Gilberto Barbosa dos Santos
Enquanto o hábito perdurar, mesmo que existam leis que indicam haver inconstitucionalidades em centenas de milhares de atos governamentais, sejam nos Legislativos ou nos Executivos espalhados pelas mais de cinco mil cidades brasileiras, a democracia ainda deverá ser debatida, objetivando seu aperfeiçoamento. Isso deve ser feito em virtude de a cidadania brasileira ser manquitola, ou melhor, incompleta em função de os cidadãos entenderem que a democracia é delegativa e não participativa. No primeiro caso, delega para outrem a defesa de seus interesses, principalmente no Legislativo e no Executivo. Por exemplo, o cidadão que escolhe um candidato, o que almeja com tal opção? Uma pauta conservadora? E o que é ser conservador e por que se defende tais ideais? A interpelação pode ir mais longe ainda quando se fala de extremos, ou seja, o desejo do eleitor é ter na administração de seu país um governante que tenha posturas extremas no que diz respeito às suas filosofias de vida. No meu labor, na condição de cientista social, escuto muitas vociferações sobre neoliberalismos, liberalismos, capitalismos, estados mínimos, mas não vejo com a mesma proporção explicações de como isso funciona aqui, no Brasil, país de ordem estamental que não solucionou os problemas de desigualdade social provocados por mais de trezentos anos de escravidão. Ai encontro alguém que se diz conservador. Quer conservar o quê? A desigualdade social e econômica?
Posto isso, meus caros leitores, fico com o seguinte questionamento: como ser liberal numa sociedade que não tolera concorrência, que sempre dá um jeitinho de privilegiar aqueles que lhes carregam as valises e douram suas coroas enferrujadas que lembram mais a velha monarquia carcomida pelos vícios e hábitos. Acrescente-se a essa tétrica narrativa a de uma certa representante da coletividade que se recusa a quebrar a extirpar um nefasto hábito para a administração pública. A partir desse pressuposto é que tento compreender como é ser liberal e conservador num país que ainda respira os ares fétidos emitidos pelas relações entre escravagistas, homens livres e escravos? Parece-me que tais admoestações fazem com que aqueles que me leem semanalmente aqui e em meu site www.criticapontual.com.br, reflitam sobre o ser em si das coisas que propalam e defendem em suas conversas e posteriormente depositam o saldo nas urnas, isto é, o desejo extremo de que tudo volte a ser como era na Colônia e depois na Monarquia época em que o senhor, detentor do direito de propriedade açoitava o negro e violentava a escrava, quando esta já não tinha sido agredida pela mulher do escravagista por invejar a beleza da cativa. Muitos de vocês podem me dizer que tudo isso ficou em nosso passado, pois o tempo não existe mais, contudo a prática permanece. Um exemplo claro pode ser encontrado em duas importantes obras do pensamento social brasileiro; Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1990-1987) e O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, de Darcy Ribeiro (19220-1997). Acredito que esses e outros trabalhos sociológicos como a Integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes (1920-1995), podem auxiliar meus leitores a compreenderem o conteúdo desta minha prosa na manhã desta quinta-feira neste jornal.
