Vladimir Safatle
A verdadeira vitória passava pela capacidade de se reconhecer nos vencidos
É cada vez mais claro que a imigração se tornou o problema político central da contemporaneidade. Mesmo em menor grau, ela toca a pauta política brasileira, como foi o caso das reações às levas de imigração venezuelana e haitiana ou ainda se levarmos em conta o problema do uso da imigração boliviana como trabalho escravo na indústria da confecção.
Os últimos passos ligados à prática americana de confinamento de crianças de imigrantes clandestinos mostra, por sua vez, que a brutalidade em relação àqueles que atravessam fronteiras sem permissão não conhece limites. Mas valeria a pena se perguntar pelas razões que levaram tal questão a se tornar tão utilizada na política global.
Digamos que a imigração mostra da forma mais clara possível como o medo é o afeto político fundamental atualmente. Quando a primeira leva neoliberal apareceu, pelas mãos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, promessas de um futuro melhor ainda podiam ser vendidas.
Thatcher, por exemplo, podia dizer à classe trabalhadora britânica que eles teriam suas próprias casas, já que uma de suas principais políticas foi desmantelar o sistema de alojamentos sociais com a promessa de transformar seus antigos moradores em proprietários. No entanto, em um horizonte como o atual, de concentração de renda, de perda de direitos sociais e de brutalização de conflitos, o neoliberalismo não promete mais futuro redentor algum.
Nesse contexto, onde não há mais a esperança, o medo prevalece como modo único de coesão social entre sociedade e seu governo. E nesse ponto, a imigração funciona como uma chave fundamental.
O Estado-nação é uma construção paranoica desde a sua origem. Fundado na identidade orgânica entre Estado, nação e povo, ele só pode legitimar sua existência por meio da construção do povo como unidade cultural, inventando tradições, reescrevendo batalhas, imaginárias ou reais.
No tempo e no espaço, o que prevalece é um estranho desejo imunitário. Nesse horizonte, o estrangeiro é sempre um corpo estranho, principalmente quando ele faz ressoar todos os preconceitos ligados a passados coloniais que nunca passam.
Mas, na dinâmica atual, esse dado de estrutura ganha novo contorno. Os imigrantes podem aparecer como a nova classe proletária, desprovida de tudo, a não ser de sua força de trabalho. Quanto mais precários os imigrantes, mais submetidos à paranoia social, mais fácil criar uma mão de obra sem direitos, facilmente descartável e pauperizada.
Essa mão de obra enfraquece a possibilidade de pressão da classe trabalhadora por menos espoliação. Por isso, nunca foi uma questão de acabar com a imigração, mas apenas de submeter os imigrantes a um sistema de choque contínuo que permite a desvalorização extensiva do valor do trabalho.
Ou seja, como os recentes estudos da OCDE demonstraram, os imigrantes não “roubam” empregos. Na verdade, eles permitem que o mercado de trabalho funcione em alto regime de espoliação, garantindo a sobrevida do capitalismo.
Talvez não seja por acaso que um dos livros fundadores do Ocidente tenha como nome “Odisseia”. A saga de Ulisses, que passa pelas mais diversas terras antes de conseguir voltar para casa, é sempre permeada por uma injunção moral de ser acolhido como estrangeiro.
Sua história é, em larga medida, a história da consciência grega de que a maior de todas as barbáries consiste em ser bárbaro contra aqueles que muitos gostariam de ver exatamente como “bárbaros”.
Depois de vencer a guerra contra os persas, Ésquilo escreve uma peça sobre o evento cujo título era, exatamente, “Os Persas”. Em vez da descrição da bravura dos vencedores, ele resolve dar voz aos vencidos, aos estrangeiros que, mais do que inimigos, serão retratados como providos de altivez e virtudes de guerreiro.
Essa era a sua maneira de dizer que a verdadeira vitória passava pela capacidade de se reconhecer nos vencidos, de encontrar nos vencidos as mesmas virtudes dos vencedores. Depois de quase 2.500 anos, esse ensinamento conseguiu parecer sempre novo.
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
Erramos: o texto foi alterado
6.jul.2018 às 9h39
Uma versão anterior da coluna informava incorretamente que o autor da peça “Os Persas” era Eurípides. Na verdade, o autor é Ésquilo. A informação foi corrigida.
Disponível no site https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/07/os-gregos-e-o-outro.shtml (acessado no dia 09/07/2018 às 18h22).