Pessoas gramaticais e o verbo politicar

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Nesta primeira reflexão de 2021 – iniciado sob o auspício da pandemia que varre o mundo – pretendo dialogar contigo, meu caro leitor, a partir das perspectivas da linguagem. Mais especificamente, as chamadas pessoas gramaticais: eu, tu, ele [a]: singular; nós; vós, eles[a]: [plural]. O escopo é tentar entender porque a primeira pessoa do singular pode ser subsumida pela terceira do plural e em que circunstâncias isso acontece: principalmente quando se tem uma derrota ou se comete um equívoco eleitoral. É muito comum quando um governante atropela a democracia, passa por cima das leis, tenta cooptar descaradamente o Legislativo, o eleitor se distancia do seu voto ao afirmar que jamais teria feito uma escolha dessas. Em 1989, o país elegeu um político que usou como slogan “caçar marajás”. Todo mundo sabe no que deu, entretanto, já no final da sua desastrosa gestão, não tinha mais um brasileiro que o defendia. Foi como se o ex-presidente tivesse conquistado votos do além ou dos mortos. Posto isto, fica-me a seguinte interpelação: como e por que os votantes daquele final dos anos 80 desapareceram enquanto Fernando Collor de Mello era expulso do Palácio do Planalto?

Passado o processo de impeachment do político alagoano, assumiu o seu vice, o emedebista Itamar Franco (1930-2011) que criou as condições estruturais para a chegada do Real, moeda criada a partir da URV (Unidade Real de Valor) que tinha, entre outras funções, eliminar a inflação residual que poderia contaminar os propósitos do plano conduzido pelo ministro da Fazenda e futuro presidente Fernando Henrique Cardoso. Este ficou no cargo de chefe do Executivo Federal por dois mandatos, após conseguir passar no legislativo federal uma Emenda à Constituição de 1988 que permitia a reeleição dos presidentes das Repúblicas a partir da aprovação da PEC. Objetivo neste parágrafo, tão somente recuperar alguns fatores emblemáticos da história recente do Brasil sem, no entanto, colocá-los na condição de pessoa gramatical, ou seja, um “eu” que se transforma num “nós”, contudo, o referencial auxilia o indivíduo social que se propõe a compreender o presente desta Nação a partir do seu pretérito não muito distante. FHC e seu PSDB deixaram o poder para a agremiação petista encabeçada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, seguindo o rito sacramentado pela emenda constitucional, ficou dois mandatos na presidência, tendo feito a sua sucessora, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Aqui, vos coloco uma interpelação, meus caros leitores, a ex-mandatária gaúcha chegou ao cargo máxima da Nação por quais motivos? Ela se entronizou no cargo por livre espontânea vontade? Ou por ser herdeira do trono brasileiro, numa espécie de Monarquia republicana? Creio que ela foi parar no Palácio do Planalto por intermédio dos votos, todavia, bastou a carruagem macroeconômica, escudada num populismo econômico, descarrilar para que ninguém tivesse votado nela. O interessante a ressaltar aqui é que ela também foi reeleita, com discurso desenvolvimentista, contudo, bastou assumir o cargo em seu segundo mandato para adotar medidas monetaristas, fazendo com que o dinheiro, enquanto mercadoria ficasse mais caro, sem que a produção fosse alavancada. Meus caros leitores, se ainda estiverem até aqui neste momento de minhas enunciações, creio que basta uma análise dos discursos proferidos por ela, naqueles tempos, para confirmarem o que estou dizendo e olha o “pibinho”. Num primeiro momento do descarrilamento da locomotiva, o “eu”, personificado nas aquisições de mercadorias e outros penduricalhos com pagamentos a perder de vista – bastava a prestação caber no bolso do trabalhador, se transformou num “tu”, passando para “eles” e aquele amontoado de vociferações: “o seu partido”, “a sua presidente”!

