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Quando Márcio deixou o quarto de hóspedes, tomado banho, mas com a barba por fazer e vestido com as roupas novas, porém com o calçado que usou durante o dia todo, indo até a sala, foi surpreendido por uma garrafa de vinho sobre a mesa e dois copos. De chofre, perguntou a dona da casa o que aquilo significava. Angélica respondeu de pronto:
– O vinho que sobrou do almoço e o resto do peixe. Dá para nós dois beliscarmos, enquanto conversamos ou simplesmente deixamos o tempo passar. Tudo vai depender do meu acompanhante que não perde a mania de usar coisas do passado. Onde está o sapato que comprou ainda a pouco? Tinha que ficar com esse pedaço de tênis no pé? Realmente você parou no tempo!
Márcio fez aquela cara de quem não estava muito atento ao comentário que a arquiteta fez. Talvez se manifestou assim, de propósito, para ela entender que muitas de suas opiniões lhe eram insignificantes. “- Mas eu gosto deste sapato. Acho que tem a minha cara!”
– Claro! Tem até o formato do seu pé. Você não descalça ele nunca. Aposto que tomou banho com eles. Pelo menos as meias você trocou? Espero que tenha mudado também a roupa íntima. Onde você colocou as peças que estava usando?
– Deixei-a dentro da sacola. Vou levá-las quando voltar ao meu apartamento.
“- Negativo!”, afirmou Angélica. “Pode jogá-las no lixo. Elas sairão daqui para o aterro sanitário. Estão tão velhas que não servem nem para doação. Ai de você que saia com elas daqui de dentro deste apartamento”.
Como permanecia ainda em pé, Márcio perguntou à sua anfitriã se podia se sentar. Angélica olhou para ele com vontade de dar risadas, porque ele era todo cerimonioso. Parecia um homem moderno, mas no fundo era um cara que queria se encontrar sem precisar deixar de ser o que era. “Porém, neste mundo, acho que não terá sucesso. Não leva jeito com as mulheres. Pode ser bem-intencionado, mas é um trapalhão”, pensou Angélica como quem estava decidindo se deixa o repórter sentar ou não.
– Pode, mas antes troque esse tênis do tempo de minha avó. Olha só! Está desmanchando no seu pé.
Não restou ao jornalista senão voltar e trocar o calçado por um dos que havia adquirido no final daquela tarde. Quando voltou para a sala, o sol já estava indo embora, dando lugar a Lua, mas o repórter ficou ali de pé, olhando aquela beleza da natureza. Do nada, perguntou a Angélica:
– Será que o verde de seus olhos combina com as cores laranjas que o Sol está tingindo os céus neste momento?
Ao terminar de perguntar, se sentou na outra poltrona, como se não tivesse dito nada de especial. Angélica ficou de cara, pensou em responder, mas percebeu que qualquer som, palavra, questionamento, desmancharia aquelas observações feitas pelo seu hospede em forma de pergunta, mas com muita poesia e lirismo.
Assim que Márcio se acomodou na poltrona, Angélica começou a falar, depois de colocar vinho branco em seu copo e no do repórter. “- Confesso. Não sei de onde você tira tanta paciência, serenidade? Para quem tem uma história de reação, surras, chifres e decepções, me parece dono de um equilíbrio fantástico”.
Antes de responder à arquiteta, o repórter bebeu uma grande quantidade do vinho e depois tentou falar em tom professoral: “- Engano seu. Carrego comigo dores que não cessam e não há remédios humanos que consigam fazer a coisa parar. Faz cinco anos que não converso com o meu pai. Ele não pode nem ouvir falar o meu nome. Sei dos meus pela minha mãe que pagava o meu aluguel. Tudo isso como consequência de um ato impensado, duma ideia de brio de macho ferido”.
– Eu faço ideia. Surpreender a noiva, na véspera do casamento, num ménage na cama que deveria servir de leito nupcial para o casal, é uma punhalada sem igual. Atingiu o seu coração, sua alma, mas acho que fez você ficar mais pé no chão, sem crenças alguma. Estou errada?
