Ficarem em silêncio durante um tempo e quando Márcio fez menção de se levantar foi contido pela arquiteta. “-Vamos ficar mais um pouquinho aqui. Na fazenda ninguém nos dois um minuto a sós. Quero sentir o seu calor, sua respiração, os batimentos de seu coração. Quero me sentir segura novamente. E sei que você pode me transmitir isso. Eu já te pedi outras vezes, mas peço novamente: não me deixe amor! Se isso acontecer, minha vida ficará de cabeça para baixo. Eu enxerguei isso naqueles dias que fui te procurar. Larguei tudo, não me importei com nada e nem com ninguém. Só queria você”, disse a arquiteta.
A resposta de Márcio foi um carioso beijo envolvendo-a em seus braços, aquecendo o coração e alma de Angélica. Ficariam ali ouvindo o som do nada e também tentando escutar a música do amor. Acabaram dormindo profundamente. Enquanto a chuva que ameaçou cair o dia todo, despencava lá fora. Judith acordou para beber água e viu a casa toda acesa. Achou estranho, mas quando chegou à sala e se deparou com a cena. Os dois dormiam suavemente e o quadro foi o suficiente para entender como aqueles dois se amavam, como se aquilo viesse de outras vidas, tamanha sinergia da dupla de dorminhocos.
A hóspede ficou olhando a cena por uns dez minutos e depois foi acordar o casal para que fossem dormir na cama. “-Que horas são mãe”, pergunta o jornalista. “-Acho que passam das três! Que horas é o voo de vocês”, interroga a mãe de Márcio.
“- Nove horas, mas precisamos chegar lá uma hora antes”, explicou Angélica.
– Então vão para cama e terminem de dormir. Ainda dá tempo de ficarem mais umas três horas sonhando.
– Boa noite mãe!
– Boa noite dona Judith.
O casal entra no quarto só tiram as roupas e caem na cama um nos braços do outro, voltando a dormir quase que imediatamente. Despertaram com Judith batendo na porta afirmando serem seis horas da manhã. Dava tempo de tomarem café antes de saírem.
O casal toma banho e quando estão sentados para o café, Eleanora aparece com Amadeu que estava para ter um treco de tanta ansiedade. “- Esse aí não me deixou dormir direito. Era Tarsila para cá Tarsila para lá. Oh loco! Quanto amor!”
Todos riram. Mãe e filho se sentaram e tomaram café.
– Mãe! A senhora fica com o meu carro durante essa semana. No domingo estaremos de volta, qualquer que seja o resultado. Mas quero voltar comprometida com esse homem lido que a dona Judith fez só para mim. Na segunda vamos fazer as alianças e umas bem grossas para quando ele estiver sozinho a mulherada olhar e dizer: este já tem dono.
Amadeu respondeu: “- Aí é que tu te enganas irmãzinha. Com uma aliança dessas, o seu Marzinho será uma tentação para a mulherada. Eu se fosse você o deixava livre.
– Está maluco Amadeu? Nunca! Esse homem jamais estará distante sem que eu esteja de olho bem aberto com ele. Eu sei como esses olhos podem desnudar uma mulher sem colocar a mão nela ou mover um músculo do rosto.
Terminaram de se alimentar. Márcio e Amadeu levaram as malas, as ajeitando no carro. No apartamento, Mãe, filha e sogra ficaram conversando e é claro todas as recomendações foram para Angélica. “- Se controle. Termine tudo numa boa. Se precisar proponha uma pequena pensão a ela, pois é você quem está propondo a ruptura. Vira as costas e volte com Márcio e Amadeu”, recomendou Eleanora.
Judith apenas olhou para a arquiteta e carinhosamente lhe disse: “-Volte como minha nora. Será bem-vinda, mais do que já está enfronhada em minha família. Faça tudo o que for possível para o Marzinho ser feliz e ele te proporcionar muitas felicidades”.