Deixarei o ontem para depois e me concentrarei no agora. Onde estão os 57 milhões de “eus” e “sins” de outrora? A interpelação reside no fato de que o país começa um novo ano com velhos problemas. Claro que não começaram em 2019, como muitos podem dizer, inclusive quererem culpar um Legislativo e um Judiciário pelos fiascos e mazelas que acometem a Nação, bem próprios daqueles que desejam um autocracia e poderes sem limites ao governante, desde que este garanta a turba, pão e segurança, como dizia o romancista russo Fiódor Dostoievski (1821-1881) sobre a Rússia feudal, mas que se adapta muito bem ao Brasil nestas primeiras décadas do século XXI. Uma rápida análise mostra aos interessados em entender “que país é este” – célebre frase da banda Legião Urbana – que a Nação que terminou 1889 como República ainda não deixou a Monarquia e as ordens estamentais que escudavam aquele regime. Foi-se a coroa, mas se manteve os vícios e hábitos, sustentados por um “eu” que ainda chancela o tal “você sabe com quem está falando”, conforme apresenta em livro o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta.

A ordem estamental persiste no verbo politicar. Aqui recupero uma pequena análise que fiz por ocasião das eleições municipais do ano passado, segundo a qual os jovens não querem abraçar esse verbo justamente pelo que ele tem de mais podre e nocivo à sociedade. Manter o que é arcaico ainda atuando. E isso pode ser enxergado nos partidos, legendas e acordos para presidir Câmaras de Vereadores nas mais de 5 mil cidades espalhadas pelo país afora. Mudam-se os nomes, contudo, se perpetua as velhas práticas dos demagogos caciques de definirem quem vai ocupar o trono no momento. Enquanto o cetro é passado para outras mãos a cada quatro anos, a patuleia fica do lado de fora dos Palácios e Paços municipais aguardando as migalhas serem jogadas do alto do trono, conforme indica o célebre escritor brasileiro, Machado de Assis (1839-1908). Entendo que o “nós” da política funciona apenas nos tempos eleitorais, depois é um tornar-se “eu” ufanado por uma corte de bajuladores, a exemplo da prática instituída por Dom Pedro II (1825-1891) que abria todas as manhãs de sábado uma das residências imperiais para receber o povo. Mas que povo era ouvido pelo monarca? A prática ficou conhecida como “beija-mão” e perdura até esse início de século XXI.

Como mudar o quadro, meu caro leitor? A interpelação é dirigida para o “eu” que ainda permaneceu comigo até essas linhas, pois sei que o “nós” só existe para responsabilizar o coletivo pelas mazelas sociais, como por exemplo, os descalabros e acintes, apropriações indébitas feitas pela casta de políticos associada aos plutocratas de plantão. Esse olhar fica evidente, quando o eleitor não tem a hombridade de afirmar que errou ao escolher este ou aquele governante. Prefere se esconder no “outro” coletivizado. A cidadania para funcionar, requer, de cada um, a sua responsabilidade no lido com a coisa pública. Mas por que será que o indivíduo se coloca na condição de representante do povo? Interessante notar que entra mandato e sai mandato, ainda a estrutura arcaica e caquética é mantida. Isso significa que é preciso haver um aprendizado político para que os educandos entendam muito bem sobre o verbo politicar, que consta no final do título desta singela reflexão. Como seria usar esse verbo nas seis pessoas gramaticas? E o que significa politicar? Parece-me que aqui a coisa pode desandar, na medida em que o sujeito social começa a entender o que significa Política. É comum ouvir-se o brado de que Política, Futebol e Religião não se discute, todavia, mata-se, humilha-se, ofende-se, agride-se por conta dessas três questiúnculas, mas ainda assim o cidadão se recusa a debatê-las, falar, ouvir e depois dizer o que pensa sobre tais temáticas. Por que será que é tão difícil conjugar o verbo politicar e seus congêneres? Creio que o momento pandêmico é para refletir sobre a política e a religião, pois vidas são ceifadas por conta dum vírus e o negacionismo que impera desde quando a “peste” aportou no Brasil usando um dos vários aeroportos espalhados pelo Brasil afora.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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