Gilberto Barbosa dos Santos
Numa noite longa e tenebrosa – não que as horas estivessem mais extensas do que de costume, pois às 18 horas as primeiras estrelas já pintavam o firmamento com seus brilhos, prometendo deixar o lado ocidental do orbe às 6h quando o Sol iniciava a sua jornada de iluminação – os coturnos marchavam por sobre milhares de cabeças democráticas. Meus caros leitores, é preciso se atentar para o fato de que tanto o astro-rei quando os outros corpos celestes são portadores de luzes, portanto, não é apenas durante o dia que existem clarezas e claridades que poderão iluminar mentes obtusas que se comprazem com autocracias, totalitarismos e outras formas de governo que objetivam apenas silenciar as vozes daqueles que são contrários à toda espécie de teocracias disfarçadas de apologias cosmogônicas, quando se sabe que nos bastidores, se refestelam com muito dinheiro desviado dos recursos públicos.
Como aqueles que me acompanham semanalmente aqui nessas linhas podem observar, o começo desta crônica, ou quase isso, bem que podia ilustrar enunciações de Machado de Assis (1839-1908), a exemplo daquela narrativa em que ele coloca dentro de uma das residências imperiais um leiloeiro chamado Augusto República, que conduziria um pregão destinado à arrecadar fundos para as entidades assistenciais do período monárquico, todavia, a Coroa doou apenas frangos, evidenciando a fraqueza daquele governo que ruiu tempos depois por força dos golpes das baionetas desferidas por militares havidos pelo poder e em nome de uma República que, até onde eu seu, nunca se completou e justamente porque os resquícios de privilégios de uma realeza e suas nobiliarquias não foram sepultados naquela manhã de sábado, 15 de novembro de 1889. Fico cá pensando “com os meus botões”, como se diz no jargão popular, como seria uma República pensada por Platão desde a Grécia Antiga. Para quem não sabe, esse filósofo, discípulo de Sócrates, dizia haver na existência uma dualidade formada pelo mundo das ideias e o mundo sensível. O primeiro existiria apenas na mente, essa unidade inexistente do ponto de vista corpóreo, contudo, que dá sentido ao que o homem pratica em seu cotidiano social. Desta forma, é possível entender porque muitos ainda desejam ver aqui uma ditadura teocrática, tendo à frente um líder que se compraz com a violência simbólica e física contra os desafortunados.
Neste ponto de minha reflexão, é impossível não fazer alusão ao universo medieval e também ao escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) para quem o homem social é incapaz de tolerar a liberdade, estando disposto a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança. Essa narrativa consta dos escritos do enunciador ainda nos tempos oitocentistas, todavia, continua atualíssimo, bem como aquela questão do mundo romano que, para manter a patuleia alienada, oferecia pão e circo. Diante do exposto, é evidente que o homem, perante o medo de um novo amanhecer diferente, livre e solto, opte pelo passado tenebroso, mesmo que seja construído mediante chibatadas, coturnos e baionetas e que a democracia seja sepultada numa vala comum, como existem muitas por aí nas quais muitos adversários dos regimes totalitários foram sepultados à revelia de seus familiares. Há muitos relatos sobre essas questões em diversos pontos do orbe e sob a proteção de muitas justificativas, entretanto, o que me deixa mais estarrecidos, é encontrar pessoas, indivíduos sociais que ainda beijam a mão desses líderes sanguinários, a exemplo do que acontecia quando D. Pedro II (1825-1891) abria, semanalmente uma das residências imperiais para receber o povo que, em seguida, rendia devoção ao monarca. Mas por que será que noites longas, sem que os ponteiros sejam acelerados, podem ocorrer novamente em plena vigência da democracia? O que aconteceu com a sociedade e com os homens que gostam de arvorarem-se na condição de “cidadãos de bem e de bens”? Como meus leitores podem perceber, continua a minha sina de fazer perguntas buscando respostas que, provavelmente, as respostas já estão evidentes, pois cada questionamento já contém em seu bojo, isto é, em seu cerne, a resposta. Sendo assim, é possível especular que aqueles que concordam com as truculências governamentais é porque está, de alguma forma, sendo beneficiado. Mas por outro lado, pode ser que a coisa não seja bem desta forma, entretanto, quando olhamos para as noites mais escuras do que as outras, nas quais a democracia é assassinada a golpes de baionetas sobre a justificativa de se pensar num mundo melhor, cuja construção só pode ser edificada por líderes que garantam, antes de mais nada, pão e segurança e espetáculos dantescos para não dizer horrorosos. A história da humanidade está repleta de exemplos dessa problemática toda.
Quem sabe se, numa tentativa de colocar Platão e Aristóteles sob a mesma perspectiva, eu consiga compreender essa mente atormentada pelo passado, porém, sem condições ou até mesmo não deseja fazê-lo, permanece atrelada a um pretérito marcado, sobretudo, pela violência e outras agressões. Lógico que aqui salta aos olhos dos meus leitores a alegoria da Caverna presente no livro A República, de autoria do discípulo de Sócrates e criador da Academia, que só aceitava alunos conhecedores de Geometria. Neste sentido, como seria uma República justa e, aí, entrando no empirismo aristotélico, qual seria a causa final dessa governança? Eis uma nova interpelação e, de acordo com os meus olhares, tem lá sua significância, pois indica o meu desejo de saber a querença dos indivíduos individualizados em transformar uma sociedade livre, democrática com timbres teocráticos e lampejos autocráticos. Claro que é possível encontrarmos diversas respostas, mas me parece que a mais plausível é um medo de um amanhã que possa surgir depois de uma noite tenebrosa e cheia de tremores e temores provocados, principalmente, pelo desejo egoísta de se querer tudo para si mesmo, nem que seja necessário ludibriar, enganar o cidadão que, sem conhecimento adequado dos processos democráticos, acredita que um Salvador da Pátria poderá aplacar as tempestades que emergem a partir do interior de cada sujeitos que almeja tão somente ser melhor do que o seu semelhante e ter o que dizer nos cafés, jantares, almoços regados a muito egoísmos de todas as estirpes.
Enfim, para não me alongar muito no restante de espaço que tenho aqui, me parece salutar indagar aos que me leem, se chegaram até aqui comigo, qual é o sentido de ser melhor do que o seu semelhante? Qual é a causa final das injustiças sociais? Interessante notar aqui que pode ser possível esmiuçar cada milímetro da consciência humana e não da humanidade, diga-se de passagem, e ainda assim, ter-se-á muito o que vasculhar ainda, levando sempre em conta que o homem é um ser de linguagem construída a partir de uma língua edificada a partir de signos portadores de significados e outros significantes justamente por conta daqueles que detêm o poder de difundi-la. Desta maneira, a expansão dessas ferramentas linguísticas é feita mediante a força, violência e aquiescência daqueles que desejam tão somente um prato de sopa para aplacar a fome e preencher o vazio estomacal e se proteger de noites longas e frias, mesmo que o tique-taque, isto é, a onomatopeia, indique que as horas ainda são portadoras de sessenta minutos e cada minuto é composto por sessenta segundos. Neste sentido, me parece que, mesmo em tempos democráticos e livres ainda nos deparamos com seres humanos que almejam aqueles períodos broncos, truculentos e violentos, desde que os agressores estejam de seus lados e as vítimas não tenham nenhuma ligação emocional com os totalitários e seus asseclas.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.