A razão como instrumento de análise social

Gilberto Barbosa dos Santos

 

No livro O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), do professor do Departamento de Psicologia de Harvard, Steven Pinker, há duas epígrafes que gostaria de compartilhar com os meus leitores como ponto inicial numa tentativa de dialogar com aqueles que, por ventura, se aventurarem a seguir as linhas que consubstanciarão os meus olhares neste texto. O primeiro fragmento é de autoria do filósofo holandês Baruch [Bento] Espinosa (1632-1677) e diz que “os que são governados pela razão não desejam para si nada que também não desejam para o resto da humanidade”. O segundo excerto é do físico israelense David Deutsch e nos diz que “tudo o que não é proibido pelas leis da natureza é alcançável, dado o conhecimento certo”. Se os meus leitores me permitirem acrescentar mais um adendo à tentativa de refletir sobre o mundo que nos cerca a partir de algumas abordagens feitas por profissionais que se ocupam em compreender a ação humana na polis, acrescento que de acordo com o cientista social Peter L. Berger (1929-2017), “a perspectiva sociológica envolve um processo de ver além das fachadas das estruturas sociais”.

Posto isso, creio que posso adiantar o expediente textual dizendo que, no caso do fragmento de Espinosa, é possível acrescentar algo dado pelo pensador alemão Immanuel Kant (1724-1804) no que diz respeito aos imperativos categóricos e as ações, segundo as quais, os praticantes têm claro que seus comportamentos serão universalizados. Portanto, quando o cidadão com cidadania tem consciência disso, sempre haverá uma opção e o sujeito deve ter claro as suas consequências. Desta forma, “poderíamos traçar um paralelo com uma experiência comum das pessoas que moram nas grandes cidades. Uma das coisas que uma metrópole tem de mais fascinante é a imensa variedade de atividades humanas que têm lugar por trás das fileiras de edifícios de uma anonimidade e interminável semelhança. Uma pessoa que viva numa tal cidade muitas vezes se sentirá surpresa ou até chocada ao descobrir as estranhas atividades de que alguns homens se ocupam sem atarde e em casas que, vistas de fora, assemelham-se a todas as outras de determinada rua. Depois de passar por essa experiência uma ou duas vezes, muitas vezes uma pessoa se verá caminhando por uma rua, talvez tarde da noite, e imaginando o que estará acontecendo sob as luzes brilhantes por trás de cortinas cerradas. Uma família comum conversando agradavelmente com convidados? Uma cena de desespero em meio a doença ou morte? Ou uma cena de prazeres depravados? Talvez um culto estranho ou uma perigosa conspiração? As fachadas das casas nada nos podem dizer, nada revelando senão uma conformidade arquitetônica aos gostos de algum grupo ou classe que talvez nem mais habite naquela rua. Por trás das fachadas escondem-se os mistérios sociais. O desejo de desvendar esses mistérios é análogo à curiosidade sociológica. Em certas cidades subitamente atingidas pela calamidade, esse desejo pode ser bruscamente realizado. Quem já passou pela experiência de bombardeios em tempo de guerra conhece os repentinos encontros com insuspeitados (e às vezes inimagináveis) condôminos no abrigo antiaéreo do edifício. Ou se lembra de ter visto com espanto. De manhã, uma casa atingida por uma bomba durante a noite, cortada ao meio, com a fachada destruída e o interior impiedosamente relevado à luz do dia. Entretanto, na maioria das cidades em que normalmente se vive só se pode conhecer esses interiores mediante um exercício de imaginação. Da mesma forma, há situações históricas em que as fachadas da sociedade são violentamente derrubadas e só os mais displicentes deixam de ver que nunca deixou de haver uma realidade por trás das fachadas. Geralmente isso não acontece e as fachadas continuam a nos desafiar com uma permanência aparentemente inabalável. Nesse caso, para se perceber a realidade que as fachadas ocultam é preciso um considerável esforço intelectual” (Peter L. Berger. A sociologia como forma de consciência. In. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 33.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 41-42).

E é justamente neste ponto que considero inevitável o exercício pleno da cidadania a partir do uso da razão, sobretudo para se analisar as estruturas de poder de uma determinada sociedade “que constitui uma configuração de homens e poder que não se encontra descrita nos estatutos e que raramente aparece nos jornais. […]. O sociólogo estará muito mais interessado em descobrir a maneira como poderosos interesses influenciam ou mesmo controlam as ações de autoridades eleitas segundo as leis. Esses interesses não serão encontrados na prefeitura, e sim nos escritórios de dirigentes de empresas que talvez nem mesmo se localizem nessa comunidade. Nas mansões privadas de um punhado de homens poderosos, talvez nos escritórios de certos sindicatos trabalhistas ou até mesmo, em certos casos, nas sedes de organizações criminosas. Quando o sociólogo se interessa por poder, olhará atrás dos mecanismos oficiais que supostamente regem o poder naquela comunidade. Isto não significa necessariamente que ele encare os mecanismos oficiais como totalmente ineficientes ou sua definição legal como totalmente ilusória. Entretanto, na pior das hipóteses, ele insistirá em que existe outro nível de realidade a ser investigado no sistema particular de poder. Em alguns casos ele haverá de concluir que procurar o poder real nos lugares publicamente reconhecidos é inteiramente inútil” (BERGER, 2014, p. 43]

Posto isso, o momento que a sociedade brasileira vem vivenciando requer de todos, razão para analisar esses processos, contudo, a pergunta que fica é: como definir o que é populismo e democracia. “Várias democracias na América e na Europa estão sob a ameaça dos populistas. Diferentemente do velho populismo latino-americano, a vertente que assalta as democracias mais maduras vem da direita nacionalista. O populismo, sob qualquer de suas formas, nasce da insatisfação e do ressentimento. O terreno no qual prosperam as lideranças populistas é marcado pela frustração das oportunidades, pela mobilidade regressiva, particularmente nas classes médias, e pela desigualdade crescente. Elas exploram o sentimento de abandono ou destituição. Não são sentimentos gratuitos. Estão ancorados nas falhas sistêmicas dos mercados e das democracias. As formas tradicionais de produção e circulação de mercadorias foram alteradas pela globalização, pelas mudanças tecnológicas, pelo desenvolvimento de novas modalidades de financiamento no mercado financeiro e pela instantaneidade da economia digitalizada. Tudo isso gera desigualdade e desemprego. Os novos padrões, alguns já emergentes, ainda não são capazes de gerar os empregos, a renda e o bem-estar necessários para compensar essas perdas e atender às demandas da maioria. O que piora o quadro é que as democracias estão dominadas por oligarquias políticas e econômicas que não representam mais amplas parcelas da sociedade. As camas desrepresentadas emergiram fora das jurisdições cobertas pelos partidos, sindicatos e grupos de interesses organizados e encontram-se desamparadas. São rejeitadas pelo mercado de trabalho, não têm representação política e estão fora do alcance das redes de proteção social do Estado” (Sérgio Abranches. O tempo dos governos incidentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 71-72). Acho que temos aí, meus caros leitores, alguns subsídios para se pensar a problemática política brasileira.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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