Gilberto Barbosa dos Santos
A reflexão para hoje custou a sair, e por diversos fatores, principalmente pela quantidade de temas que poderiam ser abordados, todavia, só para não ficar nessa de polemizar isso e aquilo, incomodando inflamações de muitos sujeitos que se querem sociais, entretanto, desconhecem alguns preceitos básicos como a distinção entre o que é público e o que é privado, bem como ter ideia clara do que venha a ser direita, esquerda ou até mesmo conservadorismo. Neste sentido, pensei em focar no projeto de lei que teria sido apresentado à Câmara Municipal local vetando a construção de banheiros públicos e privados destinados às populações que se definem não pertencente ao gênero masculino e nem feminino. Fiquei cá pensando se estas pessoas não pagam seus impostos, como qualquer indivíduo. Pelo visto, a matéria por conta de sua vertente polêmica foi retirada da pauta de votação daquela Casa de Leis. Sendo assim, este que vos escreve, meus caros leitores, optou por navegar por outros mares e oceanos, quem sabe mais tranquilos, contudo, sem perder de vista os problemas que a cidade vem enfrentando, solicitando resoluções mais urgentes. Posto isto, me parece que cabe uma volta ao riquíssimo universo machadiano.
Pois bem, aqueles que resolveram caminhar comigo nas linhas que se seguem, devem recordar que sempre abordo uma questão singularíssima apresentada por um dos maiores escritores brasileiros, senão o melhor, dada as condições em que ele elaborou toda a sua obra romanesca, crônicas, contos e outras enunciações. Desta vez, a problemática está por conta do romance Quincas Borba, cujo título se refere ao nome de uma das personagens principais e também de seu cachorro que é o único que sobrevive à sanha capitalista de um casal que sonha em subir na vida se aproveitando de uma paixonite aguda dum professor. Fico por aqui nessa enunciação para não estragar as surpresas que os leitores terão ao percorrer as mais de 250 páginas que compõem a edição machadiana que tenho cá comigo [São Paulo: Nobel, 2009], enquanto eu converso com vocês ou será você – ainda não sei ao certo se é plural ou singular, mas tanto faz, até porque o escritor em tela é genial, daí o seu apelido Bruxo do Cosme Velho, outorgado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em meados da década de 50 do século XX. Mesmo sem saber ao certo a quantidade de leitores que tenho até esse ponto de minha enunciação, fico com a seguinte interpelação: se Quincas Borba, não o cão, mas o seu dono, existisse nesses tempos para lá de estranhos em que o público se confunde com o privado e que a Constituição Federal corre o risco de ser interpretada a partir de um livro religioso, como acontece nas teocracias espalhadas pelo mundo, por exemplo, o Irã posterior à Revolução Islâmica de 1979 em que os Aiatolás tomaram para si o comando político da antiga Pérsia, será que ele enquadraria tudo isso em sua “teoria do humanitismo” e seu principal slogan: “ao vencedor, as batatas”?
Claro que no campo ficcional, conforme nos lembra Aristóteles em seu clássico texto Poéticas [São Paulo: Nova Cultural, 1999], o escritor pode fazer as combinações que lhe aprouver, esperando que o leitor, de acordo com os dizeres do semiólogo italiano Umberto Eco (1932-2016), completa o seu conteúdo a partir de suas reflexões do mundo concreto fornecedor de riquíssimos modelos ao poeta e seus enredos. Neste sentido, penso que seria engraçado ler os escritos de um Quincas Borba ou de seu amigo Brás Cubas – este morre para depois escrever, do outro lado da vida, a sua visão das coisas, mas talvez não como elas se passaram, mas como ele gostaria que fossem, por isso é possível especular qual o sentido poético e real do encerramento do romance Memórias póstumas de Brás Cubas [São Paulo: Ática, 1998], segundo o qual, o enunciador não teve filhos, por isso não deixou a ninguém o legado da miséria humana. É neste romance também que o leitor atento encontrará alusão à Idade Média, período conhecido como Idade das Trevas por conta de um certo teologismo infundado, e escudado numa ideia geocêntrica, quis ditar as regras das condutas humanas. Só para não deixar passar batido, foi neste período que a Peste Negra quase varreu a Europa do mapa. Posto isso, será que os escritos machadianos são significativos para compreender esse presente amalucado e com cheiro medieval?
Se o meu leitor se atentar para o fato de que, segundo o escritor carioca, por intermédio de um de suas centenas de narradores diz que é preciso mudar os hábitos, antes das leis, então é possível indicar que tais atitudes e comportamentos do aqui e agora são ainda do período medieval. Entretanto, se eu abandonar o campo literário e ficcional, será que encontro na literatura sociológica algum cientista social que possa escudar esse restante de reflexão que objetiva entender esse capítulo medieval ainda presente no universo pós-moderno? Parece-me que Emile Durkheim (1858-1917), por intermédio de seu trabalho A educação moral [Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 20] pode nos dar alguma pista ao afirmar que “quando a ciência começa a se constituir, é necessário que seja postulada como um empreendimento possível, ou seja, é preciso postular que as coisas podem se exprimir em uma linguagem científica ou, dito de outra forma, racional, porque os dois termos são sinônimos”. O que isso significa, deve estar-se perguntando meus caros leitores: simplesmente que a ciência e a razão devem prevalecer quando as querelas dizem respeito ao universo do público e do privado. Duas instâncias significativas que devem ser compreendidas em suas extensões plenas para que todo indivíduo, que se constitua como cidadão, tenha todo o direito de ir e vir e usar os espaços erguidos com o dinheiro público, afinal, as taxas, impostos e tributos são cobradas de indivíduos, independentemente dos gêneros em que os pagadores acreditam pertencer.
Para permanecer com o autor d’As regras do método sociológico [São Paulo: MEDIAfashion: Folha de São Paulo, 2022], interessante notar que em outro livro, o pensador francês aborda a passagem da solidariedade mecânica – própria dos tempos medievais – para a solidariedade orgânica – características da era moderna (A divisão do trabalho social. Lisboa: Presença, 1989). Durkheim usa o conceito de anomia para indicar a ruptura de um momento para o advento do outro. Desta forma, creio que, apesar de muitos ainda advogarem teses medievais, a pós-modernidade e suas constantes revoluções tecnológicas, indica que não há espaços para elas, a não ser que sejam nas esferas privadas, conforme definiam bem os gregos da Antiguidade Clássica, mas aí é outro departamento e não pretendo me enveredar por ele no presente, optando por me restringir ao universo da ficção machadiana e no personagem do romance que dá o seu nome ao cachorro de estimação. Interessante notar ainda outra enunciação que tem um cão como protagonista, inclusive é o único que tem voz: para quem não sabe essa personagem que passa de um eu narrado para um eu narrador atende pelo nome de Baleia e recheia as passagens do enredo Vidas Secas [Rio de Janeiro, 2011], de Graciliano Ramos (1892-1953). Enquanto eu fico cá, meus caros leitores, tentando entender como a personagem principal desse clássico da literatura brasileira contaria sua história para além das fronteiras nordestinas nesses tempos em que um quantum de homens volta suas faces para o medievo, talvez porque temem o amanhã ainda inexistente, como dizia Immanuel Kant (1724-1804), um devir que pode não se consubstanciar em algo real, aguardemos as cenas dos próximos capítulos dessas novelas pós-medievais.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.