Liberdade, democracia e sociedade

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O homem social é livre? Se o é, como pensa a própria liberdade? Eis as perguntas que me predispus a responder após ouvir, em um dos meus périplos pela cidade, o diálogo entre duas pessoas que se opunham quando a temática é a política. Interessante notar que nenhum dos contendores tinha lá suas razões afirmadas no que diz respeito à concretude de suas querelas, pois o ser humano só se torna livre quando constrói a própria autonomia, e esta advém do exercício, há muito ensinado pelo pai da maiêutica, Sócrates. Para ele, o homem deveria conhecer-se a si mesmo. A tarefa é complexa justamente porque o ser que se propõe a realizá-la deve se ver para além das estruturas sociais, conforme Thomas Mann (1875-1955) apresenta em suas enunciações no romance A montanha mágica (SP: Cia das Letras, 2019) ou se ainda preferirem, meus caros leitores, a partir dos princípios da religião persa, cuja região geográfica é a mesma em que está instalado o Irã. De acordo com essa tradição, o ser humano precisa estar no topo da montanha para compreender a sociedade de onde partiu.

Soma-se a essa observar um olhar kantiano, segundo o qual, o sujeito deve agir levando em conta que sua atitude seja universal. Neste sentido, se o homem não sabe o que é liberdade, provavelmente estará sempre disposto a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança, conforme o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) indica em um dos seus vários escritos. Foi assim na Roma Antiga, império que legou ao povo brasileiro, a Língua Portuguesa baseada no latim vulgar e algumas abordagens no campo das Ciências Sociais e Jurídicas. Se isso é fato e tendo a concordar com essas abordagens, então a conversa que escutei enquanto flanava pela cidade, evidencia que os pelejantes de outrora queriam apenas vencer uma disputa que, aos meus olhos e ouvidos, não tinha nem pé nem cabeça, como se diz no jargão popular. Quem é melhor? Governante y ou gestor x? Cada um apresenta seus argumentos no campo fratricida e ao combate. Acho significativo compreender que a questão toda passa pelo Estado e aí como nos lembra o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) em seu livro Thomas Hobbes (RJ: Campus, 1991), a peleja encaminha-se para o campo do Estado-máquina ou Estado-pessoa. O que tu queres, meu caro leitor que se engalfinha com seus amigos e respectivos familiares na defesa de um ponto de vista recheado por ações dignas de um deus mitológico como Thanatos e seu barqueiro, o Caronte?

Eu, do meu lado de cá dessa escrita, sempre optarei pela liberdade e ela só poderá surgir a partir do momento em que o sujeito for possuidor de ferramentas que lhes permite se emancipar enquanto ente social. Sendo assim, não creio que o homem seja livre se houver um semelhante passando fome e o vácuo estomacal foi provocado por escolhas feitas a partir dos governantes e seus asseclas assentados na estrutura estatal e estamental. Sendo assim, não é esse governo que aí está que deve ser compreendido, pois ele é resultante de uma massa amorfa e ávida por poder e benesses, inclusive tendo o direito de explorar os desafortunados, num claro exemplo advindo do sistema escravista brasileiro. Se tudo é diferente do narrado até aqui, porque o desejo atroz de se alinhar com líderes autocratas? Creio que a problemática é entender o meio social que gera sujeitos com tais envergaduras populistas de toda a estirpe. Lembremos, meus leitores, do populista-mor Getúlio Vargas (1882-1954) que saiu da vida cometendo suicídio, desejoso de entrar para a história recente deste país, cuja República nunca externou a vontade de seu povo que, aliás, não é um povo, mas um público que assiste a tudo, esperando a sua migalha cair do alto do trono depois de beijar a mão do líder que possa aplacar o seu vácuo estomacal.

Desta forma, como falar em liberdade quando há registros de mais de 600 mil mortes provocadas por um vírus e, muitos de nós sabemos que a maioria desses óbitos poderia ser evitada com ações governamentais, cujo gestor principal optou pelas bravatas e afronta às instituições. O pensador russo Mikhail Bakunin (1814-1876) dizia que o homem que fala em revolução, mas não faz de sua existência um ato revolucionário, tem na boca um cadáver e é a partir desse olhar que tento compreender o presente nacional levando em conta uma trindade significativa que se constrói no mundo da prosódia. Aqui entre nós há uma língua, uma fala e um discurso. É por meio do discurso que a língua e a fala se corporificam e é neste campo que te pergunto, meu caro leitor: quando tu clamas por liberdade, o que imagina estar solicitando? O direito de humilhar, ofender, denegrir o seu semelhante e as instituições que consubstanciam essa Nação? Propagar mentiras para que um determinado grupo se perpetue no poder? É preciso que o sujeito social entenda muitas coisas para não ficar matraqueando brados aqui e ali, repetindo verborragias feito papagaios. Entretanto, como é possível abandonar essa condição, se ainda o burocrata acha que o Estado é dele e deve ser personificado num líder que lhe garanta pão e segurança? Parece-me que a resposta a esta interpelação reside no cômodo da casa desenhada pelo pensador russo que fala sobre mudanças e mortos.

É comum, conforme constatei ao escutar o embate entre os dois personagens que ilustram essa narrativa, cada indivíduo que compõe o todo orgânico de uma sociedade, ou seja, que contribui para a organização do meio em que vive, não se dar conta de que culpar outros pelo próprio fracasso é uma forma das mais perversas de sujar o sucesso alheio, conforme nos indicou o cronista João Pereira Coutinho em seu artigo “O jogo do ressentimento” publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em sua edição da última terça-feira, 07 de setembro. Pegando carona nessa pequena assertiva do autor do livro “As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários” (SP: Três Estrelas, 2014), entendo que há uma grita geral sobre tudo o que acontece no entorno do indivíduo que, para fins sociológicos, pode ser compreendido como um ser uno, indivisível que se torna coletivo quando se expressa na massa, no colegiado, segundo nos afirma Elias Canetti [1905-1994] em seu texto Massa e poder (SP: Cia das Letras, 2019). Agora a questão se torna emblemática, pois é possível interpelar o ser individual subsumido no todo, por que este é incapaz de conviver com a democracia? Por que se compraz com líderes que, deseja sobretudo, eliminar as instituições construídas para dar equilíbrio e harmonia nas relações sociais? Se todos os brasileiros conseguirem retornar seus olhares para o pretérito desta Nação, observarão o quão ainda está-se na fase infantil da vida na polis, pois o discurso de outrora dizia-se combater a corrupção, entretanto, ao se apossar do principal assento, a primeira coisa que se faz é tentar minar as estruturas construídas no afã de minimizar os efeitos deletérios da relação entre plutocracia e burocracia aristocratizada, de acordo com As cartas de Erasmo, livro do escritor e político brasileiro José Martiniano de Alencar (1829-1877). Sendo assim, meus caros leitores, é preciso clareza para não se defender autocratas que querem tudo, menos defender os interesses da sociedade brasileira. Fiquemos assim então: busquemos a liberdade a partir do conhecimento de si mesmo, usando a democracia como ferramenta importante na constituição de uma sociedade mais harmônica. O resto é bravata de políticos desejosos de defender seus interesses, seja no campo familiar ou de determinados segmentos. Enfim, conforme consta no livro O novo iluminismo (SP: Cia das Letras, 2019, p. 36), de Steven Pinker: “‘qualquer jumento pode derrubar um celeiro com um coice, mas é preciso um carpinteiro para construir um’”.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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