Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
Quando reviramos o baú de memórias de nossas existências, conseguimos encontrar coisas maravilhosas e foi justamente numa dessas visitas às casas lotéricas, tendo como companhia os códigos de barras que deveriam parar de me perseguir naquele dia e mais um livro de contos. Quando estou nesses dias em que questiono a humanidade pelos rumos que tomou nos últimos milhares de anos, prefiro a parceria duma enunciação do que o arrazoado de sons que as pessoas emitem querendo falar tudo e todos ao mesmo tempo. Enquanto passava vista pelas linhas que se seguiam naquele conto interessante do escritor carioca, cujo enredo breve pedia ao leitor que se isolasse do mundo por uma semana, me recordei duma certa noite num tempo não muito longínquo na época da universidade quando achava que era possível mudar o orbe.
Leitores amigos, os sábados à noite podem ser fantásticos ou catastróficos, tudo depende daqueles que os esperam com certa ansiedade desde os primeiros raios solares do dia. Eu não fugia a essa sina dos mortais, mesmo sabendo que tudo podia acontecer ou até mesmo nada, tendo a parceria duma narrativa confeccionada por um escritor russo, francês, brasileiro ou qualquer um que pegasse aleatório na biblioteca da universidade por saber que ficaria o final de semana em silêncio, sem ouvir uma voz se quer, mas apenas aquela que gritava a partir da minha consciência que ansiava compreender o caminhar da humanidade sobre a Terra. Lógico que a busca era sempre pelo sentido contido na frase de um antropólogo francês que dizia lá numa entrevista perdida numa revista que não me recordo mais o nome, todavia, o mais importante é o dito. Pois bem, então vamos a ele: “quando a humanidade chegou ao Planeta Terra, a natureza já existia e se o homem não fizer nada para modificar a sua conduta nefasta, será expulso do orbe”. Fiquei com a dica.
A exemplo dos sábados anteriores, naquele dia que a memória na fila da lotérica recordava, decidi lavar roupas e não eram muitas, entretanto, a chuva não deixou, então peguei a filha única, isto é, a calça que já estava de molho desde o dia anterior, torci e a coloquei para secar dentro do forno do fogão a gás. Não ria, caro leitor, pois a vida tem dessas coisas e outras tantas, principalmente para aqueles que resolvem sair de casa e na vida cair, como dizia aquela canção antiga. Enquanto a peça era severamente aquecida pelo fogo, lia uma narrativa do escritor baiano, Jorge Amado. Entre uma passagem e outra, recordava conversas que mantinha constantemente com a dona do livro que havia me emprestado para ser meu amigo naquele final de semana. É! Existem épocas de eternos silêncios que somente os sons emitidos pelas páginas dum romance são capazes de encher a sala da casa de palavras.
A calça secou daquele jeito, contudo, dava para ser usada caso resolvesse flanar pelas ruas da cidade, isso se as chuvas dessem trégua. Ah! Estava esquecendo de te informar: naquele dia o meu almoço consistiu numa porção de arroz, feijão e ovo frito misturado com batata frita. Não pensava muito no jantar enquanto degustava aquela refeição. Estômago plenamente satisfeito, roupa quase que lavada, leitura encaminhada e a vesícula funcionando bem, então o negócio era cair de cabeça no travesseiro. Dormi praticamente a tarde toda, sendo despertado quando a tarde chuvosa se despedia pelo som da porta chamando. Alguém batia.
Antes de atendê-la perguntei quem era: “- Sou eu, Léo”. Pela voz reconheci se tratar de Joana, amiga que fazia um curso diferente do meu, mas que acabamos nos tornando próximos por uma razão muito doida. Dançamos juntos num baile, mas não perguntamos o nome um do outro. Mas quem quer saber como o outro é chamado quando o objetivo é apenas se divertir. Assim que Jô ingressou no espaço, já foi me convidando para um jantar a base de pizzas na casa de uma amiga em comum. “- Esquece! Primeiro porque não tenho nenhum centavo, nem sequer para comprar um vinho de quinta categoria. Segundo, só tenho uma calça e acabei de secá-lo no forno para usar na segunda-feira”, disse à minha amiga.
– Quero de ti duas coisas: a fome do seu estômago e sua presença. Não abro mão dela hoje à noite. Ah e para completar, só saio daqui contigo. Então anda lá se arrumar. O caminho é longo e podemos conversar durante o trajeto.