Chegaram ao aeroporto pouco antes do horário estipulado. Angélica ficou com a mãe, enquanto Márcio falava com Judith que fazia as mesmas recomendações de sempre, inclusive para não implorar nada e nem estar com a empresária quando ela estivesse resolvendo a situação com Rosângela.
O voo durou aproximadamente 15h e o trio chegou a Berlim por volta da meia-noite. Uma equipe de segurança contratada por Angélica para Rosângela a aguardava no aeroporto e todos foram diretos para o apartamento da arquiteta. Amadeu todo eufórico perguntava quando estaria com Tarsila. “- Calma meu amigo. Quando o dia amanhecer aqui, com certeza sua irmã providenciará o encontro de vocês. Agora trate de dormir um pouco”, disse Márcio.
O irmão de Angélica atendeu o conselho do amigo, se encaminhou ao quarto que já havia sido preparado para ele. A empresária e o repórter ficaram ali mais um tempo e depois cada um foi para os respectivos aposentos. A arquiteta explicou o motivo: “- Aqui ainda sou casada com ela. Não quero mudar nada, antes de conversar com Rosângela. Logo cedo a irmã dela vem ter com o Amadeu. Eu vou aparecer na empresa e depois do almoço falarei com Rosângela”.
– E eu? O que vou fazer?
– Pode segurar vela para o meu irmão e a amada dela ou vir comigo. Também pode conhecer a cidade enquanto eu trabalho de manhã. Você escolhe um lugar para comer, pois eu marquei com ela num restaurante. Agora se quiser me fazer companhia. Sinta-se à vontade.
– Não! Não quero estar por perto. Prefiro te esperar aqui no apartamento. Sei que seu irmão e Tarsila vão explorar a cidade. Se bem que, seria interessante propor a ela um trabalho em minha editora e de repente tê-la lá no Brasil com Amadeu.
– Amor! Se ela não quiser deixar a Alemanha ou a Europa, duvido que meu irmão volte sem ela. Foi muito tempo longe, o cara quase perde os sentidos por conta dela. Agora não fica sem a amada, mesmo que o céu venha abaixo.
O casal conversou mais algumas coisas sobre o dia seguinte e como pretendia ficar em Berlim até a noite de sábado. Se despediram e foram cada um para o seu quarto.
Acordaram no dia seguinte com Amadeu já desperto e impaciente. Foi Márcio quem o acalmou. Angélica ligou para Rosângela para acertar os detalhes do almoço e perguntar por Tarsila. “- Ela já está chegando aí para acalmar o doido do seu irmão. Eu não sei o que ela viu naquele desmiolado. Bom. Isso é com ela. Não me meto na vida dela como Tarsila não se intromete na minha”.
Quando Angélica ia falar mais alguma coisa, a professora finalizou a conversa. “-Até a hora do almoço! Aquele teu namorado estará lá?”
– Márcio não é meu namorado. Ele apenas ajudou a trazer meu irmão de volta para os braços da família. Apenas isso.
“- Então porque ele está aqui na Alemanha”, interroga a antropóloga.
– A pedido de Amadeu. Simples assim.
– Está bem. Nos encontraremos mais tarde. Preciso ir. Tenho compromissos da minha pesquisa.
Ambas desligaram ao mesmo tempo e a arquiteta estranhou a maneira como foi a conversa. Esperava uma ação mais carinhosa por parte da professora. Pelo menos em virtude do tempo que passaram juntas: sete anos.
Tarsila chegou e o apartamento virou aquela loucura. Quando Márcio abriu a porta, Amadeu correu até ela, beijando, abraçando e falando tudo ao mesmo tempo. “- Calma meu amor! Sei que se passou um tempão, mas teremos o dia todo, a semana toda para eliminarmos as saudades de quase cinco anos”, disse Tarsila.
Márcio, vendo que Angélica se preparava para sair, aproveitou o momento. “- Dona Angélica, pode me dar uma carona. Pretendo dar uma olhada numas livrarias que me falaram que existem aqui em Berlim”.
