38
Quando mãe e filha voltam das compras, os ponteiros do relógio indicavam que se aproximava do meio-dia. Judith estava sentada à mesa com Márcio, enquanto este almoçava e a mãe passava a mão sobre a cabeça dele. Assim que viu Angélica e Eleanora, perguntou de chofre: “ – Como deixaram meu Marzinho chegar nesse ponto? Quem é o culpado? Se forem vocês, a conversa não vai ser boa e se foi o Roberto eu capo aquele desgraçado. Vivia me dizendo que Márcio estava bem. Chego aqui e vejo que meu filho passou vários dias na UTI por conta dum coma alcóolico”.
Foi Angélica quem se antecipou, chamando Judith para uma conversa na sala. “ – Dona Judith. É uma longa história, mas sobretudo, eu tenho uma grande parcela de culpa nessa condição de Márcio. Ele é muito obtuso, não gosta muito que as pessoas se enveredem pelo universo dele. Ninguém lhe avisou porque o Roberto sabia que esse não era o desejo de Márcio”.
– E o que a senhora tem a ver com isso? Por que meu filho foi parar na UTI e quase morreu sozinho no apartamento? As mulheres sempre querendo ferrar a vida do meu filho. Primeiro foi aquela cadela da Márcia. Espero que esteja no meio do inferno sendo temperada pelo capeta. Agora outra que o leva a beira da morte. Sinceramente não sei como o Marzinho se mete nessas confusões. Se Rogério aceitar ou não, ele que se foda, vou levar meu filho embora.
– Não será melhor esperar um pouco? Há muitas coisas que precisamos conversar. E a senhora pode ter certeza absoluta que não vou deixá-la levar o meu marido embora.
– Marido!? Que porra é essa? Meu filho casou e não me falou nada e agora que passou uma temporada entre a vida e a morte é que fico sabendo! Acho melhor a senhora me explicar direitinho essa história.
– Espere um pouco. Vou dar um medicamento para o Márcio e colocá-lo para dormir. E aí conversaremos com mais calma, inclusive minha mãe estará conosco.
Meia hora depois, as três estavam sentadas no sofá e a empresária explicou como conheceu o Marzinho. Falou que no começo brigaram muito porque ele não aceitou o jeito mandão dela. “- Eu queria proteger meu irmão das matérias que Márcio pretendia publicar. Fui conversar com ele. Confesso à senhora que cheguei de forma arrogante. Mas ele me mandou tomar no cu e enfiar todo meu dinheiro no rabo”.
Judith ficou espantada. “- Marzinho só faz isso quando está muito irritado. Então a senhora deve ter passado dos limites com ele”, disse a mãe do jornalista. “- A senhora pode ter certeza de que sim. Mas umas coisas me chamaram atenção nele: o caráter, os valores éticos e morais e como ele trata os amigos. Eu queria muito que ele terminasse o material. Precisávamos achar uma maneira de trazer o meu irmão. Acho que a senhora já conheceu”.
– Sim. E pelo sinal adora o Marzinho. Encantador ele.
– Acontece que para forçá-lo a nos ajudar, eu comprei dessa Márcia a história da noite em que ele a flagrou numa orgia. No dia seguinte seria o casamento dele. E sei que veio parar em nossa cidade porque o amigo Roberto o trouxe naqueles mesmos dias. Márcio tinha tentado surrar o amante e a amante dela e levou a maior surra.
– Sim. Aquilo ferrou com a vida de todos nós. Meu marido tinha negócios com o pai do rapaz e a confusão se fez. Minha família não se recuperou mais financeiramente. Por conta disso, Rogério não conversa com Márcio e nem os dois irmãos. Eu consigo falar por conta de um celular que o Roberto me mandou. Foi o número que sua mãe andou me ligando nos últimos dias. Deu um trabalhão danado para sair de lá.
– Mas agora as coisas vão se modificando. Márcio montará uma editora aqui e não volta à sua cidade porque nos amamos. Mas ficou assim por conta das minhas instabilidades emocionais e o ciúme. Sou muito ciumenta e brigamos várias vezes por conta disso. Numa dessas, saiu da cidade e atravessou o estado indo parar na divisa, mas eu consegui localizá-lo e o trouxe de volta. Nas últimas semanas, vínhamos brigando, porém ele fazia de tudo para nos reconciliarmos, mas dois antes de ser encontrado no apartamento por Roberto, Márcio praticamente tinha parado de comer e só bebia. Na noite anterior tivemos aqui neste apartamento uma discussão feia e optamos por encerrar tudo. Levei-o de volta ao seu apartamento e não soube mais, até que vi que ele não respondia minhas mensagens. Tentei ver os passos que tinha dado. A Fernanda e o Roberto não me falavam nada. Estavam me odiando.