Fazer o quê, meu caro leitor? As mulheres têm um jeito especial de pedir, mas ao mesmo tempo usando do imperativo que se torna categórico. Lá fui vestir a minha única calça que havia secado no forno. Coloquei uma camisa que chamou a atenção porque era de propaganda. “- Você não tem outra não”, me perguntou Joana. Como resposta, lhe dei o silêncio, pois ela sabia que quando acontecia isso, nada me fazia voltar e trocar. “- Ah! Para hoje serve essa mesmo! Tenho certeza que ninguém notará esse pequeno detalhe que ela tem”, telegrafou Jô e em seguida fomos para o tal jantar.
A caminhada foi longa. Cerca de uma hora depois estávamos na casa em que seriamos visita. É preciso lembrar que no trajeto passamos por alguns elevados que nos apresentaram um belíssimo espetáculo: o céu pintado de vermelho indicando que no domingo teríamos Sol e enquanto as ruas da cidade eram iluminadas pelas luzes dos postes. Belíssimo visual aquele depois de um dia chuvoso.
Adentramos ao imóvel que nos acolheu bem, pelo menos era essa a sensação que aquelas paredes me davam. A dona da casa nos saudou efusivamente para o deleite do meu coração. Já me movimentando pelo interior da casa, vislumbrei uma quantidade significativa de pizzas prontas em cima da mesa da cozinha. Duas delas foram levadas ao forno, enquanto conversávamos na sala à espera dos outros convidados. Os diálogos foram assaz interessantes, já que a preocupação era o estar aqui do homem no mundo.
Enquanto Joana expunha sua visão energética do orbe e do universo, pois acreditava que todos éramos átomos. “- Eu acredito que somos energias em busca de outras energias. Podemos encontrá-las aqui na Terra ou não. Por isso não tem nada de acaso ou coisas aleatórias. Nossas consciências se conectam com outras que tenham a mesma afinidade, vibração”, sentenciou Jô.
“- E você, Léo”, me perguntou a anfitriã.
Respondi que tudo poderia ser como Joana estava dizendo como também não ser, pois havia muitos mistérios dentro da própria cabeça humana. “- Só acho que não existe o acaso e o universo não joga dados conosco. Tudo que emanamos em forma de pensamento acaba sendo armazenado em algum canto desse imenso universo para, no momento aprazado, voltar à sua fonte geradora”, expliquei de forma sucinta.
Maria Helena, a dona da casa, ficou lá pensando no que eu havia dito e enquanto sua mente tentava trazer de volta algo que havia plantado no centro do universo, eu disse: “- Por exemplo, se formos à fonte desse cheiro de queimado, saberemos o que aconteceu”.
Ao final da minha observação, o trio percebeu que as duas pizzas, de alguma forma, tinham virado carvão. E foi o que aconteceu. Embora não tivéssemos colocado brasa no forno como nos antigos de ferro de passar roupa, a nossa displicência tinha transformado aquelas duas circunferências, que seriam cortadas em oito triângulos exatos para que ninguém comece mais o que o outro, em dois objetos enegrecidos que teriam por morada a lata do lixo.
Para evitar novo acidente alimentar, Maria Helena colocou outras duas pizzas no forno e todos fomos para a cozinha, momento em Joana me perguntou o que havia de errado com a minha calça. Diante de seis olhos, descobri que estava com a vestimenta do avesso e nem havia notado quando a colocava para aquele jantar. Resolvi ficar assim mesmo, pois o objetivo era a conversa e não o que eu trajava naquela noite de sábado em que os raios riscavam o céu e os trovões já enunciavam um bailado em que a dona tempestade seria a maestrina.
A anfitriã, depois de me olhar de maneira insistente, me perguntou qual era o meu signo zodiacal. Quando lhe informei, ela foi enfática: “- Deus me livre! Jamais seria sua namorada, amante, ficante, dirá esposa”. Quis saber por qual motivo: “- Você deve ter um pé na lua e o outro a caminho. Já namorei um cara que tem o mesmo signo que você e foi a primeira e última experiência. Que cara neurótico”, sentenciou a minha anfitriã.
Enquanto Maria Helena me cravava o punhal zodiacal, sem ao menos eu ter a chance de defesa, a casa cujas portas foram abertas com muita felicidade pela minha interlocutora, foi recebendo novos visitantes com outras tantas pizzas e vinhos: uns bons outros nem tanto, todavia, todos seriam degustados antes que o novo dia raiasse chuvoso ou não.
Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.