– Cuidado senhor Márcio. Se não souber alemão se perderá.
Márcio olhou para a irmã de Rosângela e lhe disse: “- Okay, ich schaffe es gut”*. Essa fala provocou uma reação de Tarsila que respondeu: “Ich wusste nicht, dass du Deutsch sprichst**”.
Enquanto era puxado pela arquiteta, Márcio disse já em português: “- Tem muitas coisas que as pessoas não sabem a meu respeito”.
Já dentro do elevador, levou uma dura da empresária. “- Para que ficar se exibindo assim. Não caia na conversa dela. Tarsila veio por conta do Amadeu e para verificar se eu e você estamos juntos. Essa coisa de achar que você ia se perder na cidade, era para saber se eu te ajudaria a se achar. Deixa de bobo”, disse Angélica lhe dando o primeiro beijo em solo alemão.
O casal entrou no carro e foi direto para a empresa dela, onde teria reunião com alguns diretores de uma das filiais alemãs de sua organização. Márcio resolveu flanar pela cidade. Queria respirar o ar berlinense, como se estivesse dentro de um clássico da literatura alemã. Entrou numa livraria, escolheu um livro de Goethe e outros seis autores diferentes, todos alemães: Felicitas Hoppe; Elke Erb, Rainald Goetz, Sybille Berg, Monika Rink e Volker Braun. Se apaixonou por todos e acabou comprando um exemplar de cada.
Ao deixar a livraria percebeu que Angélica já deveria ter encontrado Rosângela. Procurou um restaurante para almoçar. Entrou em uma meia dúzia deles, tentando achar comida que se assemelhasse à brasileira. Finalmente encontrou um em que o dono era brasileiro. Entrou e perguntou se havia alguma coisa no cardápio que se assemelhasse à alimentação do Brasil.
“- O senhor é do Brasil”, perguntou a balconista em português.
Márcio se sentiu em casa. “- Fala minha língua”, perguntou o visitante.
Valquíria respondeu que sim. Explicou que estava na Alemanha para concluir o seu doutorado em Literatura Comprada e nada melhor do que estar no país para estudar o autor que desejava comparar a sua produção com um escritor brasileiro.
Mais à vontade, o jornalista pediu algo semelhante ao que seria uma carne prensada, feita na chapa. Enquanto esperava, pensou em tomar uma cerveja, mas a lembrança do coma veio rapidinho ao seu cérebro. Pediu então água, enquanto começava a ler um dos livros que comprou.
Do outro lado cidade, Angélica e Rosângela se estranhavam. A professora levou para o encontro uma terceira pessoa. Uma loira, assim como a arquiteta. A empresária a olhou, recordando que já tinha visto aquela pessoa, mas não pessoalmente e sim numa chamada de vídeo em seu apartamento. As duas falavam em alemão e a irmã de Amadeu não entendia nada, daí ter dito certa vez a Márcio ser uma língua dos infernos. Quando falava com os diretores da empresa na Alemanha sempre usava o inglês.
Angélica chegou ao restaurante como se fosse ainda casada com a antropóloga. Num primeiro momento era para se posicionar, até porque desconfiava que Rosângela tinha outra e saiu de caso pensado do Brasil. Isso ficou evidente quando reconheceu aquela alemã que estava com a professora.
Sentaram-se as três e a arquiteta muda a expressão indicando a esposa que não queria aquela mulher junto delas. Rosângela fingiu que não entendeu e Evelyn não dá a menor atenção para ela, pois o seu objetivo era sair dali o mais rápido possível, qualquer que fosse o resultado daquela conversa.
“- Não posso mais continuar com o compromisso que assumi contigo no Brasil há cinco anos. Encontrei outra pessoa aqui na Alemanha e penso que você não se incomodaria com isso. Afinal, agora você tem uma rola preta que te come todos os dias. Eu daqui da Europa ficava imaginando: ‘um chocolate comendo um morango. Belíssima cena”, diz Rosângela em tom provocativo.
