Sobras de um amor … parte II

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Márcio acorda escutando alguém conversando. Pensou que Roberto teria voltado ao apartamento, mas a voz parecia ser de mulher. Era de Angélica que estava ao telefone. Ele sai do quarto disposto a colocá-la para fora do apartamento e de sua vida. Por educação, esperou ela desligar e já soltou tudo.

– O que está fazendo aqui ainda? Achei que depois do que rolou essa madrugada, você tinha ido embora. Nem tem como continuarmos, já que me chamou de velho tarado. O que foi aquilo?

Angélica olhando para o chão disse que tinha desmarcados todos os compromissos dela para aquele dia. Roberto tinha ligado no celular dele. Ela atendeu e disse para ele não ir ao apartamento. “- Precisamos ter uma conversa muito séria”, disse a arquiteta.

– Era daquele jeito que eu falava quando meu pai queria me possuir de qualquer forma. Não tenho palavras para tentar fazer você me desculpar. Fui violentada por Jô de diversas formas. Eu tento apagar tudo aquilo da minha mente. Às vezes eu consigo, às vezes não. Sei que estou passando dos limites com você. Antes de ontem e ontem estava tudo belo. Nas duas noites queria muito trepar contigo, para gozarmos juntos. Mas está muito difícil para eu suportar. Te confesso que às vezes quero voltar com Rosângela, pois não precisaria enfrentar esses fantasmas todos. É só deixá-la me conduzir, atingindo o prazer dela. A satisfação de achar que está no comando. Raramente há membros de borracha sendo introduzido em mim. A maioria das vezes é a língua. Eu finjo e ficamos bem. Aí você apareceu e me trouxe para essa realidade. Embora eu queira muito, não sei como lidar com isso. E é só falar em outra mulher que sei que está próximo de ti, fico sem chão! Acho que não vou conseguir te dar e ter prazer contigo e bastará ela lhe chamar que me deixará. Eu sei disso tudo, mas é como aquele indivíduo que sabe que vai bater a cabeça na parede, mas não consegue evitar. Você me entende?

Márcio ficou em silêncio. Depois abraçou-a dizendo: “- Vamos tomar um banho e voltarmos para cama. Vamos nos desligar do mundo lá fora e nos conectarmos um com o outro. E quem sabe encontramos uma saída juntos para essa loucura toda.

Do jeito que Márcio propôs, fizeram e retornaram para a cama com Angélica abraçando-o como quem pede proteção do passado terrível que tentava fugir, mas não conseguia, pois na medida em aumentava o amor e o desejo pelo jornalista, o seu ontem aparecia como um fantasma numa noite de tempestade. Chorando pediu perdão para Márcio. “- Perdoe-me amor, por ter te arrastado para esse mar de lamas que é o meu passado, do qual estou ávida para sair”.

– Acalme-se! Vamos dormir. Estamos todos exaustos. Depois que despertarmos encontraremos uma saída para tudo isso. O mais importante agora é você compreender que o passado não existe mais, e só fará parte do seu presente e futuro se você assim o deixar. A sua luta é árdua, mas estarei junto contigo. Pode ter certeza disso.

Ambos, muito machucados pelas dores individuais que vinham da alma, adormeceram, enquanto lá fora, a exemplo do que aconteceu no domingo em que se conheceram, o temporal desabou. Na Redação do jornal, Roberto ansioso queria conversar com Márcio para falar da gravidez e da reconciliação com Danisa, mas não havia revelado nada a respeito do cargo na empresa, porém falou de relance sobre a editora.

Quando Márcio e Angélica voltaram ao mundo os ponteiros do relógio marcavam três horas. A chuva continuava a castigar a cidade. Sem falar nada, a arquiteta tomou banho, reativando os aparelhos de celulares dos dois. O repórter sentado na cama assistia a tudo, sem dizer nada, apenas aguardava a empresária dizer alguma coisa. Queria dar um jeito na situação. Compreendeu que sem ela não conseguiria caminhar e sem ele a arquiteta não teria forças para se desvencilhar totalmente do passado. Se é que conseguiria um dia.

Enquanto a empresária foi a cozinha preparar um chá para ambos, intencionando ir para bem longe dele. Não queria mais compartilhar suas tragédias com ninguém. O jornalista foi ao banheiro se higienizar e ficou ali tentando encontrar um jeito de modificar aquela situação sem provocar mais traumas para os dois. Ele tinha acabado de jogar pela janela o seu passado tumultuado e com a sentença que Márcia recebeu, compreendeu que tinha que seguir em frente. “Mas, e Angélica? Não posso deixa-la ir embora. Ela não suportará seguir adiante nesse pântano dos infernos que o pai a colocou”, pensou.

