Reflexões sociais

Literatura

Nos aforismas desta quarta-feira, apresento aos meus leitores aqui do site https://www.noroesteon.com.br um pouco de minha visão do Brasil a partir de alguns romances que já li em algum momento de minha vida e que auxiliaram e continuam me ajudando a compreender um quantum significativo deste país com forte passivo escravagista. Como não poderia deixar de ser, começo pelo escritor carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) que nos legou importantes enunciações nas áreas do romance, crônicas, contos, críticas literárias e teatrais, bem como significativas poesias. De chofre cito aqui vários trabalhos singulares como Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Quincas Borba e Memórias póstumas de Brás Cubas. Todos considerados clássicos da literatura mundial.

 

“Favor”

O primeiro livro a ser brevemente observado aqui é Memórias póstumas, mais especificamente o capítulo IV: Ideia fixa. Naquela breve seção de quatro parágrafos, o leitor encontrará, de forma sintética, uma descrição do Brasil que insiste em não deixar a Nação moderna surgir: o país do “favor” que tem como fundamentais elementos o homem livre de outrora e o burocrata corrupto de hoje, aquele que aceita suborno, propina advinda das categorias sociais abastadas que formam a plutocracia nacional existente desde os tempos da Monarquia, conforme o escritor José de Alencar (1829-1877) explica em seu livro Cartas de Erasmo ao Imperador (http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/cartas_de_erasmo_ao_imperador_-_jose_de_alencar.pdf).

 

“Bandeiras”

É interessante notar que no livro considerado a sua virada para o universo do realismo brasileiro, Machado indica haver bandeiras que têm abaixo de si outras flâmulas que aguardam as migalhas que caem das que lhes fazem sombras e assim sucessivamente. Claro que o recurso literário, isto é, a alegoria, evidencia a ideia do “favor”, da cerimônia do beija mão instituído pelo monarca Dom Pedro II durante o seu reinado 1840-1889, que consistia na prática de beijar a mão do imperador depois de lhe contar as suas agruras. A questão é: quem teria acesso a esse evento sabatino numa das residências imperiais? E quem organizava o cerimonial.  Daí é possível especular que é possível encontrar ali um dos elementos fundamentais que forjaram a casta de burocratas que suga os recursos públicos através do “jeitinho brasileiro”. Sendo assim, afirmo que percorrer as páginas deste romance significa compreender, por meio de intrincados enunciados, um quantum significativo da estrutura social mantida até hoje na República Federativa do Brasil com ares monárquicos.

 

Quincas Borba

Deste romance – cuja leitura pode levar o leitor a enxergar alguns lampejos do romance francês Os miseráveis, composto por Victor Hugo (1802-1885) [lembremos que a primeira tradução Os trabalhadores do mar outra enunciação de Hugo é feita por Machado de Assis] – é importante destacar uma narrativa que pode ser vista como paralela e sem significativa importância,  todavia, interessante para pensarmos o comportamento do brasileiro nesse período pandêmico, em que o mais complicado tem sido conscientizar as pessoas da necessidade de se manterem em casa e levando a sério o isolamento social. Num determinado trecho do romance, uma das personagens se encontra dentro do trem e lê num jornal a notícia de que numa determinada localidade, enquanto uma senhora se desesperava por ver sua casa em chamas, um transeunte, de passagem, acende o seu cigarro nas labaredas do imóvel que ardia no fogo, levando consigo todos os pertences e os sonhos da moradora.

 

Solidariedade

Durante a minha passagem pelo IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) desenvolvi uma pesquisa envolvendo a globalização e suas mazelas, no qual indicava haver a necessidade de se desenvolver uma ética racional de solidariedade. Tendo essa observação como pressuposto, compreendo que o conteúdo da narrativa machadiana é um indicativo de que os brasileiros são pouco solidários e estão naquele momento em que afirmam “meu pirão primeiro”. Lógico que a análise não pode ser generalizada. É preciso ter em conta que, muitas pessoas, em seus peculiares anonimatos, contribuem de forma significativa para aplacar a fome e as dificuldades que muitos vêm enfrentando nesses tempos pandêmicos. E por serem solidários com os desafortunados rejeitam qualquer forma de publicidade. De qualquer forma, é preciso que todos reflitam sobre as saídas possíveis para a Nação num mundo pós-pandêmico.

