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Depois de horríveis pesadelos, entre eles um, em que um homem de cuecas dava lhe um carreirão porque flagrou Márcio olhando as calcinhas da mulher no varal, o jornalista acorda com barulhos de trovões e muita chuva. Olhou pela janela, o tempo parecia ter escurecido aquela manhã de domingo. De repente levou a cabeça sentindo fortes dores nas têmporas, sinais indicativos de que algo não ia bem com seu fígado. “Também pudera, bebi além da conta, misturando destilado com fermentado. Só podia dar nisso mesmo”, pensou o repórter.
Com muita dificuldade, caminhou até a cozinha, desejoso por um café, de imediato lembrou que morava sozinho e que se quer tinha uma namorada. O jeito era sair e tomar café numa padaria, porém, um trovão o fez olhar novamente pela vidraça e ver que sair era impossível. O negócio então era improvisar ali alguma coisa para comer.
Encontrou um pouco de café, dois ovos na geladeira e uns pedaços de presunto que pareciam estar ali já há um mês. “Não importa, dá para comer e ver se melhora essas dores e essa tontura toda”, acreditou Márcio, como em promessa de bêbado que, durante a ressaca, promete nunca mais colocar uma gota de álcool na boca, mas no dia seguinte já está namorando novamente a garrafa!
Devorou a gororoba que fez. Mesmo sentindo náuseas, conseguiu encher a barriga. Depois a preocupação era o que fazer naquele domingo chuvoso. Ir ao encontro de Amadeu, nem pensar. Ele não estaria no bar, e como não sabia onde o doidivanas morava. Seria impensável encontrá-lo naquela manhã chuvosa. O boteco que ambos frequentavam, com propósitos diferentes, estava fechado, portanto, teria que sossegar em casa.
Pensou em ler um livro, mas sentiu náuseas e correu para o banheiro, deixando no vaso sanitário o café da manhã e as sobras do almoço do dia anterior. Limpou-se. No retorno pegou na estante o Livro do desassossego, do Pessoa. Abriu bem no trecho em que o narrador diz não saber quais instrumentos tange e range, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro dele. Sentou-se na poltrona e passou a concatenar o que tinha acabado de ler com o que vinha lhe ocorrendo desde o começo da semana.
Aconchegou-se melhor na poltrona e em menos de cinco minutos estava dormindo novamente. Desta vez sonhou com umas mulheres correndo atrás dele, gritando palavras que indicavam ser ele um matricida. Foi alcançado por elas e aos berros se dizia inocente. Márcio foi despertado pelos sons dos próprios gritos, o que o deixou mais assombrado ainda! Olhou para o relógio, os ponteiros marcavam meio-dia, mas ainda meio zoado do sono acreditou estar vendo um pênis ereto.
– O que é isso!, perguntou-se o repórter. – Um pênis no meu relógio? Antes de responder suas próprias perguntas, percebeu que estava com os olhos embaçados, daí a dificuldade em ver os ponteiros corretamente. Mas daí a ver o aparelho genital masculino, seria algo surreal.
Voltou ao banheiro, se banhou e como o temporal lá fora parecia ter diminuído, resolveu sair para almoçar e dar umas voltas pela cidade. Poderia ficar vagando como um flanêur por praças, ruas e avenidas que formavam aquele município interiorano, embora não tão grande, mas muito acolhedor.
Depois da chuveirada, já está se sentindo melhor, mas sabia que o almoço deveria ser bem leve, do contrário a digestão poderia ser complicada, com reações zangadas do fígado. Saiu do prédio e, como sempre fazia, caminhou a pé de casa até o restaurante que fica umas três quadras do edifício onde morava.
Entrou no estabelecimento e, como das outras vezes, notou a cor do tapete de solo, reparou nas roupas dos garçons e todos estavam ordenadamente como mandava o figurino. Dirigiu-se a sua mesa de costumes, contando os passos, fez o movimento de sempre e se sentou. Esperou, pensou, esperou, pensou e se levantou e foi ver o cardápio. “Vou começar pelas saladas verde escura. Ótima opção para fazer amizade com o meu fígado. Ele foi muito judiado ontem a noite”, pensou Márcio. “Também não vou tomar cerveja, hoje vou de suco. Acho que de Abacaxi com hortelã com açúcar mascavo. É isso. Excelente!”
Voltou à mesa, pediu ao garçom o suco e começou a degustar as hortaliças e as memórias dos sonhos e pesadelos voltaram. Imediatamente sua mente se deslocou para a figura de Amadeu jogando xadrez com as damas imaginárias vestidas de branco e preto. “Acho que a noite vou dar uma passada lá no Bar da Net, quem sabe não o vejo, estando ele sóbrio”, imaginou Márcio dando um leve sorriso para o prato repleto de salada.
– Aqui está o seu suco!
– Está faltando uma coisa!
– O quê?
– O açúcar mascavo. O suco está mais branco que a sua cara. Com aquele açúcar, o liquido fica meio escuro, dando um sabor de rapadura.