Enquanto se arrumava, recordou da conversa que teve com uma professora de Psicologia que conhecera numa festa da universidade. Chegaram a sair umas vezes, rolou até uns beijos e umas mãos bobas aqui e ali, mas não passou disso. Quando ela se afastou, o repórter a procurou para saber o motivo do sumiço dela. “- Márcio, meu querido! Tu és singular. Mas para termos um relacionamento sereno é preciso haver três coisas: amizade; sexo com muita sexualidade e realização profissional. Tenho certeza que contigo terei as duas primeiras e a terceira não. E sinceramente não estou disposta a me sacrificar para te carregar até que chegue ao ponto em que eu acho ideal para eu te assumir no ambiente que eu frequento. Espero que me entenda”.

– Entender, compreender, tanto faz pois qualquer coisa que eu lhe disser, será infrutífero, pois sei que fui mais um casinho de festa estudantil e que no dia seguinte seria o estudante e você a docente conceituada. Sigamos em frente.

Nunca mais viu a professora, mas ficou a lição. Ao recordar a história, percebeu que teria que ser mais amigo dela, naquele momento, do que o homem que ela amava e, ao mesmo tempo, oferecer a lanterna para caminhar, a arrebatava de dentro do pântano. Quando deixou o quarto, Angélica já estava na sala com duas xicaras de chá e a sua espera.

– Márcio! Não precisamos continuar com isso. Eu sei que a barra está pesando em demasia para você. É a segunda vez que eu surto contigo. Te agrido fisicamente, verbalmente e também na sua condição de homem. Na verdade, queria muito era devolver tudo isso àquele filho de uma puta, que foi meu pai, por ter me deixado do jeito que eu estou. Sem saber ao certo se gosto de homem ou de mulher ou se estou procurando sempre me esconder daquelas noites terríveis.

– Se eu te falar que não estou incomodado com tudo, estaria mentindo. Todavia, não posso deixá-la continuar a se afundar nesse posso de lamas que o Jô te colocou. Não vou tentar intender as razões dele, pois o principal objetivo aqui é estar contigo na chuva, no sol, no frio, no outono ou na primavera. Como você sabe, não tenho nada, não almejo nada, mas tenho certeza do que quero e essa querença tem um nome: Angélica.

– Então me ajude a fazer essa coisa funcionar. E não me venha com aquela conversa de sermos apenas amigos. Não posso considerar amigo o homem que eu amo, mas não consigo resolver isso aqui dentro de mim.

– Sinceramente aqui e agora eu não tenho nenhuma resposta, mas vou contigo procurar. Não conseguirei ficar em pé, enquanto você rasteja como um verme na merda de vida psíquica que teus pais te colocaram. Dinheiro, poder, riqueza é tudo maravilhoso, mas não podem fazer nada enquanto convivem internamente com um inferno como esse que você está vivenciando.

Angélica de cabeça baixa, sorvia o seu chá, dizia para o jornalista. “- Quero imensamente te fazer feliz, pois sei que é um ser ético, porém, não perfeito que tem lá suas manias também motivadas por temores que ainda tem dentro de ti. Não fala com a sua família há cinco anos e não sabe nem por onde tentar uma reconciliação e, ao invés deu lhe trazer luz, te arrasto para o meu terrível passado que se faz presente na medida em que me afeiçoou mais a você. Por mais que eu te ame, não acho justo fazer isso contigo. Evitar que você possa ser feliz com outra pessoa que te adora, como por exemplo, a Fernanda”.

– Esquece a Fernanda. Adoro aquela doida! Tenho ela como a irmã que nunca tive e por mais que eu tente orientá-la, sempre vai arrumar confusão para sua vida com os homens e depois dizer que ainda não foi desta vez. Não sou o prego na obra da vida dela e nem ela é a mulher com quem quero dividir a cama. Podemos sim, até dormir na mesma cama, bunda com bunda, mas 35 anos e não vou ficar me aventurando, procurando. Nunca fui de fazer isso e não vai ser agora.

– Mas eu não sei o que fazer, querido. Eu consigo detonar todos os nossos momentos. Como na madrugada lá em casa. Te arrastar para esse inferno que é a minha vida foi dum atroz egoísmo. Eu não avaliei as consequências disso para ti. Eu só pensei no que imaginava sentir. Queria que você estivesse sempre onde eu pudesse ver e pegar como um brinquedo. Não quero isso para mim e nem para o homem que amo. Eu sinto aqui dentro que vou levar esse sentimento comigo para onde eu for.

