Sobras de um amor…

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Enquanto se dirigia ao elevador e durante o trajeto feito até seu carro, Angélica se perguntava mentalmente porque havia dado um tapa no rosto de Márcio. Ela indignava mais ainda porque ele não revidará. Apenas pediu que se retirar de sua casa e para sempre, acreditava a arquiteta. Realmente tinha atravessado todo campo de civilidade. O jornalista não mereceria ser humilhado daquele jeito. “Tudo bem que me disse um monte de desaforos, mas ele vem aguentando tanta coisa. Só queria era uma exclusiva com um doido que fica no bar, anda sempre com roupas semelhantes e joga xadrez sozinho e sem tabuleiro. É! Quem se apequenou fui eu”. A arquiteta fez essa longa reflexão quando entrou em seu carro: não tinha coragem para seguir em frente e sem ânimo para voltar e tentar dialogar com o repórter.

Suspirando como para reanimar e colocar oxigênio novo nos pulmões, a irmã de Amadeu colocou seu carro em movimento, observando o horário. Voltaria ao seu escritório para fechar os últimos detalhes da viagem de sua esposa à Alemanha. “Depois de tudo pronto, mesmo que ela se recuse, não tem como voltar atrás”, pensou Angélica.

Enquanto a empresária seguia seu caminho, que mais parecia um calvário, pois na medida em que se afundava nas alucinações de Amadeu, mais o seu mundo virava de cabeça para baixo. Novamente pensou na agressão à Márcio. Este por sua vez estava sentado na poltrona de seu apartamento se perguntando o que teria feito de errado para levar tanta porrada da vida. “ – Meus deus do céu será que está escrito em minta testa imbecil? Será que carrego alguma placa invisível onde se lê: ‘me chuta’? Se quiser também pode me socar! Não é possível! Tento não sair da linha, mas é sempre a mesma locomotiva que me atropela, me deixando fatiado nos trilhos”, pensou o jornalista sentindo ainda a ardência no lado do resto que foi estapeado pela madame que “detesta ser contrariada e, pior, quando é jogado na sua cara a porcaria que é a sua vida”, refletia o amigo de Amadeu.

Olhou para o relógio e viu que ainda faltam duas horas para o encontro com a doida que supostamente teria pervertido o juízo do ricaço que era campeão de xadrez, mas assim como a irmã, não sabia trabalhar uma recusa. “Ela sai dando porrada em todo e ele soca o fígado com bebedeiras e mais bebedeiras homéricas. Quer saber? Que vão todos tomarem no cu. Não vejo a hora de terminar tudo isso! Vou dormir um pouco. Espero que aquela filho de uma puta não venha me encher e saco mais uma vez!”.

Marcou o celular para acordá-lo às 18h. Teria tempo para se higienizar e chegar ao encontro às 19h. E depois voltaria para casa e escreveria o relatório dizendo tudo o que apurou, inclusive que desistira de publicar a matéria. Não valia a pena. Tinha sido muito humilhado naqueles dias. Finalmente entendeu o que significa mexer em caixa de marimbondo, achando que daria tempo para fugir.

Tendo essas observações em mente, Márcio se deitou no sofá mesmo e com a roupa que estava. A mesma que usara no café da manhã em casa de Angélica e muito elogiado por ela, mas que no final do dia, lhe dera um tapa no rosto e uma porrada em sua dignidade. Desta vez não teve pesadelos com lingeries e outras peças intimas, homens que viravam mulheres e mulheres que se transformavam em homens. Havia mais leveza nas imagens, mais lirismo, cujas cores se assemelhavam ao amarelo do girassol. Caminhava num campo repleto deles, não havia pressa, nem ansiedade, mas o desejo de seguir em frente. Num determinado ponto da plantação, se sentiu fadigado. Resolveu deitar para passar o cansaço. Quando acordou já era noite. Então resolveu contemplou as estrelas em contraste com o escuro que pairava sobre os girassóis. Ao ver a cena, Márcio gritou: Amadou perdeu a mulher porque ele era branco!”

Ao dizer isso, o repórter foi acordado pelo despertador do relógio. Sem mais delongas, se dirigiu ao banheiro para se higienizar. Enquanto se arrumava para se encontrar com a misteriosa mulher de Amadeu, recebeu uma enxurrada de mensagens de Angélica pedindo mil desculpas, e outros tantos perdões. Visualizou uma por uma para que a arquiteta soubesse que ele tinha visto todas, mas que não estava a fim de falar nada. Era seguir em frente. O tabefe fazia parte de um passado não muito pretérito que colocaria dentro de um livro, mandando-o à Biblioteca Alexandria.