Angélica fica possessa e quando vai dizer alguma coisa sobre o que acabara de ouvir, Rosângela lhe diz: “- Essa aqui é a minha noiva, a Evelyn, que significa maçã ou avelã se preferires. Cadê o seu jornalistazinho de merda, aquele que você arrasta para cima e para baixo como se fosse seu cachorro? Achei que estaria aqui com você para lamber os seus sapatos”.
“- Já lhe disse ainda no Brasil, eu e o Márcio somos apenas bons amigos. Ele sabe que sou casada contigo e não transo homens. Além do mais, ele é carolão”, ao dizer isso à antropóloga, Angélica lhe mostra a aliança para indicar o compromisso nupcial que tem com a professora há cinco anos.
“- Ah sim! Então está esperando ser violentada por ele como seu pai fez com você? Quem sabe assim você fica feliz”, responde Rosângela entre os dentes, sabendo que aquilo machucaria e em muito a arquiteta, com quem mantinha um relacionamento por sete anos, antes de embaraçar para a Alemanha.
Sem tem muito o que dizer, a arquiteta não pensou duas vezes e desferiu um enorme tapa no rosto da antropóloga que não reage, se limitando apenas a esfregar o lado da face açoitada, jogando a aliança em cima da mesa, dizendo: “- Eu deveria ter ouvido minha irmã. Adeus minha Rainha branca. Me deu prazer durante um certo tempo, depois só dinheiro. Agora nem isso quero de você. Aqui está a chave do seu belo apartamento. Enfia ele no cu com aquele repórter de bosta dentro. Ah! Não se esqueça de malocar lá também o seu orgulho e seus sapatos de R$ 1000 cada pé. Pobre do Márcio se levar essa loucura de ficar contigo adiante! Pobre mosquito aprisionado nas teias de aranha da Rainha má. Ele já te disse como prefere: raspadinha ou peludinha?”
Enquanto dizia essas coisas para a arquiteta, Rosângela foi se levantando e abraçando Evelyn, lhe dá um profundo beijo. “- Esta sim me entende, fala a minha língua em todos os sentidos e não vive assombrada por um passado de sevicias e estupros praticados por um crápula. Não fiquei em seu apartamento luxuoso porque fui muito bem acolhida pela família dela. Coisa que nunca fui pela sua. Ah! E sabe como foi fácil te enrolar durante todo esse tempo: usando contra ti mesma o seu pior defeito, o seu egoísmo. Elogie sempre uma egoísta e conseguirá dele o que quer. Adeus!”
A antropóloga deixa a arquiteta sozinha e em desespero. Nunca havia sido tão humilhada em sua vida, ainda mais por alguém com quem conviveu por cinco anos dividindo o mesmo apartamento e mais dois de namoro. Com essa agressão verbal, a professora universitária desfradou tudo, deixando a sua verdadeira faceta surgir. Isso só foi possível, na ótica de Angélica, porque Márcio apareceu, do contrário, estaria iludida.
O que a deixou estarrecida foi a sua agora ex-esposa lhe jogar na cara que usou contra ela o próprio defeito: o seu egoísmo. “Elogie uma pessoa que pensa só em si mesma e terá dela o que quiser”. Essa observação a cortava por dentro, como uma navalha bem afiada. Entre o desespero e as lágrimas, pegou o telefone, como fazia no Brasil, e ligou para Márcio. Ninguém atendia, a deixando mais sem chão. Ligou para a mãe, está disse que não podia falar com ela naquela hora, estava ocupada. “-Meu deus do céu! E agora o que faço?”
O garçom chegou e ela pediu apenas uma refeição leve e enquanto aguardava, ligou novamente para o repórter e desta vez ele atendeu. “- Alô! Márcio você está onde”, lhe pergunta a arquiteta.
