Poder econômico controla o poder político no Brasil, diz Delfim Netto

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO

ÉRICA FRAGA

DE SÃO PAULO

03/07/2017  02h00

 

A principal revelação da Lava Jato é que o Brasil deixou o poder econômico controlar o político, diz o economista Antonio Delfim Netto.

“O setor privado anulou a única força que controla o capitalismo, que é o Congresso. Não é simplesmente que o Estado e o setor privado tenham feito um incesto, produzido um monstrengo. Ele eliminou o único instrumento de educação do capitalismo.”

Para ele, as denúncias do empresário Joesley Batista contra o presidente Michel Temer tem “proporções catastróficas” e tornam impossível prever quando o país sairá da crise atual.

O economista defende que a manutenção de Temer no governo é a solução “menos pior”, porque eleva as chances de aprovar as reformas trabalhista e da Previdência, ainda que a segunda seja diluída: “Não acredito que uma eleição indireta produza um equilíbrio do nível que o Temer hoje, com todos os problemas, é capaz de produzir”.

Delfim -que foi ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento durante a ditadura militar- não está otimista em relação às eleições de 2018. “Tenho sérias dúvidas, no quadro que tem hoje, de que você vai ter um governo muito melhor do que teve no passado recente”.

O economista criticou duramente a esquerda “primitiva” e os sindicatos —que, segundo ele, se aliaram ao capital— brasileiros por fazerem oposição às reformas.

Após mais de 60 minutos de entrevista, Delfim, que acaba de fazer 89 anos, não demonstrava cansaço. Fez questão de acompanhar as repórteres e o fotógrafo e de abrir a porta de seu escritório. “É para vocês voltarem.”

As coisas estão melhorando ou continuamos na beira do precipício?

O Brasil não cabe no precipício. O precipício não aguenta esse problema.

Por que esta crise é sem precedentes?

Não sabemos qual a dimensão da crise, nem se ela começou ainda. Há uma incerteza muito profunda.

Você veio caminhando razoavelmente bem. De repente um ato político de proporções catastróficas mudou todo o quadro e tornou impossível qualquer previsão.

Não há nenhuma hipótese de solução razoável. O máximo que se pode conseguir é uma “menos pior”.

Qual a “menos pior”?

Usar o resto deste mandato para aprovar essas medidas. Elas vão ser aprovadas conosco ou “sem nosco”, na maior ordem ou na maior desordem.

Porque uma coisa é certa: a aritmética é mais forte que a política.

Este governo Temer tem condição ainda de se sustentar?

Depende muito do Supremo. Aquela maioria original dificilmente será mantida, mas há a possibilidade de aprovar a reforma trabalhista. Seguramente a previdenciária terá que ter mais descontos.

Não acredito que uma eleição indireta produza um equilíbrio do nível que o Temer hoje, com todos os problemas, é capaz de produzir.

Eleição geral é um sonho, um autoengano, uma coisa ridícula, para exibicionista.

 

Qual a aritmética que se impõe à política?

Não vai ter recurso para pagar aposentadoria. Há uma esquerda primitiva que é incapaz de compreender que, por maior que seja seu altruísmo, isso encontra limite na disponibilidade de recursos.

Por maior que seja a cooperação, 2 + 2 serão 4. Não podem ser 6. Para a esquerda primitiva pode ser até 22.

 

Há atalhos para a reforma?

Vamos pensar quem é contra ela.

Há luta de classes no Brasil hoje? Sim, há. Uma elite do funcionalismo público federal, extrativista, que se empoderou de direitos muito mal adquiridos por causa do laxismo dos governos e da incrível, incrível tolerância do trabalhador que a sustenta.

Os sindicatos brasileiros negociam com o capital. Fazem parte da elite extrativista.

E temos um negócio tão generoso que a produtividade do trabalho vivo tem que ser igual à do trabalho morto.

 

Integralidade e paridade do reajuste do funcionalismo?

Sim. É lá que está o problema. E como eles foram capazes de manipular a sociedade!

