Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
Uma cama desarrumada pode significar tudo e também nada, mas como sempre me dizia uma certa senhora: “- Se as louças em cima da pia estiverem por lavar e a cama desarrumada, era sinal de que a vida do vivente daquela casa estava toda fora de ordem”. Fiquei cá com essas confabulações durante muito tempo, inclusive reparando no meu desejo de deixar sempre o leitor por fazer e os pratos por lavarem.
Havia crendices, segundo as quais, durante a noite, quando as louças jaziam sobre a pia da cozinha sem que ninguém se dispusesse a lavá-las, as almas daquelas pessoas que morriam de fome vinham lamber as sobras dos pratos. Também essa coisa mitológica ficou me acompanhando por um certo período, “mas e agora, a cama que ficou toda revirada, significa o que”, perguntei certa vez aos seres humanos dados à construção dessas crendices. Diante do vazio de uma resposta convincente, meu caro leitor, é que me coloco agora na condição de criador dessas narrativas, expondo aqui para vocês, como enxergo um leito desarrumado.
Mas, antes de adentrar nessas conferências míticas ou místicas e aí deixo com quem quiser se aventurar pela diferenciação de uma coisa e outra, creio que seja interessante dialogar um tiquinho com aqueles que desejam se enveredar pelas linhas que se seguirão, inclusive respondendo a seguinte interpelação: “- Por que, você, amigo leitor, deixa sua cama sem arrumar”. Não vai me dizer que a pergunta é capciosa, pois se fores solteiro, a responsabilidade é toda sua, agora se prometeu a alguém vida eterna ao seu lado, então, porque jogar nas costas dele ou dela, seja lá qual gênero for, a tarefa de deixar o leito nupcial organizado para a noite seguinte?
Como a leitura é um ato solitário que apenas se movimenta quando dialogamos com quem leu ou irá nos ler, então adiantemos o expediente narrativo e troquemos figurinhas, primeiramente com o nosso travesseiro. Repare bem, meu caro leitor, que já deixei o campo da primeira pessoa gramatical para fazer especulações através do colegiado, ou seja, um eu e um tu que podem padecer do mesmo infortúnio de deixar a louça para lavar no dia seguinte e a cama por fazer logo depois de desocupá-la. “- Será que isso tudo ocorre por conta da pressa da existência? Será que as horas do celular seriam aas mesmas do aparelho analógico”, me perguntou certa vez um cidadão que achou interessante eu sacar da algibeira um relógio de pulso, reproduzindo um gesto a muito sepultado pela tecnologia.
– Está me perguntando isso por que nunca viu um objeto desses ou por que pareço velho, mesmo tendo pouco mais de 20 anos?
“- Não é nenhuma coisa e nem outra! É que gostei do gesto que fizeste com as mãos. Me fez lembrar de uma pessoa muito estimada que repetia cotidianamente essa cena. Tirava o relógio do bolso para anunciar que era hora de brincarmos”, disse-me o meu interlocutor.
– Então compre um desses para tu.
“- Para ficar parecendo um homem do passado? Não! Prefiro ainda ver as horas nesse aparelho moderno”, respondeu o meu interlocutor me apresentando um aparelho celular de última geração.
– Engraçado! Tu tens essas porcarias eletrônicas, mas elas não são capazes de lhe fornecer as sensações de carinho, amor, amizade que este outro ser do seu passado lhe ofertava. Pois bem, fique com a máquina e esqueça o ser humano.
Claro que o meu ouvinte, fechou a cara e seguiu lá com a sua cara metida dentro do celular como se existisse apenas aquela coisa no mundo e eu fiquei tentado a dizer mais, contudo, a cama desarrumada ainda bagunçava cá com a minha cabeça. Então, deixemos o relógio digital com o seu tempo e o seu concorrente pretérito lá com seus ponteiros e uma genial onomatopeia a nos martelar o tempo e voltemos eu e tu, meu acompanhante dessas linhas, ao que mais interessa, isto é, os motivos pelos quais uma pessoa que prometeu amor eterno, deixa o leito desarrumado esperando que o outro o organize.
Se eu fosse um filósofo, olha só quanta pretensão ser alguém que pensa num momento em que tudo se devora de dentro para fora, já que o homem é degustado pelos seus anseios, daí a questão da ansiedade, principalmente no que diz respeito à passagem do tempo e o temor da solidão que isso gera. Entretanto, acho mais apropriado deixar de filosofias e outros psicologismos e patologias abstratas nessas primeiras décadas do século 21 e fincar o pé no chão da fábrica, lá onde são produzidas as coisas que fazem sentido para todos, ou não, mas tanto faz, a mercadoria será dissolvida no dia seguinte movida pelo desejo de quem a consome.
Se o indivíduo, que pretende me responder as interpelações feitas no começo dessa missiva, for solteiro, as informações poderão escudar-se no fato de que não tem porquê organizar tudo antes de deixar o imóvel para o trabalho que pode até na repartição, se tiver um emprego fora de casa, porque em tempos tecnológicos há muitas funções que são exercidas em casa. Na rua, no transporte, caso seja questionado sobre o motivo de tal desarranjo a resposta vir de forma simples: “- Por que tenho que arrumar, se a noite vou me deitar no mesmo lugar”. Fazer o quê? O cidadão tem todo o direito de pensar assim e sigamos em frente no dia a dia do trabalho, mas permaneço aqui com a interpelação me azucrinando a mente, ainda mais por saber que ela é diferente do cérebro.
Como podem ver, meus caros amigos leitores, ainda não consegui chegar a um consenso sobre as razões que levam um indivíduo ou um casal a deixar a cama desarrumada logo depois que deixam o leito, seja solitário ou nupcial, bem como abandonar a louça suja em cima da pia. Alguém algum dia me segredou que ver, ao compartimento lotado de pratos, talheres e panelas, joga uma toalha por cima, a exemplo de quando queremos parecer belo sem de fato o ser e inventamos um outro sujeito para existir por e para nós. Eis os tempos modernos em que as pessoas acreditam em deslavadas mentiras. Entretanto, deixemos para lá esses deslavamentos e nos ocupemos, eu e tu, em limpar a pia, ajustando os pratos.
Fiquemos assim, meu caro leitor que também pode ser leitora já que o gênero não importa quando se trata d’alma, enquanto lavo, tu secas os pratos, talheres, panelas e assim vamos conversando sem segredos. Você fala como foi o seu dia e eu digo sobre o meu. Depois vamos lá, nós dois, arrumar a cama em que dormiremos a noite. Lógico, pois tu, oh amada consciência, sempre me dirá, durante o descanso deste corpo, quem sou! A mente, por si só, pode viajar naquelas paragens anunciadas pelos meios de comunicação.
Gilberto de Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.