– Angélica aquele episódio sangra diariamente, mas creio que a dor maior fica por conta deu não ter me controlado e resolvido a situação de uma outra maneira. Era só terminar tudo, desmontando o castelo de sonhos que criei com aquele relacionamento. Agora recentemente, por tentar ajudar o seu irmão, é que descobri que não dá para fugir daquelas ocorrências, ainda mais sabendo que pode ter sido a Márcia quem vendeu essa história para seus familiares, ou melhor, para você.
– Confesso que comprei as informações. Eu precisava ter um trunfo caso você continuasse com aquela narrativa. Eu consegui tudo naquele domingo mesmo. Hoje me sinto envergonhada por ter te virado do avesso só para que meus objetivos fossem mantidos e os segredos de minha família não viessem à tona. Você não sabe como me sinto uma tola e acho que a sua ex-noiva foi tão idiota quanto eu. Te conhecendo um pouco melhor, entendi o quanto fui precipitada.
“- Todos nós fomos, Angélica. Não se culpe tanto. O mais importante foi resgatar Amadeu. Quanto à minha dor. Sei que terei que enfrentá-la e deixar que uma nova pessoa preencha esse coração amargurado”, finalizou o repórter, bebendo o resto de vinho que havia no copo e em seguida pegando um pedaço de salmão que havia no prato.
A arquiteta apenas o olhou, pensando como seria interessante penetrar a alma daquele homem que nas piores circunstâncias e ofensas, não partia para o revide. Querendo apenas fugir, fugir, mas quanto mais tentava fazer isso, mais ficava no lugar vendo o coração sangrar por múltiplas tristezas.
Como que antevendo o que ia pela cabeça da arquiteta, o repórter disse depois de engolir o naco de peixe que havia colocado na boca. “- Procuro ser flexível como o arco e certeiro como a flecha. Pelo menos estou tentando atingir essa meta quando não reajo a ofensas e agressões que sofro, sejam elas simbólicas ou físicas. Hoje elas estão mais no campo abstrato, concentradas na minha condição existencial, mas sei que poderão se transformar em outras, como a tal famigerada expressão ‘sabe com quem está falando?’. Também entendo que, se não atingir essa harmonia dentro do meu ser no presente, a alcançarei um dia. É minha utopia e o que busco desde que abandonei minha cidade. Ação ao invés de reação e para isso tem que deixar a razão dominar, principalmente quando as ordens que emanam do coração. Não é fácil, mas sei que vou conseguir”.
Após ouvir o que Márcio disse, Angélica, como que para quebrar o clima perguntou se ele não desejava tomar um uísque. Tinha levado uma caixa e se ele prometesse não exagerar, lhe serviria uma dose.
Só para sacanear Angélica, Márcio foi enfático: “- só se for a garrafa inteira e quero beber no gargalo e sem gelo”. Diante do olhar incrédulo da arquitetas, o repórter começou a rir descontraidamente, dizendo que podia ser só a dose. Ao término da resposta se encostou no sofá, como quem tira uma tonelada das costas e ficou pensando no significado do riso naquele momento. “Custa rir? A boca apenas se movimenta, indicando que a alma está feliz…”, tendo isso em mente, o jornalista se abriu novamente a um novo riso.
Quando a arquiteta voltou trazendo a garrafa, um copo já contendo uísque com gelo, estava com outra roupa mais leve – um macacão vermelho – e sem os sapatos de salto. O repórter ficou surpreso, mas preferiu por ficar silêncio. Angélica colocou vinho em sua taça e se sentou no mesmo sofá em que o jornalista estava. Brindaram e Angélica diz não compreender direito aquele desapego às coisas materiais, mas ao mesmo tempo uma certa nostalgia e um cuidado muito particular com coisas que deveriam ser descartadas, como por exemplo, usar uma camisa que estava com ele desde que tinha 20 anos.
Fixando bem os olhos esverdeados de sua anfitriã, Márcio falou: “-Você pode não ter tudo o que deseja, mas terá sempre o suficiente para aquele momento em que está vivendo. Então viva o com intensidade”. Ao lhe dizer isso, o repórter percebeu que a irmã de Amadeu deu uma relaxada, soltando mais os ombros e se sentindo mais leve, enquanto ele completava o seu raciocínio.