O sujeito que ganha dois salários mínimos pensa que vai ter prejuízo. E não vai. Quem vai ter prejuízo é quem ganha 40.

Não houve também problema de comunicação?

Sem dúvida. O governo perdeu nesse campo. Dizer que é para pagar o futuro? O futuro está muito longe. Só que está se aproximando com enorme rapidez, porque os deficits são gigantescos.

 

O trabalhador é prejudicado pela unicidade sindical?

A unicidade, somada ao imposto sindical, é malandragem pura.

O sindicato é um instrumento fundamental na paridade de poder entre o trabalho e o capital. Num momento em que você transforma o sindicato em um instrumento do governo e dá para o sindicato o poder de negociar com o capital contra o interesse dos seus sindicalizados, terminou a paridade.

Esta lei trabalhista exige sindicatos sérios, independentes, cujos membros o mantenham em competição com outros. E tudo conspira contra isso. A unicidade é um monopólio e o imposto é o conforto.

 

Então a reforma trabalhista terá alcance limitado?

Sim, a princípio, porque a unicidade precisa de mudança constitucional.

Mas perder o imposto é um desarranjo de tal ordem que acaba levando à mudança da unicidade.

 

O sr. disse que a crise está apenas começando, mas estamos vindo já de três anos de recessão.

Há incerteza sobre os mecanismos políticos de controle da sociedade.

Não adianta ter ilusão, só há um regime capaz de funcionar, que é a democracia. Errou, tem uma eleição e corrige o erro. Basta ter eleições livres em períodos adequados, corretos, e a sociedade vai aprender e vai escolhendo seu caminho.

Nesse nosso presidencialismo imperial, a solução é impossível. Vai fazer dois impeachments em um ano? O Brasil é vítima das piores falácias lógicas. Essa é uma lição que aprendi nos meus 24 anos no Congresso. O pior instrumento de convencimento no Congresso é a lógica.

 

Qual o melhor?

A conversa.

 

Mas o sr. vê alguma evolução?

Claro, o Brasil melhorou muito. Não é um fracasso. A renda per capita é baixa, mas é a sexta economia do mundo. O Brasil cresceu durante 35 anos 7,5% ao ano, igual à China. Deixou de crescer em 85.

 

Mas aí já tem outros 30 anos.

Por isso mesmo. Demora para aprender.

 

E existe o risco de passar mais uma década? O que pode advir dessa crise?

Mas o que vamos fazer? Regime autoritário? Que garantias há de que seria melhor? Já experimentamos tudo.

 

O sr. está otimista para a eleição de 2018?

O que acho é que a vox populi não quer justiça, quer vingança.

 

Então o sr. não está otimista.

Tenho sérias dúvidas, no quadro que tem hoje, de que você vai ter um governo muito melhor do que teve no passado recente.

 

Nessa crise política, empresários dizem que foi feito dessa forma porque não tinha outro jeito. O sr. concorda que era assim mesmo?

A Lava Jato é um ponto de inflexão na história do Brasil. Pode causar algum problema no curto prazo, mas vai impedir esse incesto em que o setor privado anulou a única força que controla o capitalismo, que é o Congresso.

O que há de mal nesse negócio nosso não é simplesmente que o Estado e o setor privado tenham feito um incesto, produzido um monstrengo. Não, ele fez muito pior, permitiu que o poder econômico controlasse o poder política, ou seja, eliminou o único instrumento de educação do capitalismo.

O capitalismo só se salvou porque havia uma organização política dos trabalhadores através de partidos.

 

Mas se não houver uma reforma política…

Vamos chegar lá: isso só foi possível porque nunca tivemos uma reforma política.

Por que o Brasil tem 30 partidos representados? Quem promoveu isso? Uma decisão do Supremo dizendo que era inconstitucional a regra de barreira.

Precisa haver um concílio, em que os três Poderes sentam na mesa, olham o livrinho e falam “olha, você fica aqui, a sua caixinha é esta, a sua é esta. Vamos voltar a administrar o país”.

 

A Constituição de 88 está esgotada?

