Literatura
Começo meus olhares deste domingo com uma epígrafe presente no romance Ensaio sobre a cegueira, do escritor português e Prêmio Nobel de Literatura em 1998, José Saramago (1922-2010), que escreveu também outro instigante clássico do universo romanesco: Evangelho segundo Jesus Cristo. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Usando oito palavras, o lusitano faz com que seu leitor reflita antes de começar a viajar pelas 310 páginas que compõem a obra [na minha edição da Companhia das Letras de 2019]. E é a partir dessa pequena observação que tentarei, nos aforismas que se seguem, entender o momento que o país, o Estado e Penápolis vem passando por conta da pandemia do Covid-19.
Pandemia
Não preciso ficar enfatizando que o mundo parou, antes mesmo do pedido do personagem daquela música do Raul Seixas, que usava um programa radiofônico para pedir à Terra que parasse para que ele descesse, como se o orbe fosse um ônibus que deveria parar em pontos estratégicos, mas o sujeito queria apear antes, em qualquer lugar, pois não aguentava mais a viagem e os companheiros de veículo existencial. Será que muitos de nós se encontram nessa condição, justamente agora em que um vírus paralisou tudo, mesmo que bilhões de humanos querem se locomover, o Covid-19 está ali lembrando-o da temeridade de sair sem máscaras ou ficar andando a esmo pelo meio da multidão.
Global
O fenômeno é global, mas no Brasil, de dimensões territoriais e um pacto federativo manquitola com um presidente em questionamento por parte considerável de brasileiros, justamente pelos seus pronunciamentos e seu comportamento diante da pandemia, a situação beira ao descalabro, para não dizer caótico, justamente porque, segundo a mitologia grega, Caos é o pai de Thanatos, o deus da morte. Não se pode deixar de considerar o barqueiro Caronte, encarregado de transportar as almas dos mortos à porta do inferno. E o que dizer então do deus do morto egípcio Anúbis. Se a problemática de saúde pública é geral, então Penápolis não ficaria de fora, devendo escrever seu nome no rol das cidades que tem moradores com Covid-19, inclusive registrando óbito. Basicamente a doença chegou com o óbito, isto é, o primeiro caso já levou o contaminado à morte.
Carreatas
Interessante notar que aqui foi registrada também “carreata” para abertura do comércio, como se tudo não passasse de uma gripezinha, contudo, os dados são importantes, pois desde a primeira morte até o momento – levando-se em conta que muitas atividades comerciais foram suspensas por quase 60 dias e isso foi bem significativo no controle das transmissões e da letalidade – foram registrados 23 casos e quatro mortes. Se forem levados em conta o número de habitantes, o deus Thanatos não conseguiu crescer dentro das paragens maria-chiquenses. Mas isso não significa que liberou geral e pode-se fazer algazarras aqui e ali, andar sem máscaras. Muito pelo contrário, a coisa precisa ser mais rigorosa, para que o fechamento não seja geral.
Cripta
Pelo que foi estampado na edição da última quinta-feira deste jornal, o procedimento seria esse mesmo, conforme o governador paulista havia anunciado há dois meses, mais ou menos, que a flexibilização aconteceria nesse período agora, desde que os números estivessem dentro do aceitável e, ao que tudo indica, se não houver um estouro de casos nos próximos dias, tendo em vista a ação de muitos penapolenses nas duas últimas semanas, não haverá necessidade de novo isolamento, contudo, ressalto que, se o cidadão não colaborar e os comerciantes também, o caos reinará e ai não adianta carreata, pois precisará da construção de criptas enquanto os corpos jazem sendo velados pelo filho do Caos.
Educação
Sei que há uma grita geral, principalmente por parte dos pais, no que diz respeito ao fechamento das escolas e aulas online com professores no teletrabalho, entretanto, é preciso um quantum significativo de razoabilidade para se entender a situação. Primeiro, porque não se pode conceber, em plena pandemia, que as salas de aulas, muitas delas, superlotadas, recebam estudantes. Em virtude disso e como a história nos revela, o setor educacional é a última área a voltar à normalidade. Desta forma, a recomendação aos pais e responsáveis é que aproveitem esse momento para participarem mais ativamente da vida ativa educacional de seus filhos, sobretudo fornecendo-lhes valores éticos e morais, dentro do que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Cegueira
Diante do exposto pandêmico no Brasil em que há muitas pessoas que descreem do problema, achando que tudo não passa de uma gripezinha, similar àquela frase de Aristides Lobo quando a Monarquia foi desfeita na madruga do dia 14 para 15 de novembro de 1889 – mais precisamente num sábado, a exemplo do que aconteceu com o fim da escravidão. Já o 31 de março de 1964, que muitos pedem o retorno, sem conhecer direito o recrudescimento e o fim das garantias democrática, caiu numa terça-feira. O jornalista oitocentista afirmara naquele sábado do século XIX que o povo assistira a tudo como se estivesse observando uma parada militar, indicando que o brasileiro não atuara efetivamente para colocar fim ao Império, indicando que a República nascente já vinha chancelada pela democracia delegativa e não participativa.
Novo regime
Instalado o novo regime sob o auspício do trabalho livre – descendentes de africanos à rua e à própria sorte enquanto o europeu recebia as benesses e ajuda do Estado monárquico e posteriormente republicano – o Brasil começa o seu calvário para se livras das joias e dos vícios da Coroa. Será que conseguiu? Será que o cidadão monarquista se transformou no indivíduo republicano? Uma análise mais detalhada pode levar o sujeito social curioso a entender que não, pois há uma burocracia aristocratizada, uma categoria a usar os superlativos, a exemplo da personagem José Dias, do clássico machadiano Dom Casmurro, sempre que a ocasião lhe convier, como mecanismo de distinção, conforme indica o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), autor de importantes trabalhos reflexivas sobre a sociedade francesa, entre elas Sobre o Estado (SP: Cia das Letras, 2017) e a Dominação masculina (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010) mas que pode ser útil para se pensar esse Brasil nessas primeiras décadas do século XXI. Na próxima coluna pretendo deslindar um pouco mais sobre o “espírito” de brasilidade apontado por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) que o penapolense não escapa. E-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.