Sombras de um amor…

52

 

            Assim que chegou ao bar, Márcio foi logo para a mesa em que Amadeu estava falando alto, gesticulando, ficava em pé. Depois olhava para o chão e, se imaginando uma peça de xadrez, fazia o movimento exatamente como se estivesse numa partida, concentrado. Voltava-se para a cadeira e dizia: “Sua vez. Vai jogar ou vai ficar esperando?”. Em seguida, se levantava e fazia novamente outro movimento.

Quando se aproximou, o repórter percebeu que o amigo fazia o movimento do bispo. Amadeu olhou para o jornalista dizendo-lhe: “- O mundo está uma merda por conta desses religiosos. Eles que influenciaram a cabeça do pessoal, derrubando minha Rainha preta. Acham que os ébanos não têm alma e por isso precisam açoitá-los para que alguém coloque dentro deles um espírito que se recusam a aceitar”.

– Do que você está falando Amadeu?

– O doutor voltou? Deixaram-no sair? Essas pessoas que ficam dizendo por ai dizendo serem isso e aquilo. Quando nos prendem não nos deixam outra alternativa senão fugir. O amigo escapou ou conseguiu um habeas-corpus?

– Amadeu? Sou eu, Márcio. Está lembrado? Estivemos aqui ontem à noite e conversamos.

– Estou sim! O moço foi atraído pelo alçapão da mulher de olhos tentadores. Foge deles. Se te aprisionarem, tu, nunca mais terá paz na vida! Eles vão te infernizar até te jogarem no purgatório e só sairá de lá depois que recitar A Divina Comedia inteirinha.

– Está certo Amadeu. A mulher dos olhos tentadores me deixou sair e agora estou aqui contigo. O que está acontecendo? Se acalme e vamos conversar.

– Traga um copo aqui para o meu amigo jornalista. Fiquei sabendo que ele está escrevendo uma matéria porreta de bom e vai ganhar o Pulitzer desse ano. Se isso acontecer, precisamos fazer uma festa para comemorar. Pode ser lá no meu clube. Lá não! Eles não deixam pretos entrar. Só se for para servir as mesas e ainda assim precisam usar luvas brancas.

Márcio se sentou com Amadeu e olhou bem para ele e novamente perguntou:

– O que está acontecendo contigo?

O interessante é que Amadeu percebeu a mudança no comportamento do repórter.

– Estranho você me perguntar isso. Sempre estava interessado nas minhas histórias e agora quer saber o que acontece comigo? Quem foi que te mandou aqui? Você virou capacho daquele pessoal? Olha já te aviso! Nenhum deles gosta de negros. Falam na frente que não tem nada contra, mas tente namorar um de nós. A vida vira do avesso e você não consegue nem andar pelas ruas desta cidade.

– Amadeu! Ninguém me mandou aqui. Estava passando. Vi você e resolvi entrar e conversar contigo. Só isso! E tenho interesse sim em suas histórias. Então me fale sobre elas.

Encheu o copo de Márcio que, olhando para o líquido, sabia que teria que beber. O irmão de Angélica não aceitaria que ele não lhe fizesse companhia. Chamou Rodolfo pedindo várias pedras de gelo de água de coco. Assim que o garçom ou sabe-se lá o que é: segurança, funcionário de Angélica, se afastou, Amadeu disse, segurando firme no braço do repórter:

– Eu sou esse que certa vez se descobriu um dia amando alguém distante!

– Qual poeta disse isso, Amadeu?

– Eu lá vou saber! Tem tantos, eu li tantos que não me lembro mais. Certa noite tive com o Bandeira a me puxar as orelhas com o seu parnaso sobre lixo, comida, homem, bicho. Não entendi nada. No dia seguinte, fiquei maluco procurando o tal latão de excrementos que ele falava ter visto o homem revirando. Você acredita que não consegui achar a tal lata? Então deixei para lá.

Márcio deu a primeira golada no uísque e foi como se tivesse bebido a coisa mais amarga do mundo. Achou estranho porque a noite anterior o sabor era outro. “O que havia mudado”, perguntou-se a si mesmo. Ao colocar o copo sobre a mesa, olhou para Rodolfo em tom de pergunta e este respondeu fazendo sinal afirmativo.