Pelo contrário. O modelo de sociedade da Constituição de 88 é muito parecido com o modelo de uma economia social de mercado, onde o mercado é um instrumento através do qual o governo consegue fazer a política social.

O mercado é um instrumento poderoso e eficiente, produz mais excedente que qualquer outro sistema produtivo, e para fazer justiça social precisa de excedentes.

O que é necessário é a negociação na mesa, a transparência, em que o trabalhador está em paridade com o capital. sabe que o capital sozinho não faz nada, nem o trabalho sozinho. A união dos dois é uma soma não nula.

 

Aqui no Brasil, se esse equilíbrio entre capital e trabalho fosse um jogo de futebol, como estaria o placar?

Agora nem dá para saber porque o capital determina as regras do jogo.

Quantos deputados e senadores eleitos foram eleitos pelo capital? Qual a independência desse mecanismo com relação ao capital?

Isso tudo é um sistema que se autorreproduz. Quem recebeu o dinheirinho num ano fica contando com o da próxima eleição e jamais fará nada contra quem ajudou a financiar a eleição.

 

Qual o pior cenário na próxima eleição?

Ainda não sei quem vai ser candidato.

 

Em termos de tendência?

Não tenho nenhuma ideia. Vamos supor que os candidatos que estão aí se elejam. Qual a razão de supor que vão cometer os erros que cometeram no passado?

A ideia de que, se eleger fulano, ele desmonta tudo, isso é um sonho de uma noite de verão. Ninguém desmonta nada. Se desmontar, é desmontado.

 

O sr. tem rede social?

Nunca, não ponho a mão nisso. Virou um sistema de intriga 24 horas por dia. É uma invenção atrás da outra.

Não tenho a menor participação nesse negócio. Porque sinto, tenho experiência, de que são tentativas de manipulação.

 

Em suas conversas com gente das empresas, economistas, a sensação geral é de incerteza?

Sim, está todo mundo muito cuidadoso.

Um bom número de pessoas acha que “de qualquer jeito há uma responsabilidade do Congresso, eles vão aprovar essas medidas”.

Não há garantia nenhuma de que isso se faça, porque sem organização não acontece.

 

Parou tudo?

Está tudo paralisado.

 

Podemos continuar em recessão?

Tranquilamente. Você tinha começado a recuperar. Hoje qualquer solução é possível. Uma crise desse tamanho não tem solução ótima. Talvez consiga encontrar a “menos pior”. Mas não há nada brilhante para acontecer.

 

Que preço a crise vai cobrar para as gerações mais jovens?

Eles vão viver em outro mundo. O mundo do trabalho mudou completamente, ninguém mais vai ficar preso em algum lugar.

 

O que o sr. está lendo agora?

“Capitalismo.” [“Capitalism: Competition, Conflict, Crises”; de Anwar M. Shaikh; Oxford University Press]. Um catatau de 1.000 páginas, nem sei se vou ter coragem de chegar até o fim.

Mas é interessantíssimo. É um marxista que vem há 40 anos fazendo experimentos empíricos, de forma que é um sujeito que vale a pena ler.

 

Descobriu algo novo sobre o capitalismo na leitura?

O capitalismo é sempre uma coisa nova.

No fundo, foi a única forma que o homem encontrou para realizar três valores contraditórios. A liberdade plena mata a igualdade. A igualdade plena mata a liberdade. E não posso gozar nem de uma nem de outra a não ser que tenha uma forma de subsistência material eficiente. E foi isso que o capitalismo deu.

Mas tem um inconveniente: exige a propriedade privada, que é o principal instrumento de acumulação de riqueza, que produz a “malaise” que estamos vivendo.

Ele dá a volta em cima de si mesmo. Vai sempre empurrando para a frente, e, se olhar a história, vai ver que cada vez que essa acumulação foi muito forte, vem uma revolução e começa do zero.


Disponível n site http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/07/1897865-poder-economico-controla-o-poder-politico-no-brasil-diz-delfim-netto.shtml (acessado no dia 04/07/2017 às 13h06)

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