Márcio ficou em silêncio, sem saber o que fazer, enquanto lá fora o céu era tingindo pelos fortes raios que saiam do solo e pela velocidade pareciam que emergiam do céu. Faziam um lindo balé com as trovoadas. “- Eu só quero que você faça uma coisa em nome do que sentes por mim. Se afaste. Deixe-me sozinha. Preciso resolver isso aqui dentro. Se não for assim, não terei condições de ser feliz contigo ou com quem quer que seja”.

– Tudo bem minha cara. Não vou fazer diferente do que está me pedindo. De qualquer forma, sabes onde me encontrar caso queira. Fique com a chave do apartamento. Quando desejar, é só me dar um alô.

Para evitar despedidas, ele deu um beijo na face de Angélica e foi para a cozinha preparar algo para comer. “-Vou fazer algo para almoçar. Você quer o quê?”

– Eu não quero nada. Adeus!

Quando o repórter chegou à sala, já não a encontrou mais e sobre a mesa central do cômodo, estava a chave do apartamento e mais nada. Angélica desaparecera no meio daquela tempestade. Tentando ser forte, mas sabia que logo desabaria como o temporal que caia na cidade. Ingeriu a comida e lembrou dos rangos solitários que fazia nos tempos de universidade. Desligou o celular, indo para a janela do apartamento, ficando ali um tempão vendo a chuva desabar e as enxurradas se formarem.

Em seguida, separou uma série de discos para ouvir. Pegou um livro para ler. A leitura não fluía. Deixou de lado. Pegou outro e a mesma coisa se processou. Tentou fazer algo para desviar a cabeça, o coração e alma do que tinha acontecido desde que Angélica entrou em sua vida, em virtude de uma reportagem sem importância que tentou emplacar, mas não passou de dois horríveis textos que não levaram a lugar algum, exceto virando a sua vida de cabeça para baixo.

Começo da noite, com a chuva tendo cessado, resolveu sair para caminhar e fazer uma refeição descente. Não comia corretamente desde a noite anterior quando fez uma sopa para Angélica e brigaram feio e ele consumiu duas garrafas de uísque.

Entrou numa churrascaria. Pediu o rodízio. Se empanturrar. “Chega disso e daquilo”, pensou o jornalista. Depois se fartar com carne vermelha e algumas cervejas, deixou o local e continuou seu périplo pela cidade que havia sido castigada pelo temporal da tarde. Eram nove e meia quando entrou num barzinho com cara de ser bem acolhedor. Sentou-se numa mesa ao fundo. Pediu uma cerveja fermentada no arroz e ficou bebendo, pensando em tudo o que havia acontecido. Encontrou o que parecia ser a pessoa certa, contudo, vivia numa privada com merda até o pescoço. Tinha dinheiro que não acabava mais, contudo não conseguia comprar o sossego psíquico. “Coisas da vida e devo tratar da minha, tentando colocar tudo nos eixos novamente. Se isso for possível”, ponderou o repórter.

Bebeu várias cervejas e todos que entravam no bar, estranhava a quantidade de garrafas em cima da mesa e ela lá solitário. Sem dar uma palavra. Só bebia em silêncio, fazendo uns movimentos como se estivesse conversando com alguém, mas não emitia som algum. Um cliente que estava no balcão perguntou ao garçom que o atendia: “-Estranho aquele homem ali. Você reparou no jeito dele? A mesa está lotada e ele continua a beber. Só se levanta para ir ao banheiro e mais nada”.

– Achei ele esquisitão. Às vezes olha para o fundo do copo, fixado, como se estivesse vendo alguém lá dentro. Teve uma hora que ele começou a fazer uns movimentos com a língua, parecia que estava fazendo sexo oral numa mulher. Como ainda não tinha ninguém, resolvi deixá-lo na dele.

Do nada, Márcio levantou, pediu a conta ao garçom. Ao tirar da carteira o cartão para pagar, viu o que Angélica tinha lhe dado na outra manhã. Não usaria. Não era seu. Optou por ficar como lembrança daquela loira doida que o enlouquecera com o seu repentino amor por ele. Porém, não deu conta de vivenciá-lo em virtude do passivo psíquico que carregava oriundo de traumas e sevicias sofridas daquele que a devia proteger, educar, transmitir-lhe valores morais e éticos, mas fez o contrário, transformando a filha numa bomba-relógio e uma pessoa infeliz.

