Sombras do passado ou cadáveres insepultos

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Lembro-me que em alguns textos publicados aqui neste espaço e também em conversas informais com pessoas que sabem um pouco sobre a minha trajetória científica – se é que posso adjetivar assim a leitura diária de várias obras das áreas que compõem a chamada Ciências Humanas e uns artigos científicos aqui e ouros acolá – abordei uma questão retirada de uma das enunciações do escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-1881), segundo a qual “o homem social é incapaz de tolerar a liberdade e está disposto a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança”. Pois bem, usando novamente essa observação, creio que o orbe está passando por um momento em que, o sujeito que se quer livre, teme a própria liberdade e está doando-a àquele político que vocifera que, caso seja eleito, fará isso e mais aquilo. Bom! Aqueles que leem as minhas tentativas de compreender o universo material do homem, já estão enfadados com essas questiúnculas, buscando, portanto, soluções rápidas para solucionar os “velhos” problemas de sempre. Eu acho que essa busca é a razão de ser de todos os seres humanos, portanto a questão passa ser: como chegar a ela, sem haver a necessidade de se ufanar pela solução encontrada?

Posto isto, entendo ser necessário avançar pela enunciação, por mais singela e sublime que seja, já que a escrita é um jogo textual e utilizada por aqueles que pretendem comunicar algo a alguém ou deixar registrado para a posteridade o que o missivista estava pensando no momento em que confeccionava a sua estética verbal. Sendo assim, tomo emprestado a observação feita pelo escritor sul-africano Trevor Noah em seu romance, que pode ser considerado autobiográfico “Nascido do crime: histórias da minha infância na África do Sul”. Logo no início da obra o leitor se depara com um trecho da Lei da Imoralidade, de 1927 que vigorava na África do Sul que antecede o Apartheid [segregação na língua Africâner – política imposta àquele país em 1948 pelo pastor Protestante, Daniel Fraçon Malan, em 1948 quando era primeiro-ministro sul-africano e mantido até 1994 pelo Partido Nacional]. Essa Lei da Imoralidade previa punição a homens brancos que mantivessem relações sexuais e amorosas com mulheres com peles escuras e as brancas que praticassem os mesmos atos com homens escuros.

O interessante a discorrer no breve espaço deste jornal é como o autor começa a sua enunciação, abordando a segregação e como ela ganhou robustez naquele país em que a maioria da população era de pele escura. “A genialidade do apartheid foi convencer a grande maioria de que as pessoas eram inimigas umas das outras. ‘Separados pelo ódio’ era a ideia por trás desse regime. Basta segregar as pessoas em grupos e fazê-las se odiar para tornar possível o controle de todos” (NOAH, Trevor. Nascido do crime, 2020, p. 13).  Só por esse pequeno excerto vale a pena percorrer a obra como um todo, entretanto, o meu escopo aqui não é esmiúça-la para os meus leitores, já que o desafio a eles é percorrerem as 334 páginas que formam essa belíssima enunciação. Se a minha intenção não é tratar especificamente desse livro, então, perguntar-se-ão os que acompanham essas linhas até esse ponto, qual é a pretensão? Objetivo aqui tentar entender um pouco esse Brasil como reflexo do que acontece no resto do mundo. No entanto, fixo a minha escrita nesse país justamente porque há marcas indeléveis que sangram todos os dias, silenciosamente, quando um afro-brasileiro é vítima de preconceito e injúria racial, como se os ancestrais deste tivessem culpa por terem vindo para a América por vontade própria e não desterrados de seu mundo sociocultural e trasladados para os novos territórios como mercadorias que seriam exploradas até a exaustão física.

É interessante notar que, a exemplo da observação feita por Dostoievski, também a do escritor sul-africano sugere outra interpelação: por que determinados sujeitos sociais se acham superiores e melhores do que seus congêneres de pele escura? Em que momento da existência destas pessoas, seus racismos começaram a vigorar? Será que suas condutas diante de seus semelhantes lhe são imanentes, ou seja, nasceram com eles? Ou isso tudo não passa de fruto de suas experiências, isto é, de suas empirias marcadas, sobretudo, pelos relacionamentos, primeiramente, delineados pelos valores dos pais, demais familiares e amigos destes? É importante destacar que as crianças absorvem aquilo que os meios lhes mostram antes do que realmente os adultos lhe falam. Os ditos precisam ser seguidos pelos feitos. Lendo o livro Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociedade brasileira, escrito pela antropóloga e professora da USP, Lilia Moritz Schwarcz, fiquei cá um ponto de interrogação a partir da seguinte informação: numa pesquisa realizada, lá no longínquo 1988 – ano quem foi promulgada a Constituição Federal, outorgada por Ulisses Guimarães (1916-1992) como a Constituição Cidadã – indicava 97% dos entrevistados afirmavam não serem racistas, porém 98% deles disseram conhecer alguém racista. Esse levantamento foi feito há mais de três décadas e a coisa mudou? O cientista social Carlos Alberto Almeida lançou há uns 10 ou 12 anos o livro A cabeça do brasileiro, resultado de um trabalho respaldado em dados estatísticos e amostrais, indicando que existem um grande contingente de racismo na sociedade brasileira. Na época do lançamento, o docente da Universidade Federal Fluminense concedeu várias entrevistas explicando o conteúdo de sua obra, por ser assaz polêmica, tendo em vista que, ao que tudo indica, o brasileiro teria preconceito de ter preconceito e o nega publicamente, para manifestá-lo nos bastidores, ou com seus olhares de soslaio quando passa por casais interétnicos.

Em virtude dessas posturas de alcova, que muitos hoje estão alarmados quando um sujeito, provido de sua arrogância e desconhecimento, acredita ser superior a outro indivíduo de pele escura. Mas o que leva as pessoas a agirem desta forma, isto é, deixarem o armário da ignorância onde residem, para detratar quem lhes é diferente na aparência, na cultura, no credo religioso? A discussão é importante, principalmente para aqueles que me leem, entenderem que a questão é bem mais complexa do que se possa imaginar, pois ingressa na esfera da liberdade e da individualidade de cada um e como a sociedade, ou seja, os homens reagirão quando mais pessoas tiverem atitudes como essas. Se forem levados em conta diversos aspectos da singularidade da sociedade brasileira, a coisa poderia ser desmantelada logo em seguida, entretanto, existe uma estrutura social identificada, sobretudo, com a dicotomia entre Senzala e Casa-grande, com marcadores sociais estabelecidos pelos espaços existentes entre os moradores da Casa-grande e os habitantes das fétidas Senzalas. Outro elemento a ser considerado nessa reflexão é o fato de que, de acordo com dados do IBGE, mais de 50% dos brasileiros se autodefinem como descendentes de africanos. Nos EUA da década de 60, as afro-americanas começaram a se recusarem a dar lugares às brancas dentro dos veículos públicos e muitas não iam trabalhar para as mulheres de peles alvas. Os resultados todos já sabem, contudo no Brasil a coisa parece ser diferente. Todavia, o racismo aqui é endêmico e resultado dum atroz escravismo praticado pelo branco por mais de 300 anos, sem que este compreendesse o valor monetário do trabalho do outro, visto como um ser nadificado, dado a exploração e ao aviltamento em sua condição humana e sexual. Esse país de outrora, que vigorou até 1888, permanece latente dentro das alcovas e salas de jantares e prontas para deixarem o armário.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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