Gilberto Barbosa dos Santos
De tempos em tempos a natureza política das coisas oferece aos cientistas sociais subsídios para pensarmos o agir dos representantes da coletividade. É interessante notar, conforme eu disse recentemente a um grupo de amigos: a cada dois anos há eleições no país, o que motiva àqueles que se ocupam em pensar a sociedade a refletir sobre o sentido do agir de quem escolhe e daqueles que serão vaticinados pela vontade do povo através de seus votos-consciências. Dito de outra forma: como se estivesse em um supermercado ou loja de departamentos, no dia aprazado, o eleitor escolherá a mercadoria que melhor lhe convier para satisfazer as necessidades que sua cidadania exige. Mas como a escolha deverá ser feita? Quais são as bases utilizadas pelo consumidor do político-mercadológico para dizer que este ou aquele alcançará, que o satisfará durante os próximos 48 meses? Responder essa interpelação e outros que advirão do desdobramento do primeiro questionamento, não é tarefa difícil: a promessa sempre pautada não no momento, mas em um vir a ser, segundo a concepção de Immanuel Kant (1724-1804), segundo a qual, o homem nunca será, já que existirá sempre e no amanhã que jamais se tornará presente.
Parece-me que enquanto ficar no âmbito político e do eleitorado, a demanda sempre será essa, mas quando a promessa extrapola o universo do eleito e seu público, ou seja, entre eleito e eleito, ou melhor, entre governador e prefeito, ou presidente da República e governador? Quais são as chances do dito se transformar no prometido, caindo posteriormente no campo da concretização? Se a política brasileira for analisada sob a perspectiva romanesca, portanto ficcional, com grande dose de realidade, entender-se-á que, num passado não muito longínquo, mais especificamente nos tempos do coronelismo, sabia-se que o eleitor apaniguado de determinado feudo rural receberia antes do voto um pé de botina e depois de encerrado as votações, viria o outro pé, formando-se um par perfeito para o sertanejo enfrentar as agruras de sua labuta diária, ou como ele mesmo gostava de chamar, a sua lida no campo.
Esse fenômeno, que muitos acreditavam estar lá no passado – pode ser revisitado no romance Gabriela, cravo e canela, ou Tocaia Grande, ambos de Jorge Amado (1912-2001) – é importante para entender o que pretendemos traçar nas próximas linhas e parágrafos. Entretanto, a realidade deste século XXI parece ressuscitá-lo, já tendo feito levantar do túmulo o populismo em sua fase mais abjeta: o assistencialismo travestido de social, enquanto seus organizadores e executores se locupletavam, por meio de atos delituosos, se enriquecendo a partir de mutretas com boa parte da plutocracia brasileira. Mas esse fenômeno de sinergia entre burocracia aristocratizada e plutocracia centenária brasileira, já foi explorado outros vezes aqui este espaço por meio das linhas que estampo semanalmente aqui nesta página. Posto isso, convém guiar os meus leitores pelos tortuosos caminhos que nos levam compreender um pequeno livro, contudo de conteúdo condensado. Trata-se da obra O príncipe, escrito pelo pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) objetivando, sobretudo, explicar como um governante deve agir antes, durante o seu mandato.
Para a reflexão de hoje, separei especificamente o capítulo 18: Como os príncipes devem guardar a fé da palavra dada. Ele começa dizendo que seria louvável a um governante manter a fé e viver com integridade, contudo, em determinados momentos deve “ser raposa para conhecer as armadilhas, e leão para atemorizar os lobos”. Lógico que aqui, Maquiavel faz uso da alegoria, da fábula para expor o que pensa e aconselhar aqueles que pretendem se enveredar pelo mundo da política, principalmente aquela que se realiza na e durante a eleição e, sobretudo, após o pleito. De acordo com Maquiavel, “um príncipe prudente não pode nem deve manter a palavra dada quanto isso lhe é nocivo e aquilo que a determinou não mais exista”. Parece-me que esse trecho é significativo para entendermos porque um político, durante a campanha eleitoral, apresenta-se ao público consumidor como sendo a mercadoria capaz de acabar com os “marajás” encastelados nos bastidores e principais assentos do poder nacional, ou, em outros momentos, exterminar “corruptos” que saquearam os cofres nacionais. O discurso encanta a todos, como o canto da sereia homérica, contudo, a prática não resiste um mês de governo como temos observado no transcurso feito pelo atual mandatário nacional. Mas será que temos problemas dessa envergadura somente no plano nacional, ou há desdobramentos nos âmbitos estaduais e municipais?
Em várias paróquias brasileiras o meu leitor atento coletará exemplos significativos e sintomáticos semelhantes ao apontado pelo cientista político florentino. Por exemplo, havia numa determinada comunidade um certo governante que gostava de vociferar aqui e ali que o governador já havia presenteado a cidade com uma unidade de saúde que seria de vital importância para a sua comunidade. Entretanto, conforme apontamos no começo dessa reflexão crítica, a cada dois anos existem pleitos, ora para prefeito, ora para governadores e presidentes da República. Eis que o gestor, num ato pouco recomendável por Maquiavel na obra citada acima, resolveu abraçar um dos postulantes, acreditando que o Estado inteirinho ia acompanhá-lo e dar a votação necessária para tornar-se o novo chefe do Executivo Estadual. Entretanto, as urnas são traiçoeiras e o chefe da paróquia viu seu desejo desfazer-se voto a voto, consolidando a derrota do seu escolhido, contudo, este venceu no município, cujo prefeito o apoiou. Desta forma, aquilo que tinha sido acordado por meio de decretos e outros acordos foi desacordado. E mesmo sendo realizados novos encontros palacianos costurados por políticos com tarimba nesta seara, inclusive para evitar abraçar uma mercadoria política que está no mercado eleitoral, as coisas não caminharam do jeito que o chefe paroquiano almejava. Mas, alguma promessa foi feita e apalavrada para que a coisa se realizasse num momento especifico, todavia, como afirmamos no início deste texto, a cada 24 meses, novos pleitos são realizados, sendo assim, fica evidente que a demanda do município passará pelas eleições no próximo ano e aí sim, quem sabe, o tão sonhado órgão de saúde seja finalmente inaugurado. Por hora, basta saber que um governante pode e deve manter a palavra dada, desde que as condições que a gerou sejam mantidas.
De qualquer forma, basta observamos que, segundo Maquiavel, “nunca, aos príncipes faltaram motivos para dissimular quebra da fé jurada. Poder-se-iam dar incontáveis exemplos atuais disso, apontando quantas convenções e quantas promessas vieram a se tornar írritas e nulas pela infidelidade dos príncipes. Entre eles, venceu aquele que melhor soube servir-se das qualidades da raposa. É preciso, todavia, disfarçar muito bem tal qualidade, e ser bom simulador e dissimulador”. Fico por aqui, sugerindo aos meus leitores a leitura do romance Moby Dick, de Herman Melville (1819-1891).
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.