As veias abertas do humano

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O intelectual norte-americano Peter L. Berger (1929-2017), em seu livro Perspectivas Sociológicas, explica aos seus leitores que o cientista social trabalha com um material e temas considerados, por muitas pessoas, irrelevantes pois se ocupa de analisar o comportamento humano em seu cotidiano. É comum eu precisar responder a perguntas como a sobre o que faz um profissional que passa seus dias lendo livros, pesquisas, teses e mais dissertações sobre o agir humano na terra? Para quebrar o gelo, como se diz no jargão popular, respondo que uso o tempo me preparando para responder interpelações do tipo que o meu interlocutor acabava de fazer. Neste sentido, tudo o que diz respeito à vida social dos seres humanos em sociedade não escapa às lentes do sociólogo, pois as ações dos indivíduos são tidas, conforme Florestan Fernandes (1920-995) observa, como fenômenos sociais que se repetem. Também definidas por Emile Durkheim (1858-1917) como “fato social” e por Max Weber (1864-1920) como ação social visando um fim, na qual toda movimentação dos sujeitos objetiva atingir um determinado ponto do existir no mundo material. Já Karl Marx (1818-1883) vai dizer que essas atitudes são determinadas historicamente, contudo não da maneira como o homem quer, mas pelas condições sociais determinadas pelo meio e em virtude disso a vida em sociedade tem sido a da “luta de classes”.

Posto isto, como será que nós, profissionais das ciências humanas, estamos analisando esse momento em que um vírus está levando muita gente para o cemitério ou para os crematórios, obrigando aqueles que permanecem no orbe a repensarem suas ações, sejam nas esferas sociais, econômicas, emocionais e estéticas? Eu começaria pelo último item listado na minha interpelação. De acordo com o filosofo alemão, Friedrich Nietzsche (1844-1900), o mundo só pode ser entendido como fenômeno estético. Está observação está contida em seu livro O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Esse apontamento rapidamente me leva ao item que aparece como primeiro elemento do meu questionamento: o social. Será que o estético, ou seja, aquilo que reluz sob a perspectiva humana é definido pela sua subjetividade ou aquilo que aparenta ser? Se eu começar a responder a partir do desejo de Midas, o ente mitológico que pede aos deuses o poder de ter muito ouro, pois gostava em demasia deste metal de grande valor e de cor semelhante ao sol, diria que as pessoas estão presas mais ao que enxerga do que propriamente àquilo que a substância é em si, antes de sua representação fantasmagórica num mundo que se dissolve no instante seguinte à sua criação. Neste sentido, compreendo que a ideia contida em Marx sobre valor de uso e valor de troca é fundamental para analisar porque o isolamento social está deixando muita gente de cabeça para baixo ou, como eu disse em outro texto publicado aqui mesmo a coisa de umas semanas: com a roupa social às avessas.

Nesta chave, posso reduzir a questão aqui neste espaço indicando que compreendo pelo valor de uso aquele incutido no preço de determinada mercadoria para os fins objetivos da vida e valor de troca atribuo os valores que os meus semelhantes dão aos meus pertences. Só para exemplificar o que acabo de grafar, o seu conteúdo está numa matéria que li recentemente, segundo a qual, uma mulher se perguntava o que ia fazer, durante o isolamento social, com os 500 pares de sapatos que tem. Esse fenômeno não é isolado, pois sabe-se que há outras tantas pessoas que tem determinados bens objetivando sempre se expor ao outro, naquela chave da vontade potência definida por Nietzsche. Como, em virtude do isolamento social, não podem mais exercitar a política da inveja e do desejo do outro lhe ser semelhante, como é que fica então o fenômeno estético? E como ficam os estabelecimentos comerciais que vivem desse tipo de relacionamento de troca objetivando um fim específico, qual seja, o de ser ver no outro enquanto este não possui as mesmas mercadorias, sejam elas humanas ou materiais. Se o comércio não ativa sua mercancia baseada no mundo estético do vir a ser kantiano, como fica o campo da indústria? Bom! Este setor, desde 1760 na chamada Revolução Industrial se transforma constantemente conforme Karl Marx indica em seu livro – tão odiado por quem nunca o leu – O manifesto comunista (1848).

Tendo esses pontos como premissa, cabe ao cientista social – aquele que analisa as esferas antropológica, sociológica e política – compreender esse fenômeno e, quem sabe, indicar alguns passos que a humanidade terá que adotar depois que o vírus passar, ou pelo menos sua letalidade se arrefecer. Retirada do homem a possibilidade de ser no outro, o que lhe resta então? Voltar-se para dentro de si, fazendo uso da expressão socrática “conheça-te a ti mesmo”. Portanto, estará fazendo um exercício chamado maiêutica do qual nascerá um novo ser. Resta saber quem será este outro sujeito social. Contudo, é preciso ter a coragem, por exemplo semelhante a que teve o jornalista Ruy, personagem do romance Crocodilo (Companhia das Letras, 2019), do escritor brasileiro Javier A. Contreras. Na enunciação, ele perde o único filho que, sem motivo aparente, comete suicídio aos 28 anos, já tendo uma carreira consolidada. Mas, será que cada um de nós tem condições de procurar aquele ser que se foi com o isolamento social, com a pandemia e com a crise que se instalou em nossa sociedade? Qual será o parto de cada um, depois que o furacão Covid-19 passar ou perder força?

Ao findar o isolamento, será hora de pensar na reconstrução, todavia, como as medidas ainda não terminaram, resta-nos enquanto profissionais, que pensam o humano e sua conduta em sociedade, observarmos o presente. O que o momento reserva ao cidadão do amanhã? Eu tenho visto uma grita geral aqui e ali que não se arrefece nem mesmo diante do crescimento do número de mortos e pessoas contaminadas. Só para se ter uma ideia da peleja, principalmente no Brasil, se buscarmos nos anos finais da Monarquia, quando se discutia o fim da escravidão, encontraremos o bordão: se exterminar o escravismo, a economia brasileira quebra. A abolição veio, chegou, mas, não alforriou os descendentes de africanos e nem mesmos os escravagistas e por vários fatores, contudo, os governos monárquicos e republicanos encontraram uma saída: financiar a vinda dos imigrantes, contudo, sem colocar um centavo nos projetos para transformarem ex-escravos em cidadãos e trabalhadores assalariados. Se ao descendente de africano foi negado a educação, o salário justo e a possibilidade de ascensão social, como poderia hoje os afro-brasileiros não serem as principais vítimas fatais desta pandemia dentro dos territórios brasileiros? E o que dizer da Reforma Agrária então? Nunca foi feita e, de acordo com a Lei de Terras de meados da década de 50 do século XIX, os preços foram superfaturados para que escravos, descendentes de escravos que juntavam suas economias sonhando se tornarem proprietários rurais, não alcançassem seus anseios. Enfim, olhando o ontem e vendo o agora, me convenço de que está cada vez mais difícil ver a máxima kantiana em funcionamento. Isto é, a de que o indivíduo só atingirá a maioridade crítica quando conseguir compreender que suas ações devam ser realizadas levando em conta o fato que as mesmas são universalizais. Por enquanto, o que se assiste é aquele velho adágio: “meu pirão primeiro” e nada de solidariedade, mas como fazer isso numa sociedade, cujo dirigente máximo foi escolhido numa espiral de ódio que parece não ter fim?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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