Entendo que todo aquele que defende extremos é adversário contumaz da democracia e das liberdades individuais, portanto, desconhece os preceitos dos direitos civis. E, ao se posicionar desta forma, recheia seus discursos com elementos que proponham a eliminação do oponente. Isso não significa que a exclusão seja do ponto de vista físico, mas pode ser no âmbito social, dificultando o progresso de quem pensa diferente. “O melhor a fazer é rechaçá-lo completamente e ficar apenas com os bajuladores que aplaudem tudo e a todos como se estivessem no teatro romano batendo palmas a espera do seu pão no final do espetáculo”, pensa a mente obtusa. Machado de Assis (1839-1908) dizia isso quando falava das arraias que se agarravam aos muros dos castelos medievais. Foram se os prédios medievalistas, mas permaneceu o hábito. Meus caros leitores, é só recorrerem ao pequeno capítulo IV Ideia fixa presente no romance Memória póstuma de Brás Cubas e entenderão o que estou a lhes escrever nesse dia. Entretanto, deixando os escritores para outro momento desta narrativa, pergunto-vos, leitores que me acompanharam até aqui: o que há entre as extremas direita e extrema esquerda? Deveria haver o bom senso, a democracia, a liberdade, contudo, conforme disse o ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Ayres Brito em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, a sociedade brasileira está imersa numa enorme extrema ignorância. Posto isto, a pergunta que fica é: como sair dessa situação? Se levarmos em conta o que indiquei no começo desta reflexão, a cidadania por aqui anda coxa, como aquela outra personagem de Memórias póstumas. Resta trabalharmos para que ela se aprume. Sendo assim, creio que seja necessário, para fins explicativos, que eu trabalhe um pouco o que entendo por cidadania plena e o que adviria daí: uma democracia participativa.
Sem mais delongas, passo a tratar dos direitos que enfocam o exercício pleno de uma cidadania numa sociedade em que seus moradores compreendem muito bem o sentido das leis, ou seja, não para criar privilégios, mas para equiparar todos, conforme diz a Constituição Brasileira: todos os moradores da Terra de Santa Cruz são iguais. Mas até que ponto essa igualdade acontece para além da letra fria da lei? Eis a questão emblemática: se a hermenêutica separa plebeus dos nobres encastelados na burocracia brasileira que cresce associada com a plutocracia – conforme José Martiniano de Alencar (1829-1877) nos apresenta na série de escritos intitulados Cartas de Erasmo ao Imperador –, significa que nem a República ou outro movimento significativo como aquele que objetivava dar ao país uma nova Constituição, chamada posteriormente de “Cidadã”, foi capaz de eliminar as ordens estamentais herdadas da Coroa Lisboeta imposta à Colônia a partir de 1808. Desta forma, como pode-se falar em cidadania, se a lei tem diversas nuanças, protegendo uns e sentenciando outros pelo simples pertencimento étnico, econômico e social? Meus leitores podem até dizer que não é bem assim, todavia, terão que apresentar não só palavrórios, mas situações concretas em que a lei não pendeu para o lado do pertencimento estamental e para o famoso jeitinho. Creio que até existam casos aqui e acolá, contudo, pelo tamanho e do nível em que se encontra a desigualdade social e suas razões, os fatos podem ser compreendidos como isolados.
Seguindo essa observação, fico cá com algumas inculcações, meus caros leitores, com fulcro na história ressente desta Nação. No começo da década de 90 o ex-presidente Fernando Collor de Mello (PRN) foi expulso do Palácio do Planalto por conta de atos corruptivos. Tempos depois a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) teve o mesmo destino por conta das famosas “pedaladas”, mas agora há elementos fundamentais que o atual mandatário, há um ano, vem dificultando as ações visando o combate à pandemia do coronavírus, inclusive querendo forçar a sociedade a usar um medicamento que a ciência já comprou não ser eficaz na eliminação das consequências da doença que levou mais de 200 mil brasileiros ao sepulcro. Não seria o momento de se iniciar um processo no Congresso Nacional ou os casos de Dilma e Collor foram mais graves do que esses que os principais jornais do país e do mundo afora e nos telejornais televisivos vêm apresentando à sociedade brasileira e globalizada? Esse que vos escreve pode estar completamente equivocado, quem sabe, vendo um outro mundo, morando num outro Brasil. Se for isso, peço a vocês que não se deem ao trabalho de tentar responder essa última interpelação, bem como as que antecederam a esse parágrafo final desta singular reflexão. Mas de uma coisa eu tenho certeza: o ser humano e a vida em si valem muito mais do que qualquer perua Elba ou as pedaladas fiscais. Contudo, como estamos numa democracia, provavelmente haverá aqueles que pensam diferente, inclusive distorcerão as leis para que elas sirvam em suas visões extremistas, sejam elas de direta ou de esquerda.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.