– Sei que parece fácil, mas não é! Talvez para quem nunca teve tanto luxo e tudo em demasia como você, pode ser que sim, mas aos que estão acostumados a contar moedas no final do mês, acaba sendo, provavelmente, um alívio quando entende que não se deve ficar apegado às coisas materiais.
– Você diz isso, porque passou necessidades na infância, Márcio?
– Não se trata de passar ou não fome ou privação do básico. Penso que tudo é uma questão de se olhar ao redor e dentro de si e se perguntar para onde vai tanto luxo, vaidade, presunção? O que adianta ter tanta coisa se acaba ficando preso ao que se tem, não podendo gozar de liberdade, já que precisa ficar contando diariamente seus metais. Olha só. Pensar e procurar agir assim, não quer dizer que eu viva como um passarinho. Não é isso, mas acho que o ser humano tem mais para oferecer do que dinheiro.
Márcio se levantou para despejar mais uísque em seu copo e a arquiteta pediu para ele colocar uma música. “- Vem me dizer que não sabe mexer nesses equipamentos? Se falar que não sabe usar. Vou te mandar de volta para os tempos da Idade da pedra”, disso rindo às gargalhadas.
– Claro que sei manusear essas coisas. Também não sou tão jurássico assim dona Keka. O que a madame arquiteta quer ouvir.
– Sei lá, meu caro jornalista. Deixo para vós-me-cê a escolha. Mas veja bem, não vai colocar música dor de cotovelo. Acho legal aquelas que combinam Lua com o Sol, noite com dia, estrelas com corações inflamados pelo amor e corpos ardentes de paixão.
Ao escutar isso, Márcio tentou disfarçar um sorriso, mas por mais que se esforçasse, Angélica acabou vendo um canto da boca sendo repuxado como se fosse dar um riso, mais interno do que externo, indicando paz. O repórter observou o que havia para se escutar e optou por uma que o intérprete dizia logo no começo “… o que há dentro do meu coração que eu tenho guardado para te dar…”. Assim que os primeiros acordes começaram, Márcio voltou ao sofá, pegou seu copo de uísque e começou a beber lentamente, fazendo uma pergunta a sua anfitriã.
– Como você chegou a essa condição, Angélica? Tem o mundo aos seus pés. O homem que quiser ou a mulher que desejar, mas não vejo felicidade em coração?
– É uma longa história, meu caro Márcio e talvez deva começar pelo que você disse. Ter tudo o que quiser no momento em que assim desejar. Provavelmente isso tenha feito com que eu só atraísse charlatães e pessoas que queriam o meu dinheiro ou carreiristas que almejam posições, enquanto me usassem para atingir seus fins. No começo da minha adolescência eu fazia isso para ter mais pessoas e ser popular, mas com o passar do tempo fui percebendo que o meu dinheiro não comprava corações, apenas tornavam as pessoas objetos com determinados valores e aí fui sentindo o vazio que o ouro nos dá, como naquela história mítica do Midas.
Márcio ficou olhando-a em silêncio, deixando que ela concluísse o seu raciocínio. “- Eu namorava um garoto, depois enjoava e começa a sair com uma garota e quando começava aquele lance de ciúmes e de propriedade, eu fugia. Até que encontrei Rosângela numa exposição temática que fui para fugir de um evento que minha família organizara. Era um porre. Não estava afim. Queria ir para um lugar em que pudesse me misturar a outras pessoas e não ser notada. Do nada acabei numa exposição sobre atos, torturas e outros grilhões que ligavam o nosso presente ao da escravidão brasileira. Ótimo lugar para não ser vista, mas fui encontrada e fisgada por uma bela antropóloga que hoje é minha esposa. Aliás, eu já não sei mais se é ou não, mas enfim, aqui está a aliança”.
Ao ver aquela argola brilhando no dedo da arquiteta, foi como se Angélica jogasse água no chope de Márcio que se encolheu por dentro. Mas ainda assim, o repórter insistiu para que sua anfitriã continuasse o seu relato, mas ela se recusou.
– Não quero mais falar disso! O resto acho que você já sabe convivendo comigo esses dias. Vendo meu corpo através das transparências. Mantendo a distância e me dando a segurança que preciso para enfrentar todas as mudanças que estão por vir.
