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Ao entrar no elevador com Angélica, Márcio sentia que um novo mundo começava para ele. Apesar de a atmosfera ser diferente, o repórter sabia onde pisava e jamais atravessaria os limites que a aliança que a arquiteta trazia em sua mão esquerda delimitavam. Pelo que pode ver naquele café com as duas, alguma coisa não ia bem e a viagem para o exterior poderia indicar, não um fim definitivo entre o casal, mas uma solicitação de tempo pedido pela ciência.
Enquanto pensava tudo isso e olhando para um ponto vago dentro do compartimento, Márcio era avaliado pela arquiteta. Ele a surpreendeu conferindo o seu vestuário. Ela não se intimidou com a descoberta do repórter e nem cessou o que fazia, quando, finalmente lhe disse:
– Achava que o senhor não sabia se vestir. Estava sempre metido naquela calça que parecia nunca ter visto água na vida. Camisas sebosas, mal lavadas. Pareciam que o senhor as lavavam dentro do vaso sanitário e a colocavam para secar atrás da geladeira. Fiquei surpresa com o seu vestuário. Alguma mulher ajudou a se vestir? Quem é ela? Sua namorada? Uma nova noiva? O senhor já se reconstruiu do vexame anterior?
– Calma aí dona Angélica. Se a senhora conhece tudo da minha vida. Do meu passado e olha que até a sua esposa tem conhecimento e tentou me colocar nas cordas com aquela conversa toda. Então sabe que sou solteiro e não tenho ninguém, nem paquero nem nada. Sabe que vim parar nesta cidade por conta do editor do jornal que fez faculdade comigo e estava na minha cidade para o meu casamento, me tirando daquela situação toda vexatória. E desde então tenho me mantido longe de confusão. Amor, mulher, paixão, eis uma trindade que quase me leva ao sanatório, ao cemitério ou a cadeia.
Depois dessa observação, o casal ficou em silêncio até que entraram no carro. Somente voltaram a se falar quando o veículo da arquiteta já estava em movimento na rua. Ela foi direta:
– Eu entendi que o senhor não quis falar nada no café. Percebi que havia um clima ruim entre você e Rosângela. Nosso casamento está meio complicado e minha esposa queria que eu fosse para Alemanha com ela.
– Eu não tenho nada a ver com a vida de vocês, mas ela parece que estava com medo que eu levasse a senhora para cama. Que fosse tirá-la dela. Cruzes! Mulher neurótica! Egoísta. Só pensa nela. Como conseguiu se casar com ela. Estava cega de amor ou fugindo do seu pai repressor ou de um marido que a violentava em sua intimidade?
Diante do silêncio da arquiteta, Márcio achou que pegou pesado. Não tinha nada a ver com a vida sentimental dela e não fez as perguntas em tom acusatório por conta do que ela lhe disse no dia anterior em relação aos seus problemas com a ex-noiva. Situação da qual procurava fugir como diabo corre da cruz.
– Desculpe-me pela indiscrição. Vamos mudar de assunto. Eu tenho algumas coisas para te dizer e mostrar, mas só vou falar se você me prometer que não fará absolutamente nada. Nem mandar os seguranças atrás, ficar vigiando. Promete?
– Está bem! Tem minha palavra. Não moverei uma palha, até porque eu terei uma noite complicada e amanhã será um dia tenso também. Então diga lá.
A primeira coisa que Márcio fez foi mostrar a mensagem que Amadeu lhe mandou. No final do texto havia a figura dum rei branco.
– E daí? Amadeu jogou xadrez durante muito tempo. Ganhou várias competições no clube em que somos sócios. Mas sabe-se lá porque, ele desgostou do esporte. Então esse rei branco não tem nada a ver. Não esclarece absolutamente nada do que pode ter acontecido com o meu irmão para ter ficado feito um lunático, beberão que conversa com as pessoas só através de enigmas e trechos de livros de literatura e filosofia e tem uma lagartixa de estimação e fala com ela como se fosse a sua terapeuta.
