Políticas públicas de leitura ou saraus literários?

Por Jéferson Assumção

 

Os dois juntos. Políticas públicas de leitura são mais abrangentes e estruturantes e os saraus, mais concretos e vivos. Nos círculos de uma ainda triste comédia, vemos no nível mais real e concreto os vivos saraus, feiras do livro, festas literárias, festivais, malas do livro, bibliotecas itinerantes etc. No entanto, se essas ações estiverem isoladas, como geralmente ocorre, esta mesma vitalidade tem mais dificuldades em se manter. Se de fato queremos o Brasil como uma sociedade leitora precisamos ir além das ações, realizadas mais com a vontade do que com as condições necessárias. Elas são belos exemplos do cuidado e da atenção existentes nessas comunidades, mas estão no frágil nível do alcance da sociedade civil ou do cidadão comum auto-organizado e que toma para si a responsabilidade que deveria ser de todos (do Estado, do mercado e da sociedade civil). A começar pelos governos.

 

É preciso pensar que projetos são conjuntos de ações (saraus, festas, feiras etc); programas são conjuntos de projetos; políticas, conjuntos de programas e finalmente planos são conjuntos de políticas. É uma arquitetura complexa mas necessária para se enfrentar a desafiadora realidade dos baixos índices de leitura e a pouca valorização do livro e da literatura no Brasil. A qualidade das políticas públicas é fundamental para uma maior efetividade das ações, entre elas os importantíssimos saraus.

 

Para ampliar o impacto das ações, é preciso pressionar os governos para que desenvolvam os Planos de Livro e Leitura, nacionais, estaduais e municipais, articulando cultura e educação, estado e sociedade. Ocorre que o esforço de construção de políticas públicas para o setor sofre com o que o professor Albino Rubim, da Universidade Federal da Bahia (Ufba), chama de o mal das políticas públicas de cultura no Brasil: a tríade “descontinuidade”, “ausência” e “autoritarismo”. Os saraus e demais eventos do tipo são uma espécie de resposta à ausência e ao autoritarismo, mas salvo belíssimas exceções boa parte sofre com a constante ameaça da descontinuidade.

 

Em nosso país, a desatenção à área do livro e da leitura tem uma história de séculos, primeiro com a interdição (Portugal proibia que se fizesse livros no Brasil até 1808, o que efetivamente só começou a acontecer no século XX, com a criação do MEC em 1937, atrasando em quase meio milênio a relação do brasileiro com o livro). No vácuo, nossas elites desenvolveram (e apenas para si, em pequenos enclaves de ilustração) uma relação ornamental, ostentatória e de distinção (como diz Renato Ortiz) com relação às letras e às artes e um desprezo, para não dizer vergonha, em relação à diversidade cultural brasileira que perdura até hoje. Este histórico afetou, claro, o desenvolvimento do livro e da leitura de tal forma que o analfabetismo absoluto no Brasil chega em 2016 a cerca de 8% da população com mais de 15 anos.

 

Conforme o “The World Factbook” de 2015, da agência americana CIA a taxa de alfabetização da população brasileira com mais de 15 anos é de 92,6%; semelhante à da Bolívia, de 91,2%; menor que a do Paraguai, 93,9%; Equador, 94,5%; Peru, 94,5%; Colômbia, 94,7%; México, 95,1%; Venezuela 96,3%; Chile 97,5%, e incomparavelmente atrás da Argentina 98,1%, Uruguai, 98,5% e Cuba 99,8%. Não por acaso, as diferenças entre a América espanhola e a portuguesa refletem a importância da leitura e a taxa de alfabetização na península ibérica: a alfabetização em Portugal é de 95,7%; na Espanha, 98,1%. Na Europa do norte e Estados Unidos, os índices de alfabetização são de 99% e 100% há muitas décadas[1].

 

O quadro mostra um Brasil ainda bastante atrasado em termos de índices de leitura em comparação aos nossos vizinhos. Por isso, a importância de todo o tipo de ação que possa ajudar a revertê-lo. Os saraus são potentes ações muitas vezes levadas aos trancos pelas comunidades no deserto deixado pela falta de atenção governamental em todos os níveis. São manifestação da enorme capacidade inventiva do povo brasileiro diante do desinteresse arcaico em se propiciar a inclusão da população no mundo das letras, o desenvolvimento do espírito crítico e da “perigosa” criatividade.

E o mercado?

 

O mercado pouco tem feito como contrapartida à grande desoneração fiscal do livro promovida em 2004 e quase nada investiu do que poupou com os cerca de 9% de retirada de PIS, Cofins e outros impostos dos custos de produção do livro. O apoio das empresas privadas a ações mais estruturantes no seu próprio setor é bem menor que o que elas vêm lucrando desde 2004 sem esses impostos. Sem falar que os preços dos livros não baixaram, como se esperava com a ação de desoneração. Esses recursos em um Fundo Setorial do Livro e Leitura poderiam ser destinados aos saraus existentes e a novas iniciativas.

 

Consluindo, deve-se aplaudir e estimular os saraus cada vez mais, mas é preciso ir muito além. Leitores, estudantes, escritores, professores e comunidade leitora em geral necessitam pressionar governantes e parlamentares das três esferas por uma maior atenção ao setor. Só assim poderemos aumentar o pequeno financiamento (baixo e decadente há anos), aumentar a participação e a promover um maior planejamento da área. Um dos principais gargalos é a frágil institucionalidade para políticas de livro (por que, por exemplo, no Ministério da Cultura, há uma Agência Nacional de Cinema–Ancine, uma Secretaria do Audiovisual, um Fundo Setorial do Audiovisual e nada parecido na área do livro?). É preciso retomar a importância do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), dos planos estaduais e municipais porque eles são instrumentos de gestão, formulação política e participação social imprescindíveis para o desenvolvimento do livro, leitura e literatura. Todas as áreas da vida pública são planejadas dessa forma e a do livro precisa também do mesmo esforço, o que não vem ocorrendo na intensidade e profundidade que as ações de leitura e o nosso país como um todo necessitam.

Jéferson Assumção faz pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB). Escritor, com mais de 20 livros publicados. Recentemente publicou Notas sobre Turibio Núñez, escritor caído (BesouroBox),  Cabeça de mulher olhando a neve (BesouroBox) e A Vaca Azul é Ninja em uma vida entre aspas (Libretos). Foi secretário adjunto de Cultura do Rio Grande do Sul de 2011 a 2014, secretário municipal de Cultura de Canoas 2009-2010, Coordenador-geral e Diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura (2005-2009 e 2015), um dos articuladores do Plano Nacional de Livro, Leitura e Literatura (PNLL). É doutor em Humanidades e Ciências Sociais – Filosofia, pela Universidade de León (Espanha). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle (Canoas-RS).

 

Disponível no site http://etudeslusophonesparis4.blogspot.com.br/2016/10/no-vacuo-da-literatura.html (acessado no dia 25/10/2016 às 23h01)

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