A última mensagem que abriu não era de Amadeu, mas sim da mulher que assinava com o desenho duma Rainha preta. O texto dizia que já estava a caminho e passando instruções como fazer quando lá chegar. “Preste atenção nos bancos e saberá em qual deverá se sentar para conversamos. O diálogo vai ser curto. Não mais do que dez minutos. Tempo suficiente para explicar. Não faça perguntas e caso faça ficará sem respostas”. No lugar do nome havia a figura da peça de xadrez.

Terminou de se arrumar. Lógico! A roupa era a de sempre. Perdeu o encanto por se vestir de forma diferente, inclusive o desejo de mudar o pequeno guarda-roupa que tinha. Colocou uma camisa polo “sebosa”, a calça que andava sozinha e o sapato preto que há muito pedia graxa. Pela mensagem que recebera da Rainha Preta, a sua vestimenta não precisaria ser outra. Também era bater lá e voltar. Não tinha a menor intenção de parar no bar, onde foi humilhando aquela tarde.

Pediu um transporte por aplicativo e, enquanto esperava na frente do prédio, recebeu outra mensagem de Angélica pedindo mil desculpas por ter sido tão agressividade naquela tarde e que não desistisse de resgatar o irmão daquele mundo de sandice e loucura. Para colocar um fim àquela choradeira desenfreada, o repórter lhe respondeu.

“Tudo bem dona Angélica. Não sou homem de roer a corda. Embora todos pensam que eu seja um vaso sanitário onde podem depositar seus excrementos, esconderem suas podridões, eu sempre cumpro com o acordado. Então antes do dia amanhecer, a senhora receberá o seu precioso relatório, indicando como colocarei Amadeu frente a frente com essa doidivanas que o tirou do eixo. Sem mais. Márcio”.

Angélica recebeu a mensagem enquanto esperava o portão de seu prédio abrir. Sabia que teria uma conversa tensa com Rosângela, mas a viagem dela para Berlim veio em bom momento. Com todo mundo longe, poderia pensar realmente como arrumar a própria vida que estava um verdadeiro inferno. Com o que Márcio lhe disse, percebeu que nunca tivera uma existência para chamar de sua. Sua vida era para o escritório, para os seus clientes, dedicada à Rosangela, aos seus pais e ouvir as reclamações da mãe que não aguentava mais o pai, mas não poderia se separar, pois o que as amigas iam dizer.

A coisa só melhorou quando dona Maria Paula resolveu, contra a sua vontade, procurar uma psicóloga para tentar aprender a lidar com a truculência do marido que piorava a cada dia e, quanto mais Amadeu se tornava arredio, mais Jovelino ficava irascível, prepotente, mandão. Vivia dizendo que tinha um filho que deveria lhe dar orgulho, mas de tanto ler coisas que não serviam para nada, perdera o juízo completamente e culpava a esposa por isso, pois lhe fizera todos os gostos, quando deveria estar ao lado do marido e forçá-lo a assumir suas funções na empresa.

Quanto Angélica chegou ao apartamento, percebeu que haviam algumas malas na sala e Rosângela estava toda arrumada, como quem já estava de partida.

– Onde você vai?

– Como meu voo sai amanhã, resolvi ir para um apart-hotel perto do aeroporto para ficar mais fácil. Já resolvi tudo na universidade. Durante a minha estadia e pesquisa na Alemanha, vou continuar recebendo o meu salário.

– Será que você esperar eu tomar um banho. Precisamos conversar.

– Não! O que você tem para falar, diga agora. Só não pedi o taxi antes por conta disso. Aqui está a chave do carro. Afinal foi você quem me deu de presente quando nós nos casamos. Não quero! Não sinto que ele seja meu. Já que não foi adquirido com o meu dinheiro.

– Deixa de ser boba Rosângela. O carro é seu e com certeza estará aqui quando chegar. Faz o seguinte. Não vá para lugar nenhum. Durma aqui comigo. Esta é a sua casa!

– Não quero. Fui humilhada hoje de manhã por aquele seu, sei lá o que, jornalista de merda. Não sabe nem limpar a bunda e quis me dar lição de moral. Não compactuo com gente que tem ideias superficiais sobre os assuntos mais importantes da vida humana.

