Liberal, mas com meritocracia

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Se, há coisa de duas semanas publiquei aqui a reflexão Direita quase virando à esquerda, na qual tentei explorar a dicotomia entre direita e esquerda, observando sempre que essa é uma discussão com significativa importância no mundo globalizado e no Brasil – onde signatários de um determinado ex-governante tenta vencer todas as pelejas discursivas com argumentos estapafúrdios, objetivando desqualificar o oponente justamente quando não se tem resposta para interpelações que dizem respeito à conivência com a corrupção que atingiu índices alarmantes nos últimos 15 anos -, hoje volto à temática, mas só que pretendendo fazer uma abordagem diferente, não mais se existe esquerda ou quase isso, ou direita ou coisa semelhante, ou ficar naquela conversa de que o opositor é neo isso, neo aquilo, reacionário ou “fascista”, mas sim tentar entender se, de fato, o Brasil chegou um dia a ser liberal.

Claro que para se aportar a um denominador comum e não conclusão, mas sim, quem sabe a tecer algumas considerações finais, se faz necessário recorrer à História recente desta Nação que começa a existir mesmo depois da chegada da família real 1808 e, junto com ela, a corte lisboeta e as necessidades de se criarem instituições burocráticas e públicas para dar sustentação à existência de uma Monarquia portuguesa fora da Europa. Não é novidade para ninguém que, desde o seu nascedouro, a nau brasileira viveu paradoxalmente duas realidades, conforme o crítico literário Roberto Schwarz apontou em seu célebre estudo As ideias fora do lugar (Penguin, 2014, p. 47-64): uma que se pensava ser liberal – nos moldes europeus do século XIX tão bem analisada por Karl Marx (1818-1883) em sua obra O Capital – e a outra escudada no trabalho escravo – há uma vasta bibliografia sobre esse tema, entre elas o livro Ser escravo no Brasil, de Kátia Mattoso.

Diante dessa incongruência, como conciliar as duas pontas do sistema econômico e produtivo brasileiro do século XIX, para ficar num ponto mais próximo do que se em hoje e, levando em conta, a chegada da Corte lisboeta na primeira década oitocentista? Pergunta complexa que, no afã de encontrar uma resposta ou coisa que o valha, foram produzidos milhares de trabalhos acadêmicos objetivados na tentativa de se entender qual Brasil emergiu do fim do escravismo em 1888 e de imediato, a queda da Monarquia em 1889. Mas será que é preciso ir muito longe para se compreender o Brasil deste início do Terceiro Milênio? Entendo que sim, pois lá está a gênese do conservadorismo, do reacionarismo do país, posturas que nem o governo dito de centro-esquerda que deu as caras a partir de 2003, com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi capaz de modificar e olha que sou capaz de apostar que esses vieses foram ressaltados com lampejos trágicos, respaldados na falta de análise racional, por parte de alguns de seus signatários a ponto de separar a sociedade política entre “nós” e “eles”, como chulamente tentam desqualificar o “outro” adjetivando-o de “coxinha” e este, por sua vez, devolve a afronta qualificando o seu oponente de “mortadela”. Quem começou a essa bazófia, não se sabe, mas o que se pode afirmar que se trata do empobrecimento do debate, talvez provocado pelas paixonites de ambos os lados e a ausência de um conhecimento mais ou menos profundo do que está se propondo enquanto ferramenta norteadora dos diálogos.

Sendo assim, ainda permanece a problemática apontada por vários intelectuais, entre eles, Schwarz, sobre a incongruência de o Brasil almejar em seu nascedouro, enquanto Nação, a qualificação de país liberal, mas sem permitir que o trabalho se organizasse e a produção de bens matérias e demais mercadorias remunerassem os trabalhadores. Desta forma, é possível constatar que aquele modelo de exploração humana que enxergava o outro indivíduo, desterrado de seu continente de origem, não como sujeito material que pudesse vender sua mão de obra, mas na condição de mercadoria que deveria produzir valor até a exaustação física. Parece-me que nasce dai a prática comum de não se valorizar o trabalho do homem que exerce sua profissão. Talvez esteja ai, para parafrasear Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu Raízes do Brasil, a desqualificação daquele empregado que faz serviços manuais classificados como sendo de baixa qualificação, portanto, para fugir dele, vale qualquer coisa, a esperteza, o conchavo, o favor, a famosa puxada de tapete, a humilhação do oponente – acho que é por isso que José Dias gostava de usar os superlativos quando estava diante da mãe de Bentinho, Dona Glória, juntamente com os demais agregados da casa-grande urbana representada em Dom Casmurro.

Mas é dai, se a Nação não foi liberal ontem, tem condições de o sê-lo hoje? Parece-me que não foi, poderia ser hoje, mas para que isso fosse possível, seria necessário o rompimento com o patrimonialismo, a tendência de se inflar a máquina burocrática que ainda mantém lampejos e se lambuza com os vícios da aristocracia que aportou aqui com a Família Real, mas desmoralizada pela perda do seu status que seria recuperado nas novas terras através colocação na estrutura administrativa e da personificação do beija-mão monárquico. Foi-se a Monarquia e sua corte imperial, manteve-se o hábito que carcome as entranhas sociais de um país que se quer moderno, contudo, arrasta, para não dizer, conserva imenso fardo escravagista escudado nas desigualdades sociais que não tendem a desaparecer com decretos republicanos à lá monárquicos, mas sim com compromissos que visem a transformar não só o estômago do eleitor, mas, sobretudo sua consciência a partir da qual teria condições de apontar preferir um governo de esquerda, uma República liberal ou um parlamentarismo monárquico. Mas do que jeito a coisa anda, há de fato uma simbiose entre esquerda, direita, nacionalismo, centro-direita-esquerda-inclinado, extrema-direita, extrema-esquerda, patrimonialismo, peleguismo, funcionalismo, burocratismo, etc., e nesse campo torna-se fértil as pechas como “coxinhas” e “mortadelas”!

Enfim, quem quer uma Pátria Liberal levanta a mão! Agora, esses que assim procederam explique o que significa ser isso, ou seja, viver num país liberal em que todos tenham a mesmas chances de crescer em um meio no qual a livre concorrência ocorre, sem o protecionismo estatal e os órgãos públicos funcionam apenas para aqueles que não podem custear suas existências; os tributos não são muitos, mas devem ser pagos, caso isso não ocorra: prisão para os sonegadores, desde o padeiro até o grande empresário! Nessa sociedade o mérito sobrepujará a bajulação e os cargos públicos serão preenchidos mediante rigoroso processo de seleção e aqueles que forem surpreendidos em falcatruas com o setor privado estimulado pela Terpsícore, objetivando enriquecimentos ilícitos serão sentenciados juntamente com seus corruptores. E aqueles que querem uma Pátria, vamos assim dizer, mais socializadora, também erguem as mãos! Pois bem, nessa Nação, o Estado será o provedor das necessidades de seus súditos, todavia, terá que ser meritocrático, a exemplo do liberal, sem os conchavos políticos, o dinheiro arrecadado com os tributos vindos da sociedade produtora – sim, porque não se pode viver sem mercadorias e suas circulações e sem homens escorados no Estado. Os integrantes da burocracia deverão ser selecionados em rigorosos processos seletivos e não entre os amigos do rei ou por intermédio do favor. E ai, como é que ficará? Voltarei em breve a essa problemática a partir de uma entrevista do ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, Delfim Netto.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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