Gilberto Barbosa dos Santos
Numa aula sobre os teóricos e filósofos que pensaram a questão do Estado em seu âmbito abstrato, perguntei aos alunos quando e onde os indivíduos são de fato iguais e livres? Para provocar o debate e em seguida uma reflexão profícua, afirmei que apenas na lei os seres sociais são idênticos no campo do direito, portanto, somente na letra fria dos códigos os homens podem afirmar que “todos são iguais” e, neste sentido, a justiça pode ser concretizada. Neste âmbito, me parece que a observação feita pelo filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002), autor do livro Uma teoria da Justiça (1971), segundo a qual “a justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é para os sistemas de pensamento”, é apropriada para as linhas que se seguem desta quinta-feira.
A interpelação que norteará todo o sistema de pensamento de Rawls é a seguinte: “qual é a concepção moral da justiça mais apropriada para uma sociedade democrática?” Uma resposta plausível que pode levar os meus leitores a refletir um pouco mais sobre a questão é “a justiça de uma sociedade mede-se pelo destino reservado aos mais desfavorecidos”. Se a problemática for a realidade brasileira, sabe-se que aqui impera a injustiça, mesmo tendo a Constituição Federal indicando em seu artigo 5.º que todos são iguais perante o código principal que baliza a existência social nesse país de dimensão continental, a coisa não se processa.
Se a igualdade, tão sonhada pelos pensadores clássicos desde a Antiguidade, embora esteja presente nos códigos norteadores da vida na polis, ela não passa de letra fria. Desta forma convém perguntar: como é possível construir uma sociedade democrática, na qual todos podem participar em equanimidade das decisões que nortearam a vida de todos, principalmente na esfera pública? Aqui entra um campo complexo que é a distinção entre o que é esfera pública e esfera privada que foi tão bem definida pelos gregos da Antiguidade quando o tema é a democracia e o direito de todos. Neste sentido, a governança do povo surge como excludente, já que as mulheres, crianças, metecos [estrangeiros] e escravos não podiam ter vida pública, portanto, existência política. Até esse ponto, quando pesquisador aprofundar suas análises sobre aquele período, entenderá os motivos de tais vetos, embora aos olhos do presente podem não ser aceitáveis.
Naquele debate com os estudantes ficou evidente que a igualdade, pelo menos em termos de Brasil, não se configura, ou seja, não se concretiza por conta das desigualdades sociais que foram décadas após décadas, se perpetuando, criando um enorme fosso entre as categorias sociais que foram se constituindo na medida em que um tipo específico de capitalismo e liberalismo, com forte viés escravagista, foi se petrificando e excluindo, principalmente, os ex-escravos e seus descendentes e, em seguida os pobres que nos primórdios eram designados como homens livres que viviam de “favor” na residência de escravagistas empedernidos, conforme Machado de Assis (1839-1908) também externou através da personagem José Dias, do romance Dom Casmurro. Esse tipo de relação social do século XIX, que tem forte presença na sociedade brasileira do início do século seguinte, permanecendo até o presente, pode ser encontrado na obra de Maria Sylvia de Carvalho Franco: Homens livres na ordem escravocrata – um clássico que todos que querem entender o processo de constituição desse país deveriam recorrer, bem como o livro de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) Raízes do Brasil.
Tendo essas observações como premissas é que pretendo tentar compreender porque a ausência de igualdade no plano concreto pode desaguar num exercício irregular da democracia e no direito de voto, conforme está previsto nos cânones do direito político. Todos são cônscios que a lei garante que todo cidadão acima de 16 anos tem o direito de votar e a partir dos 18 anos de ser escolhido, caso esteja filiado em um partido político. Parece-me que ai tem início toda a problemática, pois muitos ainda batem em seus peitos cheios de si, afirmando que política não se discute ou que, eles sim, entendem de política, ou ainda como aquele radialista que certa vez disse que os intelectuais não entendem o que povo gosta. De fato, se eu me colocar na condição de intelectual, posso até afirmar que não entendo como o cidadão ainda dá mandatos seguidos a políticos envolvidos, até o último fio de cabelo, em atos corruptíveis. Todavia, o que posso afiançar ao meu leitor é que isso vem acontecendo, isto é, a ação de vaticinar mandatos e cargos a políticos, principalmente nas esferas dos Executivos espalhados pelos mais de cinco mil municípios brasileiros, em virtude do cidadão não ter atingindo a maioridade política, para não dizer maioridade crítica e ai recuperando fragmento do pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).
Se existe a falta o juízo político construído a partir de valores ou condições sociais a priori, por exemplo, a prática constante de eleições livres e diretas, também não há a cultura democrática nesse país. Um exemplo é a Constituição Federal. Ela tem apenas 30 anos numa República, que não completou 150 anos, que surge dum golpe palaciano perpetrado pelos militares de alta batente sem a participação efetiva do povo. Se a queda da Monarquia não contou com a presença do povo e tudo não passou dum reordenamento da elite monárquica em torno duma suposta modernização do país que deveria ter se iniciado com o fim do trabalho escravo, então houve apenas a mudança de nomenclatura como Machado de Assis aponta no episódio da tabuleta do Custódio, publicado em seu último romance Esaú e Jacó – tema explorado em minha dissertação de mestrado e posteriormente publicado em livro pela editora NEA [Novas Edições Acadêmica] – braço dum grupo editorial da Alemanha.
Se a igualdade presente nas leis deste país não se concretiza, então a questão envolvendo a prática da Justiça, para pensar um pouco com Rawls, é praticamente inexistente, já que a letra fria pode ser aplicada a todos, muitos conseguem escapar de seus rigores através dos vários recursos interpostos por caríssimos advogados somente para protelar a execução da pena. Agora, todos são cônscios disso: ao pobre, descamisado, sem recursos cabe apenas os rigores da lei ou que algum “coronel”, bem ao estilo das narrativas jorgeamadianas ou nos romances de José Lins do Rego (1901-1957), lhe proteja, perpetuando a relação de “favor” que José de Alencar (1829-1877) explorou em seus romances quando o foco era a relação entre o escravo e o escravagista. Por fim, como é possível observar nesta pequena reflexão, sem a correta compreensão da igualdade, fica complicado entender de fato o que esteja por trás da ideia de Justiça e neste sentido, a liberdade, mesmo existindo no plano da forma, que se constitui pelo direito de ir e vir, é inexistente, já que o homem não quer saber muito dela, pois pode trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.