– Essa é a sua opinião e ele tem a dele. Mas não vou ficar nesse fogo cruzado entre vocês dois. Ele é passageiro na minha vida e você está casada comigo. E isso é o que importa. Ou não?

– Tua opinião já não me interessa mais!

Ao ouvir essa observação feita com certa rispidez, Angélica pegou na mão de sua esposa e a conduziu até o sofá para lhe explicar sobre a estada dela na Alemanha. Sabia que vinha chumbo grosso pela frente, mas precisava dizer.

– Está tudo acertado para você em Berlim. Assim que chegar, terá à sua disposição, em tempo integral, dois seguranças. Para evitar que seja atacada por aqueles grupos supremacistas brancos. É sempre bom evitar. Quanto à moradia, também não terá gasto nenhum. Ficará no meu apartamento o tempo que precisar. Já foi organizado para a sua chegada. Desta forma, poderá economizar um bom dinheiro ou boa parte dos seus salários e voltar de lá com uma poupança significativa.

– Isso se eu voltar! Por que você fez isso sem me consultar antes? Não gosto de ficar dependendo de ninguém, muito menos do dinheiro de sua família.

– Porque você é a minha esposa e quero que fique bem instalada em Berlim.

– Se sentisse mesmo como minha mulher não permaneceria aqui no Brasil e seguiria comigo para a Europa.

– Rosângela! Já te expliquei uma centena de vezes que não dá para ir contigo agora. Enquanto a situação do meu irmão não ficar resolvida, é impossível eu me afastar daqui agora!

– E enquanto ele fica doido, você flerta com aquele jornalista de bosta!

– Do que você está falando? Tu sabes o quanto te amo.

– Ama nada. Quer como sempre me manter sobre a sua aba, como tua família faz com todo mundo. Tô cheia e enojada desse mandonismo, prepotência e esnobismo do teu pai e alienação financeira da tua mãe. Mulher submissa. Capacho de homem! Cuidado para não ficar como ela.

– Deixe minha família fora disso!

– Fique tranquila. Ela ficará fora, pois quem está saindo sou eu. Chega!

– Durma aqui comigo essa noite. Amanhã eu te levo ao aeroporto.

A antropóloga pensou, e enfim disse: “- Tudo bem. Vou pensar no assunto durante o jantar de despedida com a minha família e depois eu volto. As malas ficarão aqui”.

Angélica se sentiu aliviada. Então pediu à esposa que a esperasse tomar um banho rápido, antes de ir para o encontro com seus familiares. Rosângela concordou, se deixando ficar ali no sofá.

Enquanto a arquiteta se dirigia ao quarto, a professora enviava uma mensagem que dizia: “Enrola mais um pouco aí. Daqui mais ou menos meia hora eu chego! Não vai dar para eu dormir no apart-hotel. Então depois do jantar eu te deixo lá e quando acabar tudo isso, te espero na Alemanha. Vamos ficar no apartamento dela em Berlim. Beijos. Rô”.

Assim que Angélica saiu do banho, a esposa parecia outra pessoa. Conversaram sobre as expectativas da viagem e a arquiteta informou que reservou uma quantia em dinheiro num banco daquela cidade e, caso precisasse seria liberado para ela. O que a professora não sabia é que qualquer valor que fosse sacado, deveria contar antes com o aval da arquiteta. Mas de qualquer forma, era um suporte para uma emergência.

Passou-se meia hora e Rosângela recebeu uma nova mensagem e sem cerimônia alguma informou à esposa que a aguardavam para o jantar de família. Então pegaria o carro para ir ao encontro e quando chegasse, poderiam conversar mais caso a arquiteta quisesse.

A antropóloga se levantou, dando um beijo na testa de Angélica que permaneceu sentada, enquanto a esposa se dirigia ao elevador. Assim que a professora fechou a porta e o compartimento começou a descer, a arquiteta se esparramou no sofá, levantando um tempo depois para escolher uma música que pudesse eliminar o silêncio do apartamento. “Quanto tempo será que vou aguentar com o silêncio dessas paredes”. Neste instante, Angélica se lembrou do irmão e de Márcio que já deveria ter concluído a conversa. “Será que se eu ligar, me atenderá? Difícil! Fiquei enchendo com as minhas mensagens! Mas acho que não custa tentar”.

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