Utopias e outros lugares desejados

 

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Imagine, meu caro leitor, qual seria a sua saída caso flagre a humanidade à beira do precipício, tendo à disposição apenas doze horas para apresentar uma solução objetivando evitar o completo colapso do ser humano? Sei que a interpelação é complexa, pois antes de dizer que se deve fazer isso e aquilo, é necessário um coerente diagnóstico sobre os caminhos que o homem percorreu para chegar a esse ponto de tombar diante do próprio ego. Eu aqui do lado de cá da escrita fico tentando entender como foi possível as pessoas voltarem suas mentalidades para a Idade Média conhecida como Idade das Trevas em oposição à Luz [luno: conhecimento]? Creio que para tirar a humanidade de onde ela se encontra no momento, será necessário tentar, minimante, responder essa pergunta. Claro que muitos dos que me acompanham semanalmente aqui nessas publicações, entendem que sempre procuro não dizer o que é certo ou errado, mas apenas busco compreender os motivos, as causas que levam a sociedade a vivenciar tais problemas. Há outros que não apreciam muito o retorno ao passado colonial, por considerá-lo distante e sem espaço para apresentar soluções às questões postas no presente. Se esse segmento estiver com a razão, então, me parece inútil apontar que a manutenção de uma certa mentalidade medieval como responsável por ter levado a humanidade à beira do colapso ético e moral.

Mas, eu tenho, como dizia um certo poeta, a crença de que há caminhos que possam colocar o homem no rumo do equilíbrio, da harmonia, do amor e do desenvolvimento de regras de sociabilidade que visem diminuir o nível de desigualdade social, quem sabe até o desenvolvimento de uma ética racional de solidariedade. Dito de outra forma: possuo um certo gosto pela utopia, isto é, que há em algum lugar no futuro desse mundo material uma alternativa para suprimir muito das mazelas do presente. Não vou dizer que essa jornada pode ser construída através das relações políticas, mas também não creio que fora dela seja possível fazer mediações buscando alternativas para o caos da atualidade. Se o meu leitor achar que a política e quem vive dela podem indicar soluções, precisa entender que sem uma participação efetiva nada é possível e que não existe solução fora da democracia, portanto, nada de imaginar que autocratas e suas oligarquias milicianas vão apontar o caminho, pois estes estão apenas interessados em suas realizações pessoais e para que isso seja possível aliam-se aos plutocratas que não têm ideologia alguma, apenas o desejo de se enriquecerem a partir das relações delituosas com os cofres públicos. Sendo assim, aquela música do Raul Seixas, segundo a qual não adianta matar mosca, pois virá outra no lugar da finada varejeira, tem fulcro aqui, indicando que não basta exterminar os insetos, é preciso sobretudo eliminar as fontes que os atraiam, isto é, a podridão ou os materiais em decomposição que grassam aqui e alhures.

Eu cá do meu lado posso fazer como o pensador Immanuel Kant (1724-1804) e antecipar o meu passeio belo bosque da utopia, ou melhor, vos apresentar, meus caros, as minhas ideias utópicas, e chamar aqui o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e uma das obras clássicas de seu arcabouço teórico: O contrato social. Em linhas gerais, ele diz que os homens nascem bons e que a sociedade os corrompe, bem como o advento da propriedade como elemento fundamental para estabelecer a desigualdade entre os homens. Entender essas questões é fundamental, todavia, se isso é fato, quais caminhos a humanidade deve percorrer para que tais mazelas sejam eliminadas? Interessante notar que Rousseau indica que a educação é a saída e Kant constrói seu pensamento a partir dum livrinho designado como Fundamentação para a metafísica dos costumes. Uma análise no título permite uma significativa reflexão começando pelos “fundamentos”, ou seja, os alicerces que poderão, num futuro, suportar a construção, o prédio ou até mesmo o corpo físico, já que a temática é o homem em si, não do ponto de vista individual, mas sim do indivíduo coletivizado, ou seja, aquele que de fato o é!

Se a presente reflexão diz respeito à base, então, deve-se buscar do que é feita a essência que constitui esse sujeito que se torna social na medida em que se sociabiliza, usando para isso os fundamentos éticos e morais recebidos, não da sociedade ampla, mas sim da primeira que conhece: o ambiente em que cresce, isto é, a casa e as pessoas com quem convive nessa estrutura material. Há quem acredite que uma tapera, uma palafita, um barraco numa favela pode ser um criadouro de personalidades não aceitáveis em contextos de relações mais globais. Mas o que dizer de sujeitos que tendo tudo para serem pessoas que se relacionam, através da prática racional de solidariedade, não o fazem? Como se pode pensar homens que ossificam a ideia do “meu pirão primeiro”? Eles estão instalados onde? Nos casebres espalhados pelo Brasil afora ou em castelos, mansões, luxuosos apartamentos e palácios governamentais? Como podem ver, caros leitores que me acompanharam até aqui, responder a interpelação feita no começo desta nossa conversa, requer conhecimento dos fundamentos que fazem o indivíduo individualizado ser o que é e, é claro, reprodutor e produtor das significâncias e insignificâncias sociais e seus respectivos sentidos. Desta forma, é possível entender que a particularidade que forma o tecido humano é a principal responsável por colocar a humanidade no precipício em que se encontra no presente.

Para me manter com o pensador do Iluminismo alemão, passo agora a questão da metafísica. A exemplo do mundo literário e linguístico, a palavra é composta por dois significados que podem ser lidos distintamente, mas para a presente reflexão é importante ser entendida de forma complementar. Meta é a ideia de algo que está fora, por exemplo, metaficção recurso usado por exemplo por Machado de Assis (1839-1908) em seu romance Dom Casmurro quando este chama o leitor que está aqui fora e não dentro da enunciação. Portanto, Meta significa fora e atrelado ao físico, significa o que está fora do universo físico, concreto. Desta forma, metafísica é a discussão, em linhas gerais, sobre o ser em si, mais especificamente sobre os predicativos que dão sentido aos sujeitos, ou melhor, seus adjetivos, cujos objetivos foram questionados pelo filósofo grego Sócrates, usando a ironia e buscando a maiêutica. Então, o desejo de Kant era tratar dos fundamentos do que não estão nos sujeitos corpóreos, mas os modelam enquanto entes sociais. Daí o título Fundamentos para a metafísica. Acrescente-se a esse os costumes que são hábitos, portanto, podem não ser necessariamente imanentes aos sujeitos, como por exemplo, a fome que é uma condição biológica. Desta forma, escravizar quem tem fome não é condição inata do ser em si, mas um hábito construído socialmente. Sendo assim, passível de mudança através do que Rousseau indica: a educação. Resta saber qual é a educação de que ele fala e a que é ofertada aos homens através do Estado que o faz mediante arrecadação de impostos, taxas e tributos. Enfim, no caso brasileiro é matéria corrente que a nobiliarquia, a chancela, o sobrenome, a etnia para não dizer a condição chancelada pela tonalidade da pele diz muito mais do que conhecimento. Esse é mero detalhe diante do potente “ele é filho de fulano, beltrano”, como era corriqueiro na Colônia e depois na Monarquia que a República não conseguiu eliminar, pois precisava acomodar a nobreza falida desde a expulsão de Portugal pelas forças napoleônicas. Passou-se todo o século XX e já se adentrou à terceira década do Terceiro Milênio e os vícios monárquicos ainda permanecem dando as cartas e ditando as regras simbólicas por aqui. Então, meu caro leitor, como fica o pensamento medievalista que ainda vigora nessas paragens? Pensemos, eu e você e quem sabe possamos juntos encontrar uma saída. Refletir sozinho está difícil!

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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