Dissonantes inquietações

Gilberto Barbosa dos Santos

 

“Se os bancos centrais podem emitir e gastar em proporções nunca vistas para evitar o colapso do sistema financeiro sem provocar inflação, por que não é possível também emitir e gastar para outras causas igualmente justificáveis, como o investimento em saneamento, saúde, educação e segurança? A resposta de que só é possível emitir e gastar quando há recessão, quando não existe o risco de o gasto público pressionar a capacidade instalada, não nos desobriga de responder por que se pode emitir para comprar títulos da dívida do sistema financeiro, como continua a fazer até hoje o Banco Central Europeu, e não para financiar investimentos públicos necessários, de grande impacto sobre a produtividade da economia e o bem-estar da população. A pergunta tem sido feita pela esquerda da Europa e nos Estados Unidos, com um toque de populismo demagógico por pressupor que o QE [afrouxamento quantitativo] salvou apenas o sistema financeiro e não toda a economia, faz sentido e precisa ter uma resposta despida de paixão política e ideológica”. Esse é um pequeno fragmento do livro do economista e professor da PUC-RJ, André Lara Resende: Consenso e contrassenso: por uma economia não dogmática. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2020, p. 27-28.

Sem mais delongas, meus caros leitores, pergunto a vocês, o que é possível aferir de tal assertiva que é fruto de uma questão colocada logo no início do parágrafo anterior: por que se organiza socorros econômicos ao sistema financeiro, enquanto não se tem o mesmo empenho quando o assunto é educação e saúde, para ficar apenas nessas duas áreas? Poderia pensar no problema da insolvência que o mundo se meteu após a crise de 2008, a exemplo do que aconteceu em 1929, que provocou a Grande Depressão americana, afetando o Globo, entretanto, a situação é mais complexa ainda, por saber-se que, sem um investimento maciço na área educacional, muito dinheiro poderá ser direcionado aos campos da saúde e da segurança, sem que os problemas sejam debelados. E por que isso? Será que é possível alicerçar a resposta numa ideia, muito difundida à boca pequena, segundo a qual, não se dá o devido valor à que a área de educação merece porque os governantes desejam uma massa amorfa que adora pão e circo, idolatrando políticos de índoles duvidosas e outras lideranças, mas que em ano eleitoral, inaugura até poste de luz como se fosse obra sua?

Qual seria o primeiro passo a ser dado no sentido de se contemplar algo significativo como resposta à inquirição feita no final do parágrafo anterior? Confesso-te meu caro leitor que ainda não sei ao certo, mas de uma coisa tenho bem claro: qualquer saída para as mazelas sociais, desigualdades, racismos, fobias e outras formas de preconceitos, só poderá ser encontrada no setor educacional, entretanto, seria no âmbito formal ou dialético? Recordando que, desde os filósofos pré-socráticos, mais especificamente Heráclito de Éfeso, é possível entender que o homem não se banha no mesmo rio, pois eles dois, isto é, o rio e o indivíduo não são mais os mesmos. Neste sentido, então, me parece que se tentar agir, do ponto de vista pedagógico, como se a sociedade brasileira ainda estivesse sob o auspício dos coturnos e usando mimeografo e outras máquinas obsoletas. Mas, como todos são cônscios, o momento, se for possível datar, diz respeito à terceira década do Terceiro Milênio e não há mais espaço para pensamentos arcaicos. Por isso, posso te afiançar, caro leitor, que, quanto mais o século XXI se solidifica, mais o pensamento humano se escraviza na época medieval. Posto isto, fico cá com uma querelazinha: por que o sujeito social tem medo do amanhã, optando por permanecer enraizado, engalfinhado no tosco medievalismo?

Aquele que disse que o faz isso porque é preferível o pretérito mesmo que sepultado, mas vivo em valores caquéticos, do que um futuro incerto, já que a tecnologia de hoje dissolve as certezas dum vir a ser repleto de penduricalhos e outras mercadorias que personificam, isto é, coisificam seus possuidores. Como fugir dessa escaramuça construída pelo espelho elaborado pelo ego e acompanhado de predicativos que serão dissolvidos no dia seguinte? Gosto de pensar que o meu leitor não é o mesmo que iniciou a leitura dessas linhas que se seguem e não permanecerá o mesmo até o final dessa reflexão, a exemplo do que acontecia com muitos dos narradores de Machado de Assis (1839-1908) que na ótica do crítico literário Antônio Candido (1918-2017) não permaneciam na mesma condição até o final do parágrafo, quanto mais da enunciação como um todo. Quem achar o contrário, deve ler atentamente o clássico Dom Casmurro. Entretanto, deixando o universo literário para um outro momento, mesmo sabendo que as narrativas são máquinas ferramentas que deixam brechas nos enunciados, obrigando o narratário a preenchê-las com o conhecimento, principalmente no que diz respeito à História, pretendo retornar ao escopo deste pequeno enredo, cujo objetivo é tentar entender porque os agentes governamentais, políticos e econômicos, socorrem o mundo financeiro, a exemplo do que aconteceu depois de 2008, mas resistem arduamente a fazer ações semelhantes no campo educacional?

Creio que no caso brasileiro, o problema é de diversos fatores e não é necessário ficar aqui indicando todos eles, bastando apenas informar que, na iminência do fim do trabalho escravismo no país em maio de 1888, não se vislumbra a elaboração de um programa que objetivasse a absorção do elemento africano pelo projeto de cidadania brasileira. Os agentes públicos acreditavam que bastava a concessão do Direito Civil e tudo estaria resolvido. E o mais incrível ainda é que existem pessoas, em nosso presente, que acreditam nessa falácia e talvez essa visão caquética de mundo seja construída pelo lugar de fala desses sujeitos, isto é, de privilégios de toda a estirpe. Mas, se o africano recém-egresso do escravismo brasileiro não encontrou espaço no mercado de trabalho e nem condições para se qualificar enquanto mão de obra, para onde ele se dirigiu e o que foi feito dos integrantes dessa etnia? Nem preciso dizer nada, pois aquele que tem um mínimo de sensibilidade sociológica entenderá que os fenômenos sociais analisados com frequências no presente por uma miríade de cientistas sociais são frutos das relações que se estabeleceram nos primeiros anos do trabalho livre no Brasil e de uma República que pode ter mudado muita coisa, contudo, manteve os hábitos nobiliárquicos, ajustando espaço para todos os “nobres” brasileiros dentro da estrutura burocrática do Estado republicano. O resto dessa enunciação todos aqueles que me leem semanalmente aqui são cônscios e entendem que a caminhada é longa, todavia, não se pode reduzir o desejo de construir projetos e programas que deem conta de diminuir as desigualdades sociais construídas a partir de um Estado sitiado pela plutocracia tendo como braço principal uma burocracia aristocratizada viciada em benefícios, mesmo que para isso, a miséria econômica, social, moral e ética deem a tônica nos relacionamentos daqueles que não nasceram no chamado “berço-de-ouro”. Mas que leito é esse, deve estar-se perguntando meus caros leitores. Para pensar como Platão, por que no âmbito das ideias, tudo é realizável e na prática, isto é, no mundo sensível é quase impossível de a igualdade existente na lei se tornar real?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

 

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