Saiu do estabelecimento, segurando um litro de uísque, sem nenhum titubeio, para espanto dos fregueses e do garçom que o atendera. Pela quantidade de cervejas, Márcio capotaria antes mesmo de chegar a calçada. Caminhou lentamente até seu apartamento. Entrou, se sentou no sofá, abriu a garrafa, levando-a à boca e bebendo uma grande quantidade. Pensou em usar o celular, mas estava sem paciência para conversar com ninguém.

Ingeriu outra grande quantidade de uísque e se desmantelou no assento. Apagou. Quando voltou viu o amigo Roberto, Danisa e Fernanda ao seu lado. Estava num quarto de hospital para onde foi levado com suspeita de estar em coma alcóolico. “- O que os três estão fazendo aqui no meu apartamento? E porque estou com essas roupas estranhas? Que cama é essa? Caralho! Alguém quer me explicar o que está acontecendo? Eu morri e vocês também?”

Foi Fernanda quem tomou a iniciativa e foi direta. “-Seu filho de uma puta! Você ficou em coma quatro dias. O Roberto te encontrou inconsciente no seu apartamento. Viu que você não respondia, não dava retorno às ligações. Imaginou que você estaria com aquela dona loucaça. Mas que nada. Você estava sozinho e perto de ir a óbito. Ele entrou lá a noite, vendo a sua situação, chamou a ambulância. Os médicos que te atenderam disseram que se ele demorasse mais meia hora, hoje você estaria comendo grama pela raiz.

– O quê? Quem te disse isso?

– Os médicos, seu idiota, retardado. Não é só Deus que mata. Claro que ele dá uma mãozinha, mas você é o responsável pela sua desgraça. Não bastou as merdas feitas om aquela cadela da Márcia? Você tinha que encontrar outra e repetir a dose. Eita homem burro do caralho! Entendeu porque eu nunca me casaria contigo. Tu és muito asno.

– Roberto! Você avisou meu pessoal?

– Não! Para quê? Deixe-os em seus mundos. Devem ser contatados somente quando você tiver algo especial para apresentar. Tragédia jamais! Mas tem alguém aí fora que está num desespero só. Eu não a deixei entrar, porque sei que tem implicação direta com o que você passou naqueles dois dias antes de entrar em coma alcóolico. A Fernanda partiu para cima dela e foi difícil segurá-la.

– Quem é?

– Você não imagina?

– Não faço a menor ideia. Eu sei que estava puto da vida. Bebi não para esquecer, mas apenas para dormir e acordar diferente no dia seguinte.

– Você quase acorda é do lado de lá. O que deu em você? Tinha um monte de coisas para conversar contigo. Por que não falou comigo cara? Me ajudou com a Danisa, mas não foi capaz de segurar a própria cabeça.

Fernanda que estava sentada num sofá perto da cama, estava que não se aguentava. “- Ainda bem que ela vai pagar toda a conta do hospital. Era o mínimo que podia fazer, depois de jogá-lo sarjeta como uma laranja chupada”.

– De quem vocês estão falando.

– Da sua musa esmeraldina. A dona do mundo, ou você acha que a Márcia saiu da penitenciária lá dos confins do inferno e te fez beber feito um desesperado, achando que ela apareceria no fundo do copo?

– Angélica está pagando todo a sua estada aqui e não arreda pé da porta do seu quarto. Só não entrou ainda porque eu e a Fê não deixamos e ela aceitou a condição de só passar por aquela porta se você autorizar. Mas me diga o que aconteceu, meu amigo? É a segunda vez que tenho que te resgatar de situações complicadas.

– Meu amigo! É uma longa história e sinceramente não quero falar nisso. Apenas que ela me dispensou. Só isso. O resto com o tempo eu falarei a vocês.

– Eu estou para socar ela. Arrancar aqueles cabelos e deixá-la carequinha. Eu falei para aquela filha de uma puta lhe fazer feliz e ela te leva à beira da sepultura. Não está certo isso! Deixe o meu caminho cruzar com o dela fora desse hospital.

– Márcio! Eu deixo ou não ela entrar? Olha só! Qualquer coisa que tenha rolado em você, fiquei sabendo pela secretária dela que a mulher não consegue trabalhar. Cancelou reuniões e pediu mais prazos para projetos importantes. Seja sensato. Eu sei que tu não és vingativo.

“- Se ela entrar aqui eu vou ficar para ouvir a conversa”, disse Fernanda.

