Gilberto Barbosa dos Santos
Por que a ciência está sendo tão atacada neste começo da segunda década deste século XXI? Por que as pessoas que atuam nesse segmento são vilipendiadas diariamente, satanizadas por sujeitos que desconhecem o mundo da pesquisa e como esse universo é benéfico para o progresso da humanidade, seja em que área for? Essas interpelações podem ser seguidas de outras, como por exemplo, a que pede explicações por que, de certo modo, a humanidade está retrocedendo ao período medievalista? Não vou adentrar no campo da nomeada e segmentar o fenômeno, pois nós cientistas sociais analisamos situações que se repetem socialmente, portanto, o que se observa aqui no Brasil é uma reprodução da escala global de massacre ao campo científico. Mas também não se pode descartar a hipótese de tudo não passar de um teatro político, objetivando chegar ao poder, como aconteceu aqui no ano passado, imitando situações ocorridas mundo a fora.
De um modo geral, se o meu leitor retroceder no tempo, vamos dizer, na época medieval, ou melhor na Idade Média, cujo percurso vai mais ou menos do século VII – fim do Império Romano – até o século XV – surgimento das grandes navegações e questionamentos dos princípios norteadores da dominação católica – observará que, hoje como ontem, contudo, reservada as devidas proporções, o universo da ciência é atacado, amordaçado em nome de uma filosofia que não dava mais conta de responder aos anseios da humanidade, sendo que as pesquisas naquela época já colocavam em descréditos algumas concepções teologais escudadas em determinados pensadores gregos, como Aristóteles e o seu motor fixo como gerador da vida. Naqueles momentos, a ideia teocêntrica pautada em visões de mundo geocêntricas e antropocêntricas, era questionada por pesquisadores e pensadores, alguns deles erigidos do seio da Igreja Católica, com provas robustas de que o orbe terrestre era e continua sendo mais um dos corpos estelares que gravitam em torno de estrelas com massas maiores. Isso é fato e a ciência já provou milhares de centenas de vezes.
Na esteira desses questionamentos, a história registra também mudanças no campo da teocracia medieval com Martinho Lutero (1483-1546), um monge agostiniano que mudou, não somente a forma como o homem se interligava com o Ser Supremo, mas sobretudo a maneira como os sujeitos sociais se relacionavam entre si e com a própria fé. É interessante notar que o criador do luteranismo como maneira de viver a vida, enfatizou que não precisaria haver intermediários entre o ser e o Senhor, bastando as Sagradas Escrituras para que a religação entre o homem e o seu universo sagrado fosse estabelecido, integrando-o à sua religiosidade. A partir desse princípio, Lutero estabeleceu as bases para que o indivíduo pudesse interpretar os cânones que davam conta da relação humana com o divino. De imediato posso dizer que para que esse processo se solidificasse seria necessário investir em educação e no trabalho como forma de agradecer a vida. Pois bem, se o meu leitor voltar àqueles dias, entenderá que não existe nada, nenhum preceito que satanize a ciência, já que a investigação, o questionamento advém da aquisição do conhecimento. Todavia, passados mais de 500 anos desde a promulgação das Teses contra a Indulgências, o que se observa é a demonização do conhecimento, da busca pela verdade através da pergunta, da interpelação, da pesquisa, da investigação cientifica criteriosa e racional. Nós, os cientistas, desvinculados de qualquer credo teocrático ou chavões ideológicos, compreendemos que há algo de muito nevrálgico acontecendo no momento em que a globalização é questionada por seres demagógicos e seus asseclas, portadores de um suposto saber teocrático, sociológico, econômico e antropológico.
Na condição de cientista social que analisa a sociedade contemporânea e também a pretérita, entendo que esse processo ocorre por várias razões. Primeiro, porque, ao expandir-se dentro da globalização, o capitalismo eliminou postos de trabalhos e algumas condições sociais ossificadas desde o fim da II Guerra Mundial a partir do Welfare State, criado depois de encerrado o conflito bélico para, entre outras coisas, reconstruir o velho continente devastado pela artilharia nazifascista e também dos aliados. Esse mecanismo criou uma classe média que sustentou uma espécie de democracia em que não havia contestação, pois tudo acontecia dentro dos princípios norteados por uma forma de se fazer política, escudada na Guerra Fria [EUA versus URSS]. Portanto, o escopo daquele momento era manter a patuleia alimentada e com as consciências entorpecidas de ilusões. É possível compreender que é desse período a criação de muitos penduricalhos que facilitaram a vida do homem na Terra, mas também a entorpeceu de mercadorias que seriam descartadas no dia seguinte, inclusive o próprio semelhante. Como nos instrui Eric Hobsbawm (1917-2012) em sua obra Era dos extremos: o breve século XX [1914-1989], o mecanismo começa a degringolar com a queda do Muro de Berlim em 1989. Posto isso, na condição de cientista social, o que está muito claro em minhas observações e pesquisas empreendidas no sentido de compreender a crise da democracia, dita liberal, é que esse modelo fundado no fim do conflito bélico na segunda metade do século passado, esgotou-se e, como dizia o meu professor de Teorias da Globalização na UNICAMP, Octavio Ianni (1926-2004): “e daí?”
Essa interpelação era feita no final de todas as aulas e é bom recordar aqueles tempos, pois fazia cinco anos que o muro da vergonha tinha sucumbido e o pensador norte-americano Francis Fukuyama acabara de lançar o livro O fim da História e o último homem. Ele afirmava, entre outras coisas, que o capitalismo havia vencido e a história teria chegado ao seu final, pois Karl Marx (1818-1883) dizia que a luta de classes era o motor da história. Passados 25 anos daqueles dias, o capitalismo vive em crise, inclusive a de 2008 que solapou muitas finanças, corroeu muitos empregos, desconcertou muitos homens financistas e suas arrogâncias e certezas na eternidade daquela ciranda financeira, ou melhor, como dizia Ianni, do Casino Global, a roleta que se internacionalizava sempre em busca de lucros robustos para seus acionistas. Como sempre tenho afirmado, o Capitalismo é um sistema muito novo: não tem ainda 200 anos e está numa de suas mais emblemáticas fases: a da globalização das pessoas e as transformações de sujeitos sociais em mercadorias e agora, surge outro fenômeno que, nós cientistas sociais, precisamos nos ocupar: a migração virtual, fruto da fragmentação das relações no mundo do trabalho, criando o cybertrabalho. Desta forma, é importante reiterar aqui as aulas ministradas pelo sociólogo Ricardo Antunes na mesma UNICAMP, encontros dos quais pude participar. Neles a tônica das discussões era o fim do trabalho como se conhecia até então por conta das mudanças no mundo tecnológico, conforme Marx já havia apontado em sua obra O Capital. Domenico De Masi, cientista social italiano explicava – em um seminário internacional em Marília – que, com o avanço tecnológica, havia mais tempo para o homem investir em outras situações como por exemplo o lazer, nas quais seriam abertas novas possibilidades de emprego. Em sua visita a Penápolis, em meados de 2018, o economista e professor da UNICAMP, Márcio Pochmann fez o alerta: o operário que era conhecido até a década de 90, não existe mais, portanto, o mundo do trabalho mudou e o que fazer com o tempo ocioso, eis o desafio lançado por De Masi.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.