Enquanto o jornalista acalmava Amadeu, Angélica agilizava tudo o que podia para que a temporada de Rosângela na Alemanha não fosse tão traumática. A esposa ia para Berlim, onde a arquiteta mantinha um apartamento. Ligou, ordenando que tudo estivesse impecável para quando a antropóloga chegasse. Determinou também que fosse sempre acompanhada por dois seguranças. A medida, claro que contrariaria a professora, mas visava evitar que esta fosse assediada por grupo ultranacionalistas que começavam a crescer em toda a Europa.

No bar, Márcio tentava saber mais sobre o tal do parnaso que Amadeu falava, mas este não se concentrava num tema e ia para outro como se estivesse vivenciando tudo aquilo. Do nada afirmou ao repórter que viu Dom Quixote salvando sua amada, Dulcineia da barriga da baleia.

– Olha só se o senhor não viu, então creio que jamais poderá atravessar o mundo na barcaça que Homero construiu para selecionar aqui na Terra um casal de cada espécie. Vai lá e o avisa que pode pegar de todas, menos uma: a humana. Essa é muito perversa e vai estragar o paraíso futuro porque o passado deu no que deu. É só você, meu caro repórter, analisar o presente do Éden pretérito.

Ao término de sua narrativa, Amadeu encheu seu copo e de Márcio lhe dizendo:

– Bebamos, meu amigo ao futuro, pois brindar o presente não dá. Principalmente quando ele muda de cores conforme eu pisco os olhos. Não acontecesse isso com vós-me-cê?

O jornalista olhou com muita calma para o irmão da arquiteta e viu que ele estava em outro lugar. Num momento entendia quem era Márcio, no momento seguinte, se voltava para o passado, parecendo temer em demasia o futuro. O repórter se lembrou de uma matéria que fez para o jornal da faculdade em que alguém disse que o homem vive preso em seu passado e atormentado pelo amanhã que nunca chegará. Ou seja, foi acorrentado por coisa que não conseguiu resolver ontem e estava amedrontado pelas consequências do atroz momento em que vivia. Esse seria o caso do irmão da arquiteta e o dele próprio.

Antes que Márcio pudesse dizer alguma coisa, Amadeu levantou pegou a garrafa de uísque, passou a vista pelo relógio, dizendo para o amigo.

– Adeus meu caro cavaleiro, quem sabe não nos encontramos numa outra batalha, porque essa aqui a humanidade já perdeu e nem eu e nem você, podemos fazer nada. Apenas fugir para não sermos acorrentados no calabouço, a não ser que deitemos o Rei no tabuleiro ou oferecemos o empate e nessa condição, quem tem poder pode muito mais, então o empate penderá para o bolso mais cheio de dinheiro e posses. Cuidado com a passarinhada que tem olhos esverdeados de pura tentação.

Ao terminar a frase, saiu apressadamente do bar e, quando o repórter fez menção de segui-lo, Rodolfo o conteve, explicando:

– Sempre tem alguém olhando ele. Não se preocupe. Pode voltar para casa. Sua função aqui já terminou.

Márcio ficou intrigado com aquela fala do garçom e perguntou-lhe:

– Afinal, quem é você?

– Alguém que não interessa que você saiba. Você não recebe para me perguntar nada, apenas para conduzir Amadeu de volta para casa.

O jornalista olhou para o relógio e viu que dava tempo de chegar em casa e descansar um pouco, antes de ir ao encontro na praça do bilhete. Pediu umas latas de cerveja e quando foi pagar, Marcos lhe disse que já haviam sido pagas. Observou dentro da embalagem que elas já estavam acondicionadas dentro de isolantes térmicos. Quando fez menção de falar novamente, o proprietário soltou-lhe a seguinte afirmativa:

– O senhor pergunta de mais, olha muito para lugares que não são seus. Se contente com o que tem e volte para casa. Não há nada mais que possa fazer aqui. Tenha uma ótima tarde.

O jornalista silenciou-se, recordando-se de que até há alguns dias era um repórter sem muito o que fazer na redação do jornal, onde estava mais por favor de um amigo do que realmente ser competente. Então o melhor a fazer era recolher-se a sua insignificância e terminar o que se comprometeu a fazer e não se envolver com aquele pessoal. “Assim que concluir tudo, vou procurar emprego em outra cidade ou sei lá. Aqui a coisa vai ficar marcada e tenho certeza de que não conseguirei mover uma peça no tabuleiro do xadrez profissional”, pensou Márcio enquanto deixava o estabelecimento.

Após andar umas cinco quadras do Bar da Net, o telefone dele tocou. Pensou em não atender, porque fazia ideia de quem era. Estava cansado de receber ordens e pontapés. Precisava recuperar a dignidade perdida na véspera de seu casamento. Seguiu em frente e não atendeu.

