Gilberto Barbosa dos Santos
Não preciso nem dizer: o mundo está passando por sucessivas tragédias naturais, entretanto, a mais caótica é a provocada pelo próprio ser humano que anseia um dia ser chamado de humano. Em minha graduação em Ciências Sociais estudei um dos mais complexos antropólogos – para alguns – da contemporaneidade: Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Segundo ele, quando a humanidade aportou aqui na Terra, a natureza já existia e o homem vai embora, expulso pela sua própria ganância, e ela continuará. Antes de prosseguir em minha primeira reflexão pós-carnaval, penso que cabe umas linhas, mesmo que sejam mal traçadas, sobre esse importante francês que participou da missão que criou a USP (Universidade de São Paulo) no começo da década de 30 do século passado, tendo inclusive dado aulas em seus primórdios.
Para entender, mesmo que de forma lacônica, o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss é preciso deixar o campo das Ciências Sociais e se enveredar pelo universo da linguística, do Círculo de Praga, de Louis Hjelmslev (1899-1965) e o seu Prolegômenos a uma teoria da linguagem; Fernand de Saussure (1857-1913) e o seu Curso de Linguística Geral. É dessa área que Lévi-Strauss absorve e recria os conceitos de diacronia e sincronia que podem ser vislumbrados a partir do Plano Cartesiano e suas duas coordenadas x e y. A partir dessa perspectiva, é possível analisar a estrutura de um determinado mito e entender como ele acontece no tempo e no espaço em diferentes comunidades, ganhando narrativas distintas, entretanto, com os mesmos objetivos. Desta forma, uma análise criteriosa, permite ao pesquisador compreender o quanto da religião egípcia pode ser encontrada, por exemplo, em algumas designações ocidentais.
Deixando a esfera da linguística e sua utilidade na interpretação mítica pelo orbe terrestre e como o antropólogo francês a usa para suas análises estruturalistas e me enveredando na observação que este fez no que diz respeito à relação do homem com a natureza, me parece que uma colocação encontrada no romance Através do espelho, do filósofo norueguês Josten Gaarder, pode auxiliar-me a entender um pouco aquela observação feita por Claude Lévi-Strauss. Na narrativa em tela, duas personagens: um anjo, Ariel, e uma adolescente adoentada conversavam, numa noite de Natal, sobre o existir no plano material e no âmbito angelical. Entre os vários diálogos que compõem a enunciação, um em específico me chamou a atenção e pode ser útil nesta reflexão. O anjo Ariel diz à sua interlocutora que acha estranho o homem ser o único ser criado pelo plano divino a questionar a sua condição, principalmente no que diz respeito à sua humanidade. Segundo ele, a pedra não faz isso e eu, leitor, estendo esse ponto de vista ao reino animal e vegetal. Interessante observação, por que sendo o homem o único ser a perguntar-se a razão de sua existência, não faz nada para melhorar o próprio existir?
Formular uma resposta a esta interpelação parece ser tarefa fácil, todavia, é como se o sujeito social estivesse na frente do espelho olhando em seus próprios olhos, enxergando a própria existência como um poço bem fundo e tentasse se encontrar em suas profundezas, conforme diz ao seu leitor a personagem central do romance Através do espelho. Essa seria uma ação válida, desde que o ente que forma o ser não temesse o que encontrasse lá. Como esse temor é latente, acaba gerando o que o sociólogo e filósofo francês, Edgar Morin, denomina de neuroses a partir da possibilidade de se tornar um corpo necrosado na sociedade que ele, sujeito social, ajuda a recriar levando sempre em conta os valores que recebeu de seus pais durante os processos de socialização primária. Desta forma, o preconceito que dita veladamente as normas de conduta em sociedade, sem que seja de fato a normatização oficial dum país cuja Constituição Federal outorga em seus primórdios que todos são iguais, contudo, sabe-se que a tal da igualdade embeleza somente a letra fria da lei, porque na prática, a situação é bem outra – não ficarei aqui desfilando uma série de exemplos que dá conta das mazelas sociais criadas a partir do pertencimento étnico das vítimas que são silenciadas cotidianamente pela ausência da chamada meritocracia que perde diariamente o espaço para o compadrio, o filhotismo, coronelismos, o “favor” entre outros movimentos nevrálgicos à construção duma cidadania de fato entre os limites constitucionais e geográficos do Brasil.
Diante das enunciações que fiz acima, escudadas pelas observações de Jean-Paul Sartre (1905-1980), segundo a qual “a violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”, e também pela pergunta que uma aluna me formulou certa vez, é que tentarei indicar, quem sabe, como eu vejo esse mundo e apontar algumas saídas plausíveis e possíveis de se colocar em prática e, como dizia Immanuel Kant (1724-1804) em seu pequeno tratado Fundamentação para a metafísica dos costumes, torná-las práticas cotidianas. Posto isto, começo pelas lembranças de minha primeira aula ministrada pelo sociólogo e professor Octavio Ianni (1926-2004) em 1994 no IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). O seu curso era sobre globalização, daí o título Teorias da Globalização. Em seu livro A era do globalismo (Civilização Brasileira, 2001), Ianni afirma que “a globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, formas de pensamento e voos da imaginação” (2001, p. 11).
Até aí todo mundo já sabe que esse fenômeno gera riqueza, ao mesmo tempo em que constrói castelos de miseráveis em toda parte do mundo e a crise econômica de 2008 escancarou as mazelas da globalização no seu braço financeiro, em que o capital volátil ditava as regras. Mas o professor Ianni lançou-nos um desafio: encontrar saídas para além dos três principais teóricos da Sociologia: Emile Durkheim (1858-1917), Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920). Não sei os outros alunos, mas eu apresentei uma alternativa a partir do pensamento kantiano e os imperativos categóricos e hipotéticos que sustentam todo o seu arcabouço filosófico presente nas obras Crítica da Razão Pura; Crítica da Razão Prática e Crítica do Juízo. A parir daquelas observações, indiquei que as mazelas sociais criadas pela globalização em todas as esferas da vida social, histórica e econômica e privada só poderiam ser dirimidas até um dia não existirem mais a partir do desenvolvimento duma ética racional de solidariedade. Ao contrário de Max Weber, que indicou que esse ethos objetivando um fim surgiu após a reforma protestante, eu afirmei que ela deveria surgir através da educação.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.