– Também pudera. Os dois adoram o Marzinho, vendo-o se acabar e sabendo que a senhora era a razão disso tudo.
– Pelos contatos que mantemos com as policias de nossa cidade, consegui descobri que ele tinha estado num bar aquela noite, tomou uma dúzia de cervejas e levou uma garrafa de uísque embora.
– Meu deus do céu. Está explicado por que está desse jeito.
– Eu soube que era ele, porque passei as características para os garçons que o atenderam naquela noite. Fui ao apartamento dele, por conta da chave que tenho, porém, não o encontrei lá, mas vi que tinha alguma coisa de errado. Pedi para um investigador localizá-lo para mim. Descobri que estava num hospital público, então o transferi para a clínica onde meu pai ficou internado.
– Ele fez tudo isso porque ama a senhora? Se for isso. A senhora deve ter algo muito especial. O Marzinho nunca foi atirado para as mulheres. Sempre me dizia que para encontrar uma joia rara, não precisa ter pressa. Me dizia que antes da cama, vinha o amor, a paixão. A cama era mero detalhe que poderia ser construída com a anuência do casal. Conhecendo meu filho como o conheço, eu o entendo e compreendo porque aquela cadela da Márcia aprontou com ele.
“- Dona Judith. Márcia foi condenada a trinta anos de cadeia por tráfico internacional de drogas”, disse Eleanora.
Angélica olhou para ela e disse: “- Sei que é muito cedo ainda, mas desejo que a senhora me aceite como nora, porque sou apaixonada pelo seu filho. Espero que fique conosco até a realização do nosso casamento. Assim que ele se recuperar, vamos à Alemanha resolver uma questão da editora e outra de ordem pessoal e, em seguida, oficializaremos a nossa união”.
– Quem é aquela moça com quem a senhora está na fotografia? Parecem muitas íntimas para o meu gosto.
– É outra história que eu preciso também contar à senhora, mas gostaria de fazê-la na companhia do Márcio.
– Olha aqui. Se a moça está pensando que vai meter meu Marzinho nessas putarias modernas, pode tirar o cavalo da chuva.
– É justamente pelo seu filho ser do jeito que é que me apaixonei por ele. Uns os chamam de esquisitão desde a universidade, outros dizem que é carolão. A Fernanda diz que o adora, mas não serve para ser marido dela. Ainda bem, porque ele é a minha joia rara, como ele diz: ‘meu prego no concreto. O que faz meu mundo parar de girar em desarmonia”. Fique conosco até tudo estar resolvido. Aqui em casa tem o quarto de hóspedes que a senhora pode ficar e cuidar do seu filho. Não quero gente estranha dentro de minha casa e não confio na Fê. Meu ciúme, às vezes me cega. Deixe-me ir ver como ele está.
Angélica deixou Judith conversando com Eleanora que poderia dialogar de mãe para mãe e ir arrefecendo as resistências da mãe do Márcio. A arquiteta não resistiu e sorriu ao descobrir o apelido de infância do jornalista.
– Dona Judith! O que vou dizer é de mãe para mãe e talvez entenderá o que Márcio significa para a minha família e sobretudo para Angélica. Eu já não tinha mais esperanças de abraçar Amadeu. Por conta de problemas com meu marido, ele saiu de casa e só não foi viver nas ruas porque a irmã conseguiu, silenciosamente, ajudá-lo. Colocamos seguranças para cuidar dele. E Angélica arrumou um apartamento para que pudesse morar. Amadeu começou a fazer tudo do mesmo e entrar numa espiral de autodestruição.
– Entendo, mas o que Marzinho tem a ver com tudo isso?
– É onde quero chegar. Num belo começo de noite, o seu filho foi parar no mesmo bar em que Amadeu frequentava diariamente. Bebia solitariamente porque ninguém conversava com ele porque só falava de uma forma enigmática, usando as peças do jogo de xadrez. Márcio, jornalista que estava se afundando na redação daquele jornal sem inspiração para seguir em frente, sentou e começou a conversar com meu filho que gosta de escrever poesias e vinha de uma situação emocional complicada. A mulher que ele é apaixonado havia sumido. Naquela noite, o Marzinho embarcou na viagem de Amadeu e conseguiu o que parecia impossível. Localizou a mulher pela qual o meu filho é apaixonado, mas também ele, Márcio, acabou se apaixonando pela minha filha que tem um gênio do cão.
