Trombetas e sinos troantes

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Enquanto pessoas continuarem morrendo por conta da pandemia do coronavirus e outras tantas permanecerem circulando sem uso de máscaras e adotando as medidas protetoras, insistirei em determinadas perguntas: por quem os sinos dobram? Para quem as trombetas, que anunciam a letalidade da atual sociedade, estão troando? As duas interpelações têm fundamento quando o Brasil registra, num único dia, mais de 3 mil vidas perdidas e determinadas autoridades, associadas ao seu séquito de Carontes, acham que tudo está dentro da normalidade. E o brasileiro continua ali, parado feito mosquito na teia de uma aranha pestilenta. Lógico, diante do tamanho descalabro, não é possível fazer manifestações de indignações além de bater panelas. Mas o que fazer em casos funestos como o que se assiste no presente? Recorrer ao passado, como no caso da chamada gripe espanhola, quando muitos adotaram medidas de afronta, ao invés das recomendações científicas?

É sempre bom recordar que a Peste Negra grassou a Europa e parte da Ásia no lombo de ratos e ratazanas que transportavam as pulgas que carregavam consigo o vírus letal. Mas isso foi lá na Idade Média, de onde, pelo menos em forma temporal, estamos distantes, mas quando observo certos comportamentos teologais, entendo que ainda, mentalmente a humanidade, para não dizer, parte do povo brasileiro, continua preso num atroz medievalismo. Entendo que aqueles que leem as minhas reflexões semanalmente aqui podem estar agastados de tanto passado, ansiando por medidas no presente que possibilitem à vida continuar. O existir está tecnicamente quase que em compasso de espera e não se vislumbra no front uma saída de imediato. Os cientistas, profissionais acostumados a emitir opinião não baseadas no ouvir dizer, em fake News e nem em WhatsApp, afirmam que a situação era periclitante e que o extremo perigo não passou, entretanto, muitos se aglomeram por onde a caravana mortífera se desloca e não quero nem dizer quem é o astro principal deste teatro dantesco em tempos pandêmicos. Sabe-se que o condutor é o barqueiro que leva as almas para o meio do inferno. Então, meus caros leitores, é preciso pensar com a devida acuidade: por que o meu “eu” deve sempre prevalecer em tempos que o colegiado deveria importar muito mais? Sendo assim, a prevenção não é para o meu eu individual que advém do indivíduo originário do uno, indivisível, mas a sociedade em si.

É interessante notar com a extrema preocupação que, quiçá o número de óbitos, ainda são realizadas festas clandestinas, reuniões religiosas e outros eventos sociais que ficam abarrotados de pessoas. O que fazer em situações como essas? A culpa é de quem? Dos organizadores ou dos frequentadores? Parece-me que é múltipla, pois se não há quem consuma, a mercadoria acaba sendo descartada. Desta forma, como foi flagrada há pouco tempo uma festividade tendo como participantes pessoas que já teriam sido vacinadas, evidencia o pensamento pautado no egoísmo. Elas foram e os demais não, então vejo uma ausência de empatia num país com excesso de pessoas se dizendo cristãs, mas não externando comportamento crístico, ou seja, se solidarizando com a morte alheia e a dor dos parentes dessas vítimas, daí a pergunta inicial desta reflexão: para quem as trombetas troam? Será tão complicado desenvolver uma ética racional de solidariedade nesses momentos? Entendo que primeiro, o sujeito precisa compreender o que é ser ético e em seguida, analisar se sabe de fato ser solidário ou tem apenas um discurso, mas a ação é movida pelo ego através da máxima “meu pirão primeiro”.

Posto isto, creio que o pensador alemão Immanuel Kant (1724-1804), através do seu imperativo categórico tem muito a nos dizer, quando afirma que o indivíduo precisa agir de determina forma, segundo a qual, a sua atitude seja universalizada. Desta forma, não é por que somos sujeitos unos que vamos ser apenas governado pelo nosso desejo singular de acumular, de querer sempre mais, em detrimento do colegiado que passa fome. Parece-me que aqui no Brasil, o liberalismo tem uma vertente muito letal à ideia de sociedade, principalmente no que diz respeito ao entendimento de colegiado, de regras e aplicações das leis. Sendo assim, vislumbro a parte do Leviatã, do filósofo político Thomas Hobbes (1588-1679) em que trabalha os pressupostos de sua principal tese, fundada na ideia de que “o homem é o lobo do próprio homem”. Esse seria o estado natural do ser em si, mas para que esse processo deixasse de ser a tônica social, os homens fundamentavam pactos para que a harmonia, de forma racional, reinasse entre eles. Será que esse pacto está sendo respeitado no presente, quando há uma pandemia grassando o mundo e o sujeito está voltado apenas para o seu egoísmo, para as suas coisas, como se fosse levá-las para além-túmulo?

Em forma provocativa, afirmo que o mundo parou e outros, temerosos, dizem que o orbe pode ter estacionado, mas as contas não. Significativo paradoxo, pois não tem como fazer reflexões com a barriga vazia e o armário repleto de boletos para pagar. Neste sentido, é que se pode colocar a ideia de se estar em período de barbárie, pois a solidariedade inexiste e isso fica evidente quando as pessoas se recusam a usar uma simples máscara para proteger e derrubar a circulação do vírus que não achará tão facilmente narizes para se alojar e se proliferar. Gostaria de saber por qual motivo, um sujeito que se diz deísta, se recusa a pensar em seu semelhante e deixar de adotar as medidas protetivas? Outra pergunta que não deixarei de fazer enquanto assistir atrocidades como aglomeração de pessoas para prestigiar a visita de um governante que deveria estar sim, adotando medidas e auxiliando seu povo a minimizar os danos pandêmicos, mas prefere pensar no próximo pleito rivalizando com “deus e todo mundo”, como se diz no jargão popular, tudo porque anseia ardentemente permanecer no poder depois de 2022. A partir deste ponto, vos pergunto meus caros leitores, qual era o projeto mesmo de Nação que essa mercadoria política vendeu até as eleições de 2018? Creio que em seu bojo, a exemplo do ex-presidente Fernando Collor de Mello, se comercializou ressentimentos e verborragias toscas que o tempo se encarregou de apresentar ao eleitorado seus equívocos. Fatos contra os quais não se tem argumento. E não adianta usar o antecessor como desculpa, pois ao fazer isso, demonstra o quanto a sociedade se apequena. O momento não é para apontar o erro do outro para esconder o seu. É preciso encarar a realidade de frente: o país está à beira do precipício e as pessoas continuam achando que, enquanto não for com elas, a vida precisa seguir seu fluxo de caixa em que se diminui os débitos, ampliam-se os créditos e os lucros. Não sei se é possível pensar nessa matemática, enquanto milhares padecem nos hospitais e outros tantos perdem a vida.

Não tive como escopo, ao tecer essas linhas, arvorar-me ser o paladino de alguma verdade, contudo, creio que o momento está para lá de crítico e se não houver uma conscientização em massa no que diz respeito aos problemas do coronavirus, a civilização, principalmente a brasileira, sucumbirá diante da ignorância, do pensamento medievalista de muitos dos líderes que ai estão querendo vender indulgências pós-modernas aos que se fanatizam com medo da própria consciência, atrofiada pela recusa de se pensar por si próprio, esperando que haja sempre um Salvador da Pátria para as mazelas que os próprios seres humanos constroem no afã de ser melhor do que o seus semelhantes. Essa guerra particular tem levado a humanidade para o buraco. Então é tempo de prevenção, reflexão e sobretudo, de solidariedade.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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