Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
Aqui da janela não dá para ver direito, mas posso imaginar o que se passa ao pé daquele chafariz bem no centro da praça central dessa cidade que outrora me acolheu num momento de desfortúnio em minhas duas décadas de vida.
Entre uma olhada para o relógio da igreja matriz e outra observada nos casais que dialogavam sem muita pressa, já que os ponteiros modorrentos vão marcando a sua onomatopeia, bem no centro da parte superior do meu tórax, perto do cérebro, quase chegando ao globo ocular, meu músculo cardíaco tenta voltar ao normal. Se é que seja possível se harmonizar depois do terremoto que alterou a minha existência numa quase ruína total.
Se não fosse um amigo a me controlar os impulsos, teria transformado um não dado de maneira equivocada, uma indicativa de não ser a pessoa adequada, numa tragédia e quem sabe nessa liberdade que tenho agora numa sentença judicial. E por que nesse presente, o chafariz me chama a atenção? Porque foi num semelhante, em outra localidade que um sonho começou a ser edificado. O onírico desejado se consubstanciou num abalo sísmico de grandes proporções. Isso foi há muito tempo, contudo, de tempos em tempos faz sangrar a ferida mal cicatrizada. Se fosse confessar esse passado a um líder religioso qualquer, este me diria havia necessidade de perdão. Em resposta, perguntaria: perdoar a quem? Àquele jovem, quase homem, que acreditou ser capaz de transformar sonhos em realidade?
Por ainda não saber ao certo a quem direcionar o perdão é que estou aqui nesta janela dum quarto de hotel qualquer, duma singular pequena cidade, escolhida a esmo para me refugiar, tendo como a dor como minha parceira de cama e de consciência. Durante essa temperada, que não sei ao certo quanto vai durar, permaneço, eu e ela, observando os casais no sopé do velho chafariz que, se pudesse falar, muitas histórias teria para contar, enlevos assistidos desde a sua inauguração com toda pompa que o evento requereria, afinal, todo prefeito gosta de folguedos, imprensa e fotografias estampadas nas primeiras páginas dos jornais.
Mas voltando aqui para o meu quarto, tenho para comigo que, por conta do destino dos meus desejos, o monumento de outrora, não se lembrará de nada. Mas também para quê recordar algo que foi produzido com boas intenções e terminou num não abstrato, que ficou nas entrelinhas?
A mente, diferentemente do cérebro, sente, a exemplo do coração. A memória, eis a memória, sempre nos transporta para um ontem distante. Então tentei recolher a minha, juntamente com o sentir do músculo cardíaco, fechei a janela, apaguei a luz e me deitei olhando para o teto. Justamente nesse momento percebi que o forro do meu aposento era decorado com imagens do universo. Que maravilha!
Do leito do quarto 35 deste hotel, que ainda não sei pronunciar o nome direito, me permiti contemplar o cosmo. Não o espaço sideral, mas aquele átomo que percorre o meu, o nosso corpo como um todo. A mesma expressão atômica do pretérito presente no éter da vida me fez compreender aquele fatídico dia que não me saia da memória indo se alojar num canto qualquer do meu coração. Entendi que durante todo esse tempo, o prisioneiro tinha sido eu. Percebi que a porta nunca estivera trancada, já que eu é quem havia me fechado em minha dor, transformando-a numa ilha deserta. Agora acredito que, assim que o Sol aparecer, sairei para mais um dia de trabalho e quem sabe encontrar a tão desejada moradia.
Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Professor no ensino médio em Penápolis. e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com