Márcio olhou para Angélica e emendou uma pergunta que tinha tudo a ver com o que iria revelar em seguida.
– A mulher pela qual Amadeu caiu de quatro, é branca ou preta? Você sabe me dizer?
– Não sei! Ele nunca me falou sobre isso. Apenas que a conheceu pessoalmente quando trabalhou naquele supermercado. Depois saiu com ela umas vezes e iniciaram um jogo de sexo virtual em que cada um explorava a sua sexualidade prometendo uma relação sexual semelhante à que simulavam virtualmente. Ele me falou que a moça fazia um jogo de luzes em que o corpo dela desaparecia, ficando apenas o lingerie, como se este se movimentasse sozinho. Ficou só nisso. Depois, do nada, ela desapareceu. Meu irmão ficou um tempão sem falar com a gente. Até que um dia eu recebi a informação que tinha deixado a casa e a dona do imóvel não sabia onde Amadeu estava.
Diante do narrado, Márcio ficou imaginando Amadeu completamente alucinado pelas ruas da cidade procurando o lingerie que se movimentava no escuro através das imagens que a mulher criava para ele se encantar. O repórter voltou a terra quando ouviu a voz da arquiteta dizendo-lhe:
– Descobri ele dormindo no banco de uma praça aqui da cidade, quando eu a atravessava para conversar com um cliente. Deixei meu carro num estacionamento e fui a pé. Acho que demorei para encontrá-lo por que só andava de carro quando o procurava.
– Olha só. O que vou lhe dizer agora não pode sair daqui em hipótese alguma!
Márcio mostrou a mensagem que recebeu naquela manhã, confirmando o encontro de logo mais à noite. O texto era assinado por uma Rainha preta.
– Eu acho que essa mulher é negra e deve ter lá seus motivos para desaparecer. Creio que descobriu que Amadeu não era um simples funcionário de supermercado, mas membro de uma importante família que costuma comprar as pessoas e tudo o que vê pela frente. Imagina ele aparecer nesse clube que vocês são sócios tendo ao lado uma mulher preta? Foi por isso que esses dias ele me falou que não podia apresentar a sua rainha preta. As peças brancas a haviam destruído.
Quando Márcio terminou de falar, o carro de Angélica acabara de virar a rua em que ficava seu prédio. Olhando bem para Angélica, cujo olhos estavam esverdeados novamente, pediu para ela não falar com ninguém, nem mesmo com Rosângela. Desconfiava que se a pessoa percebesse que havia gente estranha por perto da praça, sumiria novamente e adeus a chance de tentar tirar Amadeu daquele mundo de devaneios e peças de xadrez.
Emocionada, Angélica lhe garantiu que não iria falar com ninguém. Nem mesmo com a mãe, ou Rodolfo, mas pediu para Márcio marcar um encontro com a mulher misteriosa para dali a dois dias depois. No dia seguinte, Rosângela embarcava para a Europa e não podia, em hipótese alguma, deixa-la fazer isso sozinha. Ainda tinha que resolver as questões de hospedagem, dinheiro e segurança para a esposa na Alemanha.
– Tudo bem! Então depois que eu marcar tudo, entro em contato com a senhora!
Disse isso e, pela segunda vez beijou, Angélica na face dando um aperto forte em sua mão, indicando que podia confiar nele. Traria Amadeu de volta para a família. O resto era com eles.
– Trabalhe com calma e resolva seus problemas. Eu me entendo com o seu irmão.
Márcio entrou no prédio, caminhando para o seu apartamento totalmente leve. Mas estava tenso com a revelação que fez a Angélica. Ela podia não resistir e falar para mãe, caso essa lhe ligasse desesperada por conta do irmão. As informações que possuía era de que tudo continuava na mesma, desde o dia anterior e também por conta da mensagem que mandou a ele.