– Não Fê! Sabe como Márcio é. O assunto é dos dois e precisam resolver. Eu já tenho os meus e você os seus.

– Tudo bem Roberto, pode mandá-la entrar.

Assim que Angélica entrou, seu olhar cruzou com o de Fernanda que deixou claro o desejo de esganá-la. “- Roberto! Parabéns pelo filho. Sei que os padrinhos serão Márcio e a Fernanda, então deixe que o enxoval é por minha conta. Depois quando tudo isso acabar, preciso conversar com você sobre aquele cargo nas minhas empresas. Com a chegado do filho vai precisar de um salário melhor”, lhe informou a arquiteta se dirigindo à cama onde o repórter estava deitado para se recuperar do coma alcóolico.

Roberto e Fernanda iam saindo do quarto com a comerciária dizendo para o futuro papai tomar cuidado. Ele poderia ter o mesmo fim. “- Essa Circe é foda. Depois que acabar com o Mar, virá atrás de você. Cuidado. Seu filho nem nasceu e corre o risco de ficar órfão na barriga da mãe!”.

– O que aconteceu, meu amor?

– Nada! Acho que passei da conta.

– Como nada? Você desaparece não falou com ninguém. Se o Roberto não fosse ao seu apartamento para lhe devolver as chaves estaria morto agora. E eu sem saber de nada. Não recebi nenhuma informação sua sobre o depósito que fiz em sua conta para começar a editora. Os livros serão impressos na nossa gráfica e foi justamente isso que me chamou a atenção. Seu silêncio por mais de 48 horas.

– Como ficou sabendo?

– Rastreei você pelos seus gastos. A sua última compra foi num bar naquela noite em que terminamos tudo. Quer dizer, eu terminei mais uma vez com você. Fui lá e conversei com o pessoal e me informaram que bebeu mais de uma dúzia de cervejas e ainda pegou uma garrafa de uísque. Quando perguntei como você era e estava, te chamaram de esquisitão. Sentou no fundo do bar e não falava com ninguém. Só bebia e fazia gestos como se estivesse falando sozinho e depois começou a colocar a língua dentro do copo.

– Eu fiz tudo isso? Eu não me lembro.

Fui ao seu apartamento e estava tudo trancado. Eu não tinha mais a chave. Falei com o Roberto, mas me disse que não falava com você fazia um tempão. Procurei Fernanda. Ela quase me espancou e ainda me acusou de ter te matado e queria disfarçar dizendo que você tinha sumido. Um horror.

– Como ninguém me falava nada, tive que usar a minha rede para te achar. Minha equipe de segurança descobriu que você tinha sido levado em coma alcóolico para um hospital público. Aí soube de toda a verdade que Roberto e Fernanda me esconderam. Acho que os entendo. Eu só trouxe loucura para a sua vida. Pedi para te transferirem a esse hospital onde meu pai ficou internado até morrer.

– Por que você fez isso? Poderia ter me deixado onde eu estava.

– Eu fiz porque achei que deveria fazer e pronto! Aqui você está tendo o melhor atendimento e logo vai para casa. Eu já falei com os médicos.

– Quanto tempo eu fiquei fora do ar?

– Se o Roberto não te socorre, teria morrido. Faz uma semana que está aqui e somente hoje é que te liberaram para receber visitas. Deve ficar mais uns dois ou três dias e antes de ir embora passará por uma psicóloga. Seu quadro parece ser tentativa de suicídio. Você não tentou se matar? Diz que não!

– Não! Eu posso ser um saco de bosta, um fracassado profissionalmente, sentimentalmente, mas covarde não sou! Eu só queria beber para ver o corpo cair. Estava num calundu danado. Queria esquecer de tudo e recomeçar no dia seguinte.

– Os médicos me disseram que só vão te liberar se tiver alguém para ficar com você. Eles acham que se ficar sozinho pode tentar se matar.

– E sua viagem para a Alemanha? Como ficou? E o Amadeu e sua mãe, como estão?

– Todos estão bem. Falei que você teve um problema de saúde, mas assim que se recuperar vamos à Alemanha. Eu tinha que dizer alguma coisa. Ele está ansioso para essa viagem. Quer logo reencontrar Tarsila.

– Eu já estou me sentindo bem. Já posso ir para minha casa.

– Seu apartamento está ocupado pela Danisa e o Roberto. A casa deles está em reforma. Eles ainda não sabem, mas é meu presente por terem salvos a sua vida e me dado uma segunda chance contigo. Eu comprei a casa e mandei reformar. Fazer um quarto novo para o bebê. Eles vão gostar das mudanças que meu escritório fez.