– Acabei de almoçar e estou voltando para o apartamento, comprei uns livros em alemão para não me esquecer da língua e alguns são escritores da nova geração de literatos daqui.
– Está bem! Não saia do apartamento. Estarei lá dentro de uma hora no máximo. Quero ter uma conversa séria com o senhor.
– Pois não patroa! Estarei as ordens.
Conforme o combinado, ambos já estavam dentro do apartamento no horário, enquanto Amadeu e Tarsila tinham saído para almoçar num lugar que ela dizia que a comida era especial. A empresária foi enfática: “- Quero ir embora hoje. Vou ligar e fazer as reservas. Você e Amadeu vem comigo”.
Do mesmo jeito que Angélica foi incisiva, o jornalista devolveu. “- Nem fodendo. Não temos culpa se tua mulher meteu o pé no teu rabo ou te humilhou. Pense um pouco. Teu irmão está muito feliz com Tarsila e pelo pouco que observei, esquece, ele não voltará ao Brasil conosco. Eu ainda não conheci direito essa cidade. Estou sempre à sua disposição, como se fosse um capacho. Faço sempre os seus programas. Se você quiser, volte sozinha. Não deixarei você levar o Amadeu. A Tarsila sabe lidar com ele. Agora porque não relaxe e depois conversamos com calma. Tome um banho e relaxe. Me fale o que acontece”.
– Estou arrasada, sem chão. Rosângela veio para cá de caso pensado. Ela já estava se relacionado com uma mulher: Evelyn. Usavam as redes sociais e chamadas de vídeo. Mas não foi isso que me agrediu profundamente. Ela me jogou na cara coisas que eu lhe contava na certeza de que tinha ao meu lado, não somente uma pessoa de quem eu tinha uma grande estima, mas uma amiga. Hoje eu percebi o quanto eu fui idiota.
– Só isso? Acho que você não pode lhe cobrar muita coisa. Lembre-se de nossos momentos. Penso que chumbo trocado não dói. Sacode a poeira do corpo e sigamos em frente.
– Eu sei disso, Márcio, mas ela me disse que foi muito fácil me enganar. Era só usar contra a mim o pior defeito: o meu egoísmo. Bastava me elogiar que eu me derretia toda. Minha vida toda foi assim: todos faziam os meus gostos. Meu pai para encobrir suas violências sexuais contra mim, sempre me dava coisas materiais e caríssimas com as quais eu me exibia na escola e tinha um monte de meninas me bajulando e os meninos se esmurrando para me tirar para dançar nos bailes e eu achava aquilo maravilhoso. Me enchia de orgulho.
– E daí? O que vai fazer com tudo isso? Ela te disse como fazia isso e te enrolava, mas, e daqui para frente, como será? Você precisa se livrar daquela Angélica, dessa Angélica que gosta de ser bajulada, que te façam todas as suas vontades.
– Márcio quando eu vinha para cá, fiquei pensando no que vim fazer aqui na Alemanha. Assim como você, também estava temerosa desse encontro com Rosângela. Achava que ela poderia me dizer que deveríamos repensar nosso relacionamento, que tudo aconteceu por conta dos ciúmes que sentia de minha relação contigo, mas aconteceu tudo diferente.
– E o que mais ela te disse para te deixar assim? Afinal tu querias terminar tudo para que começássemos uma vida nova. Também estava inseguro, conforme disse à minha mãe, mas tinha que vir e enfrentar quem sabe uma rejeição, só não poderia deixar de lutar por ti.
– Passado o efeito daquele momento em que desferi um tapa no rosto dela, ela me deu uma resposta que eu vinha procurando desde aquela manhã de domingo que fui à sua casa, toda imponente, dona do mundo. Eu achava que ia pisar em você, que ia te esmagar e depois te jogar na lata do lixo, como eu sempre fiz ao ver os meninos me disputarem. Acenava com noites de sexo, mas sempre os deixava na mão.