Dizendo isso, virou na boca o restante do vinho que estava na taça e abraçando uma almofada, perguntou ao repórter se podia deixar no colo dele só um segundo, depois ela iria para cama e ver como Amadeu estava. Poderia acordar a qualquer momento. Márcio fez que sim com a cabeça e bebeu de um gole só o líquido do seu copo, o colocando em cima da mesa e se ajeitando para que a arquiteta se deitasse de maneira confortável. Enquanto o silêncio se fazia entre o casal, com o jornalista alisando os cabelos da arquiteta, a atmosfera era regida por uma melodia em que o cantor dizia que “sem querer se lembrou duma rua e seus ramalhetes e do amor anotado em bilhetes”.
Não demorou e Angélica adormeceu e Márcio também. Quem via a cena de fora do apartamento, podia jurar que era um casal que dormira falando de seus amores, e de como cada um se sentia ao lado do outro. Enquanto o jornalista viajava em seu mundo onírico e a arquiteta no seu planeta dourado, as horas avançavam e nada da dupla despertar no plano terreno. Eram mais ou menos quatro horas quando Márcio voltou do seu sono, vendo a cabeça de Angélica em seu colo e Amadeu de pé diante dele. O irmão da arquiteta, antes de explodir numa sonora risada, falou baixinho para o repórter.
– É meu amigo! Não resistiu a aranha de minha irmã! As teias e os tentáculos dela aprisionaram o seu coração. Quero ver se terás forças para enfrentar os açoites do poderoso Jô. Terá que ter a paciência de Jó e a fé do Galileu – não o cientista – mas aquele que te deu a paz, para se tornar o meu cunhado.
Ao concluir sua observação, Amadeu deu aquela enorme gargalhada, fazendo Angélica acordar assustada. Ao olhar para o irmão este lhe fala em tom de troça. “- É! A Rainha 2 acaba de engolir o peão alçado a cavaleiro” e dá outra estrondosa risada.
Ser dar tempo a Márcio e a arquiteta se explicarem, Amadeu pega a garrafa de uísque que está sobre a mesa e leva o bico do vasilhame à boca e vira de uma vez, engolindo boa parte do conteúdo. Em seguida diz: “- Não adianta se justificarem: eu vi. Fico imaginando o que aconteceu antes. Vinho, uísque e salmão. Só não se se teve o prato principal da noite: linguiça com perereca ou a luta do século entre o zangão e a aranha com o primeiro colocando o ferrão na segunda”.
Ao terminar de dizer algo sobre o que pensou saber, Amadeu virou outro gole da bebida goela abaixo e se deixou cair no sofá, ficando com o olhar bem distante. Angélica tentou dizer alguma coisa, mas foi contida pelo repórter que fez um movimento para que ela fosse para o seu quarto.
Enquanto a arquiteta se dirigia ao seu dormitório em silencioso pranto, Márcio se sentou do lado de Amadeu. Pediu uma dose do uísque, obtendo como resposta que era para ele pegar a própria garrafa. Ao fazer menção em se levantar para buscar a bebida, o irmão da arquiteta lhe puxou pelo braço, pedindo ao repórter que o libertasse das garras da rainha má.
O jornalista lhe afirmou que ela já tinha ido embora e que Amadeu podia sair. Ao dizer isso, pegou o amigo pelo braço e o levou ao quarto de hóspedes, o colocando na cama tirando de sua mão a garrafa de uísque. “- Vou guardá-la e amanhã você pega novamente”. Amadeu se deitou e num desligar, dormiu como se não tivesse acordado desde a hora em que caiu no sono no meio da tarde do dia anterior.
Assim que o irmão de Angélica adormeceu, Márcio deixou o quarto e voltou para a sala, se deitando no sofá e dormindo rapidamente, contudo, enquanto o jornalista e todos na casa estavam em seus mundos oníricos, o Sol presenteava a humanidade com um belíssimo espetáculo tingindo o céu com cores laranjas, enquanto a Lula e as estrelas se recolhiam de um lado para existirem do outro lado do globo. Nenhum dos que ocupavam os cômodos daquele apartamento, viram quando os raios solares deixaram tudo iluminado com a sua luz natural e energia de puro hélio.