Radiografia brasileira

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Recordo-me de alguns momentos de minha infância em casa de alguns parentes quando passava as férias escolares de final de ano. Normalmente essas residências ficavam na zona rural para onde me dirigia feliz da vida, pois estaria em breve em contato com a natureza e longe da vida amalucada dos grandes centros, horários apertados, fumaça, barulhos daqui e dali, gente berrando em plenos pulmões, gritarias que me deixavam extremamente cansado no final do dia. Portanto, quando o calendário marcava que estávamos na segunda metade do mês de novembro, minha imaginação fugia para os verdes campos e o aroma que os pés de eucaliptos exalavam. Era uma delícia acordar pela manhã respirando aquele ar puro e, depois do almoço, sempre contendo excelentes pratos, gostava quando uma das moradoras da hospedaria se dirigia a uma velha máquina de costura que ficava num dos cantos da sala. Lá ela passava a tarde toda a coser roupas novas e arrumar outras antigas e reformando algumas a partir de retalhos que tirava de um velho baú colocado entre duas poltronas que enfeitavam aquele cômodo. Sempre prestava atenção quando as vestimentas estavam do avesso.  Perguntava-lhe por que tinha que ser daquele jeito? Obtinha como resposta que, quando se vira um vestuário ao seu avesso enxergamos de fato como a roupa foi costurada, portanto, quando vai arrumá-la, o trabalho é facilitado.

Pois bem, o tempo passou e eis que a sociedade se depara com uma roupa política em seu avesso. E o que fazer quando os eleitores reconhecem que são parte do furo, do rasgo, do buraco que deixa parte do corpo à mostra, justamente naquele jantar de gala a que foi convidado, o famoso banquete dos deuses. Nessa comensalidade se falaria de tudo e de todos, principalmente daqueles que, a exemplo dos tempos Del Rey em que as danças se realizavam sempre próximo ao rei-menino feito adulto por força das contingências políticas e os pares se colocavam de acordo com a influência que se tinha junto aos burocratas que articularam o famoso golpe da maioridade. Era interessante observar naquela época que havia, antes dos sabáticos bailes noturnos, a cerimônia do “beija-mão” quando os desafortunados do Império pediam clemência e ajuda ao monarca-adolescente, feito homem adulto por astúcias políticas da Corte luso-brasileira. Mas quem podia, naquela época, ser o afortunado de ter seus lamentos escutados pelo príncipe regente e, em seguida, beijar-lhe a mão imperial? Será que aquelas famílias paupérrimas que habitavam o Morro do Livramento ou Morro do Castelo, podiam chegar perto das joias da coroa? Claro que a resposta sempre foi a mesma: não! Primeiro, porque quem agendava essas visitas, era sempre alguém próximo à realeza e sempre precisava ter a mão molhada, como dizia naquele filme famoso: “soldado Rocha! Soldado Rocha! Quem quer rir, tem que fazer rir!”

Mas deixemos essas intrigas palacianas, plutocráticas e burocráticas para outra ocasião e voltemos à máquina de costura do início de minha enunciação e a roupa e o seu avesso. A essas memórias, soma-se o conto machadiano Um apólogo. Leitura maravilhosa, sobretudo por se tratar de uma conversa entre uma agulha e uma linha para saber quem era a melhor e a mais importante. Junto a esse enredo, me ocorre a fala dum determinado líder político que, do arroubo de sua petulância, por achar-se acima do bem e do mal, sempre dizia que não havia ninguém mais honesto do que ele. Logo após ouvir essas bravatas, me veio à mente aquela história do significativo sentido do apólogo machadiano e, em seguida a campanha eleitoral de 2018 que, em determinados momentos reportou-me a de 1989 e o Caçador de Marajás! No texto de Machado de Assis (1839-1908), os dois objetos, tornado vivos pela pena enunciativa do escritor carioca, se digladiavam para saber quem era o melhor. Mas afinal, olhando aquela senhora, com a roupa do avesso dando os arremates finais, fiquei com a pergunta entalada na goela, como se diz no jargão popular. A linha emenda as partes do tecido e vai com a dona da roupa aos saraus, contudo, para dar forma aos modelos a estilista necessita da agulha que vai à frente furando o tecido. Louco esse debate, mas entendo-o de diversas formas, principalmente do ponto de vista alegórico, ou seja, diz b para significar a.