– Quer dizer então que meu filho, com esse jeitão de esquisitão, carolão encontrou outro como ele e conseguiu mostrar a saída daquele mar de lama em que o seu filho estava metido.
– Exatamente isso. Observe que faz uns meses que a senhora não paga mais o aluguel do apartamento do Márcio.
– Sim! Eu falei com o pessoal da imobiliária e fui informado que o dono ainda estava pensando o que fazer, mas de antemão eu poderia ficar sossegada que ele não ficaria na rua.
– Sim. Quem comprou o apartamento para presentear o seu filho foi a Angélica, mas ao mesmo tempo ela se apaixonou pelo Márcio e não estava sabendo lidar com isso, mas o queria o tempo todo do lado dela, controlá-lo, saber onde estava, onde ia. A senhora sabe onde isso poderia acabar e como de fato acabou.
– Ela gosta de meu filho desse jeito mesmo?
– Tem um ciúme dos infernos dele. Ele nem pode olhar do lado e as brigas normalmente aconteciam por conta disso. Até que se separaram umas duas vezes e tentaram se reconciliar da mesma forma como brigavam. Mas quando o Márcio foi parar na UTI, ela ficou sem chão. Queria vê-lo a todo custo, mas o casal de amigos dele não deixava. Quando Márcio foi para o quarto e já podia escolher, Roberto e Fernanda falaram com ele e ela o trouxe para casa. Se Angélica não casar com o seu filho, não sei como ficara em paz com a própria consciência.
– Eu quero saber o que a senhora acha disso tudo?
– Se o teu filho fizer a minha feliz e creio que já está, não faço objeção alguma.
– Mas ele é preto e sua filha é loira dos olhos esverdeados.
– Hoje isso não conta em minha visão de mundo e quem me auxiliou na mudança foi seu filho que, mesmo eu tendo lhe ofendido aqui nesta sala, não revidou, não me disse um nada. Vários acontecimentos me permitiram ver o quanto eu estava errada. Pedi perdão ao seu filho e ele disse que não o faria por não ser hipócrita, mas que no momento certo isso iria acontecer.
– É bem próprio dele. Mas, e seus parentes o que podem dizer?
-Aí é com eles, mas minha filha vai conviver é com o seu filho e quem não gostar porque ele é preto e ela branca, que vão tomar no cu. Se ficarmos atentando para aqueles que não gostam de nós, deixaremos de dar atenção àqueles que nos amam do jeito que somos, além de não verem todo esforço que minha filha fez para tê-lo, os acessos de ciúmes e conhecendo ela como eu conheço, seu filho é um homem singular. Fique conosco até os dois oficializarem a união. Garanto que Márcio ficará imensamente feliz em tê-la aqui.
– Se vocês não se incomodarem, ficarei aqui para cuidar do meu menino.
Enquanto Judith terminava de dizer isso, Márcio é conduzido por Angélica até a sala. “- Mãe. Sonhei que a senhora tinha ficado para o meu casamento com essa minha Rainha esmeraldina!”
– É isso que quer, filho? Mesmo sabendo que essa moça é meio desparafusada das ideias?
– Se ela quiser que eu coloque os parafusos no lugar certinho, é o que mais quero. Ela virou minha vida de cabeça para baixo, tendo apenas um motivo para isso: o amor que me sente. Ela me deixa em paz. Ela fica comigo nas noites vendo os vaga-lumes bailando no céu através de uma bela sinfônica regida pelo deus Eros. Agora se ela não quiser, assim que eu ficar recuperado volto com a senhora para enfrentar meu pai. Ele precisa entender que não tive culpa porque os negócios dele foram arruinados. Eu apenas reagi de forma impensada, mas não teve um só dia nesses últimos cinco anos em que eu não tenha me penitenciado. Porém, se eu cometi algum crime, eu já paguei por ele nesses últimos tempos.
Antes mesmo que Márcio terminasse de falar, Angélica já foi antecipando: “- Claro que eu me caso com você e isso pode ser feito agora se tu quiseres, meu Marzinho”, disse isso, beijando-o na frente das mães. “- Vamos com calma. Temos coisas que precisam ser resolvidas antes e, aí sim, tornaremos tudo oficial com uma pequena recepção para os amigos”, explicou o repórter.