– Diga ao Roberto e a Danira para arrumarem um espaço para mim lá. Eu posso dormir na sala. Não vejo nenhum problema. Se não der, pode ser num quarto de hotel.

– Depois a gente vê isso. Acho importante te informar que comecei a fazer terapia. Uma sessão por dia. Já cheguei a fazer duas. Mas agora é uma por dia. Ela me diz que eu preciso deixar no passado o que é de lá. Conduzir aqui o que de agora e levar para o futuro o que eu quero ter lá. Contei a ela a minha condição e também as duas vezes que tentamos transar e o transtorno que foi.

– E o que ela disse?

– Que se for ajudada pelo homem que amo, posso conseguir pelo menos equilibrar isso e focar mais no futuro. Mas tudo vai depender disso. Me disse que a minha ansiedade para ser feliz com essa pessoa pode estar atrapalhando a maior parte. Que eu preciso de calma, principalmente se esse ser me deixa serena.

Márcio ficou em silêncio enquanto Angélica relatava um pequeno fragmento das sessões a que vinha se submetendo. “- Aí eu tenho a notícia que estavas na UTI em coma por conta duma tentativa de suicídio. Pirei. Perdi o chão. Entrei em parafuso. Não sabia para onde correr. Só tinha um lugar para ir: aqui onde você estava internado, mas quando cheguei fui informado que as visitas a ti estavam proibidas, mas apenas para uma pessoa: eu.

– Quem fez isso? O Roberto e a Fernanda?

– Sim! Tentei falar novamente com a Fernanda, mas quando me viu se escondeu dentro da loja, pedindo para dizer que foi viajar para visitar os parentes. Só restou o Roberto. Esperei ele sair do jornal, explicando que precisava muito falar com ele. Não contei nada da nossa intimidade, mas disse que entendia os motivos que poderia ter levado você a tentar o suicídio, mas ele não poderia me proibir de te ver. Eu não conseguiria ficar em pé se isso acontecesse. Expliquei que há vários dias vínhamos bebendo e tivemos uma briga feia, mas eu não achava que as consequências seriam a tentativa de você tirar a própria vida. Estou aqui desde manhã, esperando para ver se eu tinha um minuto contigo.

Nesse momento a enfermeira chegou dizendo que precisava dar banho no paciente e medicá-lo. Ainda corria risco de morte. “- A senhora pode esperar lá fora por favor? Assim que ele estiver pronto a aviso”.

A arquiteta se retirou e ficou sentada no banco enquanto Márcio tomava banho, mas de repente entrou dois médicos e outra dupla de enfermeiros, saíram com ele as pressas. Foi o suficiente para Angélica entrar em parafuso. A enfermeira saiu e ela quis saber o que tinha acontecido com o amigo dela. “- Crise de pressão. Terá que passar a noite em observação. Amanhã a senhora vem e conversa com os médicos. Não creio que seja nada grave”.

– Para onde o levaram?

– Acalme-se minha senhora. Sente-se e espere. Vou ver como está e depois lhe informo.

Passaram-se uma hora e nada da enfermeira voltar e Angélica estava aflita. Roberto chegou apressado e quando a viu, fechou a cara. “- Eu te disse que não era para você vir vê-lo. Mas não tem jeito. Se ele morrer a culpada será você. E o que vou dizer à mãe dele?”.

Quando Roberto e Angélica, já sem chão conversavam, a enfermeira voltou dizendo que conseguiram controlar a pressão dele, mas teria que passar a noite em observação. “- Vão para casa e se tivermos outras informações ligaremos para os parentes”.

O médico chegou e foi perguntando o que cada um deles era de Márcio. Angélica se apressou em dizer que era noiva dela e Roberto era amigo. “- Se vocês amam esse homem, não deixem ele beber mais nada. Se seguir isso à risca, viverá ainda por um bom tempo, mas se continuar nessa toada, a jornada será curta”.

Assim que saíram do hospital, Roberto inqueriu Angélica sobre ter falado que era noiva de Márcio quando tinha chutado ele. “- Roberto. Estou toda confusa, mas quero realmente me casar com ele. É que tem muitas coisas a serem resolvidas antes. Foi por conta dumas dessas coisas que brigamos feio. Mas assim que o médico lhe der alta, o levarei para casa”.

– Se ele quiser e me dizer isso, tudo bem. Não vamos forçá-lo a fazer nada.

 

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