Andou mais cinco quadras e o aparelho voltou a tocar. Olhou e sabia de quem era. Resolveu atender e colocar um ponto final naquilo tudo.

– Alô, o que a senhora deseja?

– Onde o senhor está?

– A caminho de minha casa. A missão que a patroa deu foi executada com maestria. Cambio desligo.

– Nem pensar. Ninguém desliga na minha cara. Preciso falar com você.

– Para quem jurava nunca mais falar comigo pessoalmente, a madame está me querendo muito próximo. Então pode falar.

– Estou aqui defronte ao seu apartamento. Venha rápido porque não tenho o tempo todo do mundo.

– Ué! A senhora não disse que teria muitas coisas para resolver lá com a sua esposa. Por que está atrás de mim?

Márcio pensou em chamar um táxi pelo aplicativo, mas de onde estava faltavam mais ou menos uns dois quilômetros para chegar a sua casa. Resolveu manter a mesma passada. “Ela que espere! Tô de saco cheio desse povo mandão!”, exclamou mentalmente o repórter.

Depois de quase uma hora, Márcio virou a esquina da rua em que ficava seu prédio e de longe avistou o carro de Angélica. A arquiteta nem esperou ele chegar próximo do veículo. Saiu antes e já foi soltando os cachorros.

– Escuta aqui, achei que viria de táxi. Se soubesse teria mandado um para te buscar.

– A madame não acha que está mandando muito não? Está me pagando para escrever uma matéria para desentocar a doida que deixou seu irmão amalucado. Estou quase conseguindo isso, sem precisar publicar nada. Assim que terminar tudo, quero que a senhora e sua família de retardados vão tudo tomar no cu. Estou cansado de ser tratado como um cão sarnento.

Dizendo isso, Márcio se dirigiu ao seu prédio, contudo, Angélica foi atrás falando, falando, falando e o repórter fez de conta que não era com ele. Angélica o puxou pelo braço e bradou.

– Escuta aqui! Posso fazer o senhor e essa sua profissãozinha de merda desaparecer num piscar de olhos.

– Gostaria sinceramente de ver a senhora fazer desaparecer aquilo que já não existe mesmo!

Ao entrar no prédio, Márcio não teve tempo de fechar a porta antes de a arquiteta entrar.  Ela continuava a falar. E o repórter desafiando-a a fazê-lo sumir, desaparecer.

Entraram dentro do elevador e com a respiração acelerada, Márcio falou entre os dentes:

– Escuta aqui madame. Eu não tenho nada, nunca fui nada. E antes eu tinha um passado que achava que ninguém sabia até ser esculachado pela senhora e sua esposa hoje de manhã. Então pare de me encher o saco e volte lá para os braços dela. E olha. Se tudo der certo hoje, poderá pedir a ela para adiar a viagem. De repente ainda dá tempo de você ir com ela para Alemanha. O irmãozinho estará nos braços da mamãezinha ou usando camisa-de-força numa clínica para lunáticos.

Já estavam na porta do apartamento de Márcio, quando Angélica lhe desferiu um tapa no rosto gritando com ele: “-Já terminou, seu jornalista de merda?”

– Prefeito ser um repórter de bosta do que um rico sem cérebro. Agora, por favor, acho melhor a senhora ir embora. Já passou dos seus limites.

Quando Márcio abriu a porta do apartamento, ele não soube como, mas Angélica passou em sua frente e já estava lá dentro antes dele.

– Eu já pedi para a senhora ir embora. A noite eu vou me encontrar com a mulher misteriosa e depois eu passo o relatório. Pretendo marcar um almoço com ela no restaurante que eu costumo frequentar. Um lugar longe dos olhares de todos. Amanhã à noite eu falarei com Amadeu e tentarei levá-lo para almoçar comigo. Agora pode sair, por favor?

– Me desculpas, senhor Márcio!

– Seu estoque de desculpas já acabou e a minha paciência também. Ainda bem que tudo vai terminar depois de amanhã. Logo depois vou pedir demissão do emprego e devo deixar a sua cidade, já que sua família de mentecaptos manda em tudo mesmo. Não tenho chance alguma de caminhar um passo se quer.

            Sem ter mais como argumentar, Angélica deixou o local com Márcio ficando ali em pé como um soldado da guarda real britânica. Ela olhou para ele e sabia que tinha ido além da agressão verbal. Havia dado um tapa no rosto dele e ele não revidou.

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