Todavia, para lá da metáfora, a costureira dos meus tempos de infância não estava nem um pouco interessada nas dicotomias e demais paradoxos machadianos. A sua única preocupação era saber se a roupa tinha ficado a contento do cliente e do jeito que este solicitara e desta forma brilhar nos saraus, nos quais todos lhe prestassem atenção, já que estaria com um modelo único, provocando inveja nos demais participantes e dos comensais que estariam com ele à mesa. Pois bem, meus caros leitores, imaginem se o baile fosse para comemorar a posse daquele sujeito – que, imitando um outro político que há 30 anos assumia o poder com o slogan de caçador de marajás – que acabaria com a corrupção usando apenas uma caneta Bic azul? Como a nossa personagem iria se comportar, sabendo que antes de usar a vestimenta houve um caloroso debate entre os objetos que lhe coseram a roupa? E se antes do convite entregue pelo emplumado cocheiro presidencial, este, para preservar o mandato marcara aquele baile para dançar com o chamado Centrão. Será que a moçoila iria ao cerimonial? Mas vamos aos fatos estampados nos noticiários daqueles tempos, em que se vociferava aqui e ali que a corrupção grassava pelos órgãos públicos, nos quais, objetivando cooptar os “nobres” deputados para estarem alinhados com a política palaciana determinada, o rei tenta arregimentar os legisladores para salvarem-lhe o império. Esse evento promete, justamente porque até ontem – esse pretérito não foi a quarta-feira, mas sim 2018 – dizia-se o guardião da lisura e valente combatente que venceria numa canetada só o dragão da corrupção, mas ao ver-se no cadafalso, pediu arrego para congressistas e partidários que já cumpriram pena por corrupção. Desta forma, voltando ao conto Um apólogo, quem faltou com a verdade?

Aqui, nesse trecho, enquanto escuto o barulho da máquina de costura fechando os lados do tecido que vão se alinhando e compondo um belo traje de gala, recupero de memória o capítulo 18 do clássico da Ciência Política, O príncipe, composto pelo pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527). Naquela seção do livro, o assunto é sobre a possibilidade de o governante manter a palavra dada, por exemplo, durante a campanha eleitoral. Na missiva dirigida a um gestor florentino, o autor narra e orientando sobre os passos que o príncipe deveria dar para manter-se no poder. Com certeza, um deles seria descumprir o dito em campanha, justamente porque as circunstâncias que provocaram tais promessas não existem mais no presente. É muito comum, o postulante a cargo eletivo, quando em debate com seu adversário, se portar ora como a agulha, ora como a linha, contudo, sempre dizendo ao eleitor que jogará do alto do trono as migalhas para lhe aplacar o vácuo estomacal. A questão é: por que o sujeito social continua acreditando nas flores que são jogadas dos palanques, eleição após eleição? Como é possível esperar resultados diferentes fazendo a mesma coisa? Por exemplo, a agulha e a linha machadianas vão eternamente debater entre si qual é a real importância de cada uma na confecção de uma roupa, seja ela de gala ou para coser o uniforme do coletor de lixo. Isso é certo, porque são objetos inanimados e usados sabiamente por um narrador astuto para dizer algo de significativa importância a qualquer leitor em qualquer época, mas agora, acreditar na mesma promessa feita em 1989, quando se sabe que o presidente ocupa os cargos de Chefe de Estado e Chefe de Governo, aí é complicado, pois se espera resultados diferentes fazendo a mesma coisa. Por hoje é só. Deixe-me voltar àquela máquina de costura.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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