“- Essas coisas que você diz que precisam ser resolvidas tem a ver com a moça do retrato, Angélica”, pergunta Judith.
“- Tem sim mãe! Mas é uma coisa entre eu e ela. Não diz respeito à senhora, nem a dona Eleanora e quem quer que seja. É uma decisão nossa. Afinal já estamos com mais de 30 anos e podemos decidir o que é melhor para nós dois”, responde Márcio se antecipando para não deixar a arquiteta constrangida.
– Marzinho. Se ela não te fizer feliz. Eu arrebento ela inteirinha. Afinal ainda sou sua mãe.
Todos deram risadas. Márcio foi até a mãe, a beijando e agradecendo a bênção dela para a união dos dois. “- Isso merece um brinde”, disse Eleanora.
“- Márcio está proibido de beber. Recomendações médicas”, explicou Angélica.
– É! Acho que bebi toda a cota que tinha direito. Mas vocês podem tomar vinho e eu vou de suco. O importante não é o conteúdo do brinde, mas sim o seu sentido e simbolismo.
Eleanora olhou para o relógio, fez uma ligação e em seguida falou. “- Hoje todos vamos jantar na mansão. Depois dona Judith volta para cá com o filho. O que vocês acham? Todos concordaram?
Enquanto Márcio era paparicado pela mãe, Eleanora chamou a filha de lado e perguntou qual cardápio poderia fazer naquela noite por conta das condições de Marzinho. Ao dizer isso deu risadas. “- Um homão deste sendo chamado de Marzinho. Eu posso com uma coisa dessas?”, disse Eleanora dando um tapa na bunda da filha.
– Mãe eu falei com os médicos que cuidaram dele e me informaram que é para evitar comidas gordurosas de difícil digestão, bebidas com teor alcóolico. Então acho que pode ser peixes e saladas. Não vou deixar ele comer carne vermelha. Vou aproveitar para mudar a dieta dele.
– Mas e se o Amadeu quiser?
– Faça para ele, para a senhora e também À mãe dele. Agora a comida do Márcio é minha responsabilidade.
– Coitado desse homem. Achou o amor em você, mas também uma mandona!
– Eu aprendi com a melhor que a amo muito. Obrigado por estar comigo nesses momentos complicados de minha vida.
Mãe e filha caíram na gargalhada. “- Vai lá preparar o Marzinho para o nosso jantar”, disse Eleanora voltando para a sala e dizendo a Márcio que Angélica o chamava no quarto.
– Mas esse menino já tem roupas na casa da namorada? Não é muito cedo? Ele não deveria ir para o apartamento dele?
“- O apartamento dele está ocupado com Roberto e a esposa dela, a Danisa. Vão ter um bebê e a casa em que moravam está passando por reformas, então o Marzinho cedeu o espaço para eles, enquanto se recupera na casa da namorada”, explicou Eleanora.
Quando Márcio e Angélica deixam o quarto, Judith se apressa em dizer que a camisa não ficou boa. “- Você não tem outra? Essa ficou horrível. Onde estão aquelas que sempre usou e tinha uma coleção delas”, pergunta a mãe ao filho.
Angélica tenta dizer que achou a que vestiu lhe caiu. “- Menina. Se eu estou falando que ficou feia é porquê ficou! Quer discutir comigo que sou mãe dele?”.
Eleanora e a arquiteta ficaram impressionadas e aguardavam uma reação de Márcio que, serenamente disse: “- Vocês duas querem parar de discutir por conta de uma simples camisa. A minha opinião não conta?”
“-Não!”, respondeu as duas.
Todos caíram na gargalhada. Márcio calmamente explicou para a mãe que aquela camisa ele é quem tinha escolhido quando comprou na loja em que Fernanda trabalha.
– Quero conhecer pessoalmente essa Fernanda.
“- Para quê”, pergunta Angélica com os olhos arregalados.
– Para saber o quanto ama o meu filho. Pelo tamanho dos seus olhos, você já deve ter se estranhado com ela. Se esse rapaz aqui fosse mulherengo como o pai, tu podias até se preocupar, mas como foi de poucos namoricos, então se aquiete e apenas o faça feliz!
Automaticamente Angélica se agarrou ao futuro marido, provocando risos nas duas mães. “- Vamos! Estou preocupado com Amadeu. Quando sai, prometi levar o Márcio para conversar com ele. Falou que tem mais de duzentas cartas para mandar a Tarsila. Começou a desconfiar que o encontro não aconteceria”.
