A ficção e a realidade num Brasil desigual

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Em tempos pandêmicos e polêmicos com entreveros no campo da política brasileira, estadual e municipal, principalmente no campo do abre e fecha comércio, aquece e desaquece economia, microempresários e empreendedores aterrorizados com as consequências dum vírus invisível que está levando a vida humana na Terra a ser repensada por todos: do barão ao pobretão, todos precisam ser reinventados pelos próprios sujeitos que habitam suas esferas corporais e financeiras. Enfim, a humanidade, de uma forma ampla, está sendo afetada e não adianta aquele cidadão querer puxar a sardinha para a sua brasa, ou falar que o outro, por estar numa posição confortável pode teorizar sobre isso e aquilo. A doença campeia geral e pode pegar qualquer um, então, o momento é para que a sociedade, como um todo, formada por indivíduos – muitos deles, pautados no vir a ser da esfera mundana, sem realmente precisar atingir a maioridade crítica – analisar cada um dos passos a serem dados.

Pois bem! Assim como os demais que me leem semanalmente aqui neste espaço, ou conversam eventualmente comigo depois de minhas aulas, nas filas dos supermercados, balcões de açougues, livrarias, padarias, bancos de praças, filas de lotéricas e de caixas eletrônicos, enfim, em locais em que frequento em sua maioria, por necessidade humana, também estou preocupado com o vir a ser da humanidade terrena. E em virtude dessa pré-ocupação busco ferramentas que mantenham a minha mente ocupada, principalmente do ponto de vista profissional, até porque não estou dentro da sala de aula em virtude do isolamento social, mas todos nós, que atuamos na educação, estamos assoberbados de trabalhos virtuais, mesmo que muitos pais não vejam isso, pois devem ficar com os filhos dentro de casa passando-lhes valores éticos e morais. Posto isto, passo as horas em que não estou ocupado com meus afazeres pedagógicos no mundo tecnológico, nas “nuvens” como é o linguajar hoje, estudando e em volto ao universo científico que me apetece: compreender a sinergia entre o mundo literário e as ciências sociais, ou seja, o que uma obra romanesca pode me apresentar em termos das personagens e seus narradores, me possibilitando pensar algumas questões da contemporaneidade. Posso citar aqui como exemplo as enunciações presentes no O peso do pássaro morto, de Aline Bei; O olho mais azul, de Toni Morrison (1931-2019); Crocodilo, de Javier A. Contreras. Referencio apenas esses três, mas são tantos outros que escreveria mais uns três ou quatros artigos, crônicas ou sei lá como os meus leitores adjetivariam as linhas que se seguem. Neste rol de enredos, uma passagem do romance Quincas Borba (1892), do escritor carioca Machado de Assis (1839-1908) me chama atenção nesse momento, periclitante, que o país está passando, principalmente no que diz respeito às medidas necessárias para tentar conter o avanço da contaminação pelo Covid-19.

Naquela obra, o autor transpõe para as páginas romanescas um assunto comentado em uma de suas crônicas – o pessoal que se ocupa em analisar os trabalhos machadianos chama essa sinergia de fontes primeiras por serem procedimentos que o escritor usou como laboratório para seus romances. De acordo com o enredo de Quincas Borba, a notícia que aparece estampada num jornal dá conta de que uma mulher, ao ver sua casa em chamas, entra em prantos, contudo, um transeunte assiste a cena e aproveita para acender o cigarro nas labaredas que consumia o imóvel da mulher que, em desespero, nada poder fazer. Isso é ficção e somente uma pesquisa meticulosa na imprensa da época poderá dar conta da veracidade dos fatos, a exemplo do que faz Machado de Assis na crônica O punhal de Martinha – esse texto é analisado pelo crítico literário Roberto Schwarz no livro Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. Nesta enunciação, o autor de personagens como Capitu e o dissimulado narrador Bentinho, recupera uma notícia vinda dos confins da Bahia sobre uma mulher, Martinha que mata um homem que a assediava. Ela pedia para o galanteador se afastar, mas esse achava-se na condição de jamais aceitar uma recusa, contudo, acaba assassinado. Ao recuperar essa notícia, o autor da crônica traça um paralelo com Lucrécia, que violentada por um hospede de seu marido, mesmo que a agressão sexual seja vingada pelos homens da família, sente-se desonrada e comete suicídio. Interessante notar que o cronista almeja fazer a seguinte interpelação: por que a história de Lucrécia persistiu na História e ao longo dos tempos e a vivenciada por Martinha no interior da Bahia, cairia no esquecimento no dia seguinte quando o jornal, que estampava a notícia, seria utilizado para embrulhar o peixe carapicu?

Mas o que tem a ver esses dois fragmentos textuais machadianos com a pandemia que grassa lá fora, enquanto meus leitores chegam até aqui? Talvez nada ou tudo, ou mais ou menos, ou tanto faz. Eu do meu lado, objetivando finalizar essa reflexão neste final de maio de um outono gelado, creio que há muitas conexões de sentido, para usar um expediente metodológico da ferramentaria analítica de Max Weber (1864-1920). Parece-me que a primeira questão diz respeito às dificuldades que os brasileiros têm de trabalhar no campo da prevenção: uma pandemia batendo em nossas portas e muitos dos cidadãos se recusam a aceitar o resguardo necessário. Talvez este que se crê imune ao vírus tenha uma mentalidade semelhante ao transeunte que acende o cigarro nas labaredas do imóvel da mulher que se desespera vendo seus pertences serem consumidos pelas chamas. Por que o fumante iria se preocupar com as lágrimas da moradora? O mundo que estava sendo queimado não era o dele mesmo, então, segue-se a vida: ela com seus prejuízos e ele com seu cigarro aceso soltando as baforadas que o entorpece o juízo, que jamais atingirá a maioridade crítica, como dizia Immanuel Kant (1724-1804) lá de sua Alemanha oitocentista.

O segundo fragmento que recuperei linhas acima dão conta de que muitos dos brasileiros, principalmente aqueles que moram nas regiões periféricas das grandes cidades estão sendo consumidos pelo Covid-19. Ou estão indo para a vala comum, sem um velório descente ou vendo seus subempregos derreterem por inércia dos governantes que, ao que tudo indica, estão mais ocupados numa briga eleitoral, cujo desfecho será em 2022 – isso se houver um Brasil para ser reconstruído a partir daquele ano. Enquanto os anônimos, sem vozes, sem nomes estão indo para o limbo, usando féretros simplórios, seus corpos viram estatísticas num universo “necropolítico” em que os dados futuramente serão estampados em campanhas eleitorais regadas pela ignorância daqueles brasileiros sem cidadania que se deixam levar por esse jogo letal de flexibilização, abre e fecha, isolamento vertical e horizontal, em que os políticos enxergam a sociedade como um tabuleiro de xadrez e o povo meras peças no trebelhar para se chegar ao poder. Portanto, na minha pequena compreensão, aquele que, ao sair para a sua convivência em sociedade, mesmo que seja por pequenos instantes não se previnem, podem estar se comportando semelhante ao personagem da crônica que estampa Quincas Borba, ou temendo serem as Martinhas do interior da Bahia, fugindo do nosso “bovarismo”, como definiu Sergio Buarque de Holanda (1902-1982)  em seu Raízes do Brasil.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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