 

Bíblico

A penúltima enunciação machadiana tem um que de bíblico, desde o seu título que referencia o Antigo Testamento e aqueles que forem versados em bibliologia – se é que seja possível haver tal ciência – poderão me corrigir caso eu esteja equivocado, pois creio que nessas duas figuras do mundo antigo dizem respeito aos povos judaicos e palestinos que brigam até hoje, desde quando o baixinho Davi acertou uma pedrada no Terceiro Olho do gigante Filisteus [ povo da Palestina] Golias. Ao que tudo indica, começa ali a narrativa de um povo que deu origem ao cristianismo em sua forma primitiva que acabou por se fragmentar em diversos ritos, entre eles, a Igreja Ortodoxa e o cristianismo maronita.

 

Embates

Além desse embate bíblico presente no Antigo Testamento, o leitor atento desta penúltima obra do primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, encontrará as disputas entre os irmãos gêmeos Pedro e Paulo. O primeiro, defensor da Monarquia e o segundo, um ardoroso republicano. Ambos disputam tudo, desde as questiúnculas envolvendo a queda ou não da Monarquia até o amor de Flora, filha do casal Batista que vive de “favores” – ora do Partido Liberal ora do Partido Conservador, pois como dizia Cláudia, a mãe da jovem ao seu marido, o advogado Batista: “é preciso dançar conforme a música”, isto é, se os Conservadores estão no poder, ou seja, chefiam o governo monárquico, o esposo deve dizer e professar o credo deste partido e quando os Liberais estiverem no comando, o bailado tem que estar afinado com esse pessoal.

 

Promessas

É significativo observar o que acontece no presente em Brasília. O atual presidente foi eleito com um discurso contra a política, de acabar com a corrupção no Estado brasileiro, entretanto, quando as melodias começam a emitir sons que não lhe eram favoráveis, tratou logo de abraçar o famoso grupo de legisladores que se aglutinam no chamado “Centrão”. Mas o que dirão seus eleitores? Que foram traídos, como sempre dizem quando a mercadoria ou o político de estimação é um vira-casaca? A estes eu responderia: leiam o capítulo 18 do livro O príncipe, de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Na referida seção, os sujeitos sociais encontrarão algumas explicações, tais como aquelas em que há afirmação de que de um governante não se pode esperar a manutenção da palavra dada, justamente por conta das mudanças temporais. Dito de outra forma, quando a promessa foi feita, o momento era um, e quando deveria ser concretizada, a situação é completamente outra.

 

Bovarismo

Mas voltando ao Esaú e Jacó, de Machado de Assis, observo aqui que há naquela narrativa uma tentativa por parte do narrador, o Conselheiro Aires de entender o que aconteceu na madrugada de sexta-feira para sábado, isto é, do dia 14 para o dia 15 de novembro de 1889. Ou seja, a República substituiu mesmo a Monarquia, ou foi apenas uma troca de tabuleta como este sugere ao confeiteiro Custódia que estava aflito por conta de uma placa que iria identificar a sua padaria? Também tem a indecisão de Flora, que não sabe se fica com Pedro – Monarquista -, ou Paulo – Republicano. Numa noite de sono agitado, a heroína sonha com Paulo achando se tratar de Pedro. Diante da indecisão, a filha dos Batistas morre de causas desconhecidas, creio que semelhante ao do povo brasileiro: de bovarismo, pois vive uma realidade crendo estar em outra.

 

Casmurro

Aos que se interessarem pela compreensão do que significa bovarismo, recomendo a leitura do livro de Ciências Sociais “Raízes do Brasil”, do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Enfim, faria um pequeno comentário acerca de Dom Casmurro, mas creio que, devido a importância deste romance, vou deixar para abordá-lo num artigo a parte. Por hoje fico com os enredos supracitados, mas quando retornar aos aforismas que compõem à coluna Reflexões sociais voltarei a me ocupar das enunciações romanescas e outras narrativas que possam explicar um pouco essa complexa Nação chamada Brasil. E-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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