Enquanto escutava a arquiteta, Márcio permaneceu em silêncio. Objetivava ver até onde ela queria ir. Também procurava algumas respostas a perguntas feitas silenciosamente pela sua alma. Do ponto de vista material, não tinha absolutamente nada, profissionalmente era um jornalista à beira de dormir na sarjeta, portanto, um nada indo para lugar algum. Foi despertado dessa reflexão íntima quando Angélica lhe disse.
– O que me chamou a atenção em você foi justamente isso. Enquanto todo mundo me quer por perto, me bajular, lamber a minha bunda, querer o meu dinheiro, aparecer, você, meu Marzinho, desejou totalmente o contrário. Não quer meu dinheiro, não quer aparecer, se escondeu de minha pessoa numas corruptelas de cidades que nem sabemos o nome direito. Eu só te encontrei por você ser assim, todo especial, não querer aparecer, mas chama atenção por onde passa e sobretudo, não fica me elogiado para obter dividendos. Começo a entender porque não é popular, tem poucos amigos, mas os que tem são fieis e isso atrai inimizades, inveja.
– Sabe por que eu te amo tanto, dona esmeraldina?
– Por que?
– Por bagunçar meu mundo, mas sem de fato o fazê-lo de forma intencional, justamente porque todas as certezas que te deram, desde a sua adolescência, não funcionaram comigo. Quero atravessar o oceano contigo pelo que tu és. Acho que essas pessoas que você citou aí só queriam uma coisa: seu dinheiro e seu corpo. Se conseguissem as duas coisas, ótima, independentemente se tu estivesses feliz ou não, pois as pessoas imaginam que quando a tristeza bate à nossa porta, basta comprar algo que ela vai embora.
– Isto está ficando claro para mim agora, depois que entrou em nossas vidas. Sim, porque tem o meu irmão, minha mãe e sei como as mulheres te olham. Tu és rei, mas o meu rei de Ébano.
Márcio deu aquela gargalhada, não foi para sacaneá-la, mas de pura felicidade, porém a arquiteta ficou malucada, indo em direção a ele, dando lhe um beliscão. “- Quer me deixar sem chão, sem ar? Quer ficar viúvo antes mesmo de se casar comigo? Sim! Porque se continuar rindo assim, morrerei de tanto tesão”, desabafou a arquiteta.
– Bom. Agora é oficial? Você é minha e de ninguém mais! Não vou dividir você nem com seus lingeries, portanto, trate de andar completamente nua quando estiveres comigo.
Desta foi Angélica quem dá gargalhadas, mas olha sério para ele e diz: “- Amor. Diga-me com sinceridade. Você acha mesmo que o que Rosângela falou a meu respeito, procede?”, questiona a arquiteta.
– Bom! Você é! Mas tem tratamento para isso. Eu conheço um especialista no Brasil. Assim que chegarmos lá, você marque uma consulta e ele te ajudará a ajustar tudo isso.
– Ah é! E quem esse especialista em egologia?
– A mãe dele o batizou de Márcio, mas o apelidou de Marzinho. Ele só atende em domicílio.
– E quantos pacientes ele curou?
– Vai tentar a sua primeira paciente. Ela será um páreo duro, mas fiquei sabendo que ele está muito disposto já que só aceita pagamento em esmeraldas. Principalmente quando elas indicam que o coração está feliz e em paz.
– Ah, meu Marzinho, como é bom estar aqui contigo.
– Estarei hoje, amanhã e até o fim da eternidade contigo. Só faça uma coisa: não mude nada do que você é e do jeito que és. Tu és linda assim. Não quero nada do que é seu e foi construído pela sua família, mas apenas o seu coração. Te amo.
Sabendo que não podiam vacilar, pois Amadeu estava fora, mas se chegasse os surpreenderia. Não queriam evidenciar nada para Tarsila. Então, a arquiteta pergunta pelo irmão que entra como um furacão pela porta puxando Tarsila.
*Ok. Posso me virar bem.
**Eu não sabia que você falava alemão