Do caos ao ocaso da política

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O pensador alemão Karl Marx (1818-1883), que muitos dos que desconhecem suas contribuições o satanizam, disse em determinado obra que a “história se repete: uma vez como farsa e outra como tragédia”. Mas o que esse olhar datado dos fins do século XIX tem a ver como essas primeiras décadas do Terceiro Milênio, pode estar-se perguntando o meu leitor. Creio que nesse início de viagem e jogo textual, nada, entretanto, quando acrescento um excerto da cientista política, Mônica Sodré, me parece que a situação pode dar uma melhorada. Sendo assim, vou direto ao assunto: em seu artigo Democracias entre vidas, mortos e caminhos tortos, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em sua edição de 07 de novembro de 2021, ela grafa a seguinte assertiva: “a crise da nossa democracia vai muito além da sua corrosão institucional e dos elementos eleitorais. É a desigualdade, além de marca constituidora do nosso povo, o que impede a sustentação e fragiliza a estabilidade da democracia inteira”

Será que já deu uma clareada no que diz respeito ao meu escopo nas linhas que se seguem? Talvez se eu apresentar mais um trecho daquela reflexão pode ser que fique claro os meus propósitos hoje. “Precisamos de um novo pacto ‘pelo social’. Educar nossas crianças e adolescentes para um novo mundo, colocarmos a primeira infância como prioridade, fortalecer o nosso sistema de saúde, revisar o nosso sistema tributário que pesa desproporcionalmente sobre os mais pobres. Precisamos mudar a maneira com que nos inserimos no conjunto das nações, que nos relacionamos com o meio ambiente e com a finitude dos nossos recursos naturais, com a ciência, com o valor do diálogo para a reconstrução da confiança na política, com as periferias, com os povos indígenas e as comunidades tradicionais. Precisamos, com urgência, realizar a transição para uma economia de baixo carbono, da qual depende a nossa sobrevivência como espécie, sem que os custos disso recaiam, novamente e como sempre, nos mais vulneráveis”.

Creio, meu caro leitor, que talvez uma outra abordagem, desta vez feita pelo professor universitário, Muniz Sodré, através do artigo grafado como Janelas do mal e presente na mesma edição do jornal em que circulou a enunciação da cientista política que usei até o parágrafo anterior. Através do que penso ser uma incapacidade política, o docente afirmou que “esvaziada de representatividade e de cuidado ético com a vida social, a política não dá conta do fenômeno. Para além dos conhecidos binarismos, o Mal irrompe como sociopatia viral ou gozo com desastre alheio. Está presente no fascínio por ofensa, violência e armas. É uma janela aberta para o vácuo democrático, o desequilíbrio dos extremos e o mal-estar das instituições. No sensório global, é a pura e simples percepção de proximidade da Besta”.

Para não vos agastar antes de tentar alinhavar um esboço de analisar sobre os assuntos tratados até aqui, te apresento, meu caro leitor, um outro fragmento retirado do livro Estado e democracia: uma introdução ao estudo da política, escrito pelo professor da USP, André Singer. No trecho que destaquei, o cientista político está focando sua temática na Antiguidade clássica. “Por conta de seu poder reconhecido, expresso em termos de potência econômica e bagagem cultural, os ricos sempre tiveram influência considerável nas decisões comuns, mesmo nas democracias. Eles dispunham de tempo e recursos para acompanhar continuamente os negócios públicos, preparar com antecedência as intervenções nas assembleias e ocupar os cargos mais elevados. Apesar disso, em função do desenvolvimento específico do conflito de classes em cada cidade, fazia muita diferença se os pobres pudessem se valer do peso numérico para compensar, na arena política, as vantagens econômicas dos ricos. Foi aproximadamente o que aconteceu na democracia ateniense e, num grau menor e com uma estrutura distinta, na república romana” [Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p. 36].

Parece-me que neste ponto de meus olhares, cabe acrescentar mais esse pensamento da cientista política Mônica Sodré. “Participar da vida política acaba se tornando um luxo, incompatível com as preocupações de quem hoje não sabe se vai jantar ou se vai sobreviver à próxima batida policial. Olhar a nossa democracia exclusivamente a partir da ótica das eleições e das instituições é escolher fechar os olhos para o tamanho do problema sobre o qual estamos sentados há muitos anos, e que continuará diante de nós: estamos destruindo a base material de nossa existência. As desigualdades históricas, agora agravadas pela pandemia deixarão sequelas por muitos anos, da fome à sobrecarga de um sistema de saúde que terá que lidar com as sequelas dos sobreviventes, aos órfãos e ao atraso da aprendizagem de nossas crianças”.

Ressalte-se aqui outra ponderação feita pelo autor de obras singulares, tais como: Para a crítica da economia política [Belo Horizonte, MG, 2010]. Segundo ele, “o homem faz a sua história, mas não como a quer e sim pelas condições sociais determinadas pelo meio”, principalmente no que diz respeito ao universo material, daí suas abordagens enfocar o materialismo histórico. Diante do exposto até o momento, meu caro leitor, como é possível construir um amanhã numa Nação, cujo passado espirra sangue e suor do elemento africano em direção a um futuro que tende a não ser diferente do presente? Sei que a interpelação é complexa ou talvez não, tudo dependerá dos olhares dos observadores e os valores que marcaram socialmente essas visões de mundo, isto é, a partir de que perspectiva o sujeito social vislumbra o amanhã, tentando se desvencilhar dos apedrejamentos do passado e o vilipendio de outros humanos trasladados para um território que ainda não era visto como Nação, mas apenas colônia de um reino da até então longínqua Europa.

Sei que muitos dos que ainda me leem desejam, ardentemente, que o pretérito seja sepultado, mas como isso será possível se os hábitos dos brasileiros ainda permanecem nos tempos da dicotômica realidade casa-grande e senzala, depois passando para os sobrados e mocambos, relembrando a importante contribuição do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) para se pensar o Brasil a partir de uma perspectiva singular apresentada pelo ponto de vista do pensador pernambucano. Desta forma, se não houve alterações nos quadros do presente, o amanhã saber-se-á que o homem marxiano, de fato, faz a sua história, mas não como almeja e sim a forja com as ferramentas que possui no presente. Sendo assim, meu caro leitor, entendo que sem um quantum significativo de cidadania, será complicado responder a seguinte questão: por que, com uma Constituição que ainda não completou meio século, o Brasil foi capaz de produzir um aberrante quadro político, contudo, mais parecido com o Inferno descrito por Dante Alighieri (1265-1321) em sua Divina Comédia? Parece-me que se faz necessário encontrar a resposta antes mesmo do ano terminar, pois em 2022, viveremos uma espécie de vale-tudo para se manter no poder e assim proteger um núcleo, até onde se sabe pode estar envolvido com esquemas de corrupção, semelhante ou pior àquele que se satanizou no último pleito eleitoral para a presidência da República.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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