Ao entrar em seu apartamento, Márcio ligou o computador e colou-se a escrever tudo o que tinha conversado com a irmã de Amadeu, inclusive com significativa narrativa. Passava de uma pessoa gramatical para outra, mas não se importava, pois queria deixar tudo registrado. Depois separaria o que pertencia ao “eu”, ao “ele” e ao “nós”. Quando terminou tudo, viu que deu mais de cinco laudas e já se passava do meio-dia. Ficou na dúvida se almoçaria fora ou pediria comida em casa. Entre sair e ficar, resolveu pelo último e encomendou comida no mesmo lugar de sempre. Quando foi pedir bebida, pensou umas três vezes, e optou por refrigerante. Resolveu dar uma folga ao seu fígado.
A refeição chegou rápida e com a mesma velocidade foi devorada por Márcio. Em seguida, fez a higiene bucal e tentou ler alguma coisa que tinha em casa. Ficou com aquela conversa de ativismo negro na cabeça. Nunca levara aquilo a sério, mas Rosângela mexera com seus brios, tirando-o de seu mundinho de ressentido e noivo corneado. Levantou-se e foi ao computador, entrou num site de busca e digitou as palavras necessárias e apareceu uma série de artigos e livros. Se interessou pelos livros. Ao começar a transferir os títulos para um arquivo que tinha, se lembrou do livro que deixou no carro de Angélica.
Voltou ao sofá e foi tomado pelo sono. Não demorou e sonhava com coisas que jamais poderiam acontecer se estivesse acordado. Em seus devaneios oníricos, a mulher não estava com o camisão semelhante ao que Angélica usou naquela manhã, mas sim com uma camisa dele, com os botões abertos, meio que escondendo parte dos seios e mostrando a outra. Ela usava um lingerie azul, curtíssimo que mostrava os montes pubianos aparadíssimos. Era a mesma mulher que o assombrava em pesadelos anteriores. Num momento ela aparecia como homem e depois virava mulher, depois surgia como mulher que se transformava em homem com uma enorme ereção, sem, no entanto, ser possível ver o seu rosto. Márcio sempre acordava por algum barulho externo que o despertava. Naquela tarde, no sonho quando levantou a cabeça para ver quem era a gostosona que o convidava para uma noite de amor, o celular tocou insistentemente.
Acordou assustado, tentando saber de onde vinha o som. Olhou para o aparelho e viu que o número era de Angélica. Ele atendeu e de cara, já levou um esporro da mulher.
– Por acaso, o senhor estava comendo alguma mulher ou dormindo? Faz meia hora que estou te ligado.
– Pronto! Já atendi. O que a senhora deseja?
– Na sua porta tem um carro lhe aguardando. O motorista aqui da empresa está lhe esperando para levá-lo ao bar onde o senhor frequenta com o meu irmão.
– O que aconteceu com Amadeu?
– Não sei. Rodolfo me ligou dizendo que ele está lá falando coisas sem nexos, mas disse que uma tal xerifona estava roubando o amigo dele. Ela já teria lhe tirado tudo, inclusive o tabuleiro de xadrez e agora quer sumir com o único amigo que tem. Depois falou que as mesmas pessoas que roubaram sua rainha estava agora sumindo com as peças todas e um peão muito querido. Presumo que ele esteja falando do senhor.
– E é claro, a xerifona nós sabemos quem é: você!
– O que você pensa não me interessa. Vá pra lá logo antes que comece a juntar gente. Tire meu irmão de lá ou de um jeito de acalmá-lo.
– Está bem. Estou indo. Que família!
– É a única que eu tenho e, pode ter todos os defeitos, mas eu não a trocaria por nenhuma, inclusive o senhor! Onde está a sua?
– Já disse que vou. Não precisa bater, mais do que já vem me humilhando. Assim que chegar lá e acalmá-lo dou um jeito de te avisar.
– Não é necessário. Tenho pessoas que fazem isso. Não se incomode. Só faça o que lhe pedi!
Disse isso e desligou. Ligando para o motorista, dizendo que Márcio já estava descendo.