Ao entrar no carro, a arquiteta fez menção de querer que o jornalista fosse no banco do carona do seu lado, mas Eleanora se apressou e entrou, indicando que o certo era o Marzinho ir ao lado do oceano de amor que era Judith. Mãe e filha se entreolharam e Angélica compreendeu a ação da matriarca.
No trajeto, a motorista prestava atenção na conversa de Márcio com Judith e percebia a sinergia que eles tinham. O assunto era Rogério. “-Tenho que falar com seu pai. Deixe que eu o dobro. Quero ele aqui no seu noivado, casamento, sei lá o que for. Você já está morando com a moça”, falou com simplicidade.
– E se ele não quiser vir, mãe?
– Então ele que vá tomar no cu e fique lá com a soberba dele. E se ficar enchendo o saco, digo que não volto mais e aí ele está livre para ficar andando com aquelas cadelas que só querem o resto do dinheiro que ele tem. Ou ele acha que elas morrem de amores por ele?
– Está bem, mãe! Vou deixar com a senhora. O Esdras e o Leônidas será que veem?
“- Esdras pode até vir, mas Leônidas se o teu pai cagar uma tonelada de bostas e mandar ele comer é capaz de devorar num segundo e ainda perguntar se tem mais”, lhe informou Judith.
– Mãe! Quando for falar com eles, não cite nada sobre a condição financeira da família de Angélica. Não quero eles aqui por saberem que ela é presidente das Organizações Oliveira. Devem vir pelos nossos laços sanguíneos.
“- Vindo de você eu esperaria isso mesmo. Sem apego às coisas materiais, dinheiro e exibicionismo”, disse a mãe com carinho olhando o filho.
– Não sei ser diferente e não tenho tempo e nem paciência para mudar. Quero gastar minhas energias fazendo Angélica feliz. Acho que tanto eu quanto ela merecemos isso. O nosso passado é doloroso, então porque não colocar um pouco de mel e luz em nosso futuro.
Ao ouvir isso, os olhos de Angélica se encheram de lágrimas. Eleanora pegou na mão da filha e deu aquele apertão dizendo que tudo ia ficar bem. Era uma questão de tempo.
Quando chegaram a mansão e entraram na casa, Amadeu chegou pertinho de Márcio e falou bem baixinho no ouvido do amigo: “-Eu não te falei que a Rainha diaba ia te deixar doido. Olha só onde você foi parar. Eu vi você com um pé no féretro e outro na maca hospitalar. Mas a minha terapeuta disse que foi apenas um susto e que agora a aranha vai te deixar livre. Você não está pensando em voltar para tua cidade?”
Márcio deu risadas por conta da velocidade com que o poeta lhe disse tudo isso. “-Não Amadeu. Eu não vou voltar. Eu prometi que tu irás encontrar a Rainha de Ébano na Alemanha e te levarei até ela. Minha mãe não veio para me buscar. Está aqui apenas para eu me recuperar bem e anunciar o ajuntamento com a sua irmã. Eu não sei se será noivado, casamento. Só sei que eu serei o namorido dela e você será, finalmente meu cunhado.
– Vem aqui ver a quantidade de cartas que eu já escrevi.
Ambos foram ao quarto de Amadeu. Márcio ainda caminhando lentamente, mas com a passada firme acompanhou o poeta, enquanto as mulheres ficaram na sala conversando. Lógico o assunto era o tal noivado que poderia ser casamento ou oficialização de que a Rainha Diaba conseguiu aprisionar o Cavaleiro em sua torre.
– Fiquei impressionada como o Amadeu gosta do meu Marzinho.
“- Nós também dona Judith”, disse Eleanora.
“- Eles são muito parecidos”, explicou Angélica.
– Mesmo que eu o quisesse levar embora, não poderia. Você é uma menina porreta. Conseguiu conquistar aquele coração trancado a sete chaves do meu filho!
“- Dona Judith. Eu posso dizer a senhora que a coisa foi complicada. Mas Márcio não é perfeito. É turrão! Chato, mas é a pessoa que saberá dançar o baile da vida comigo. Eu tenho certeza disso”, disse Angélica toda sorridente.
– Ele é quietão. É mandão, mas é um meninão bom. Dos três, acho ele o mais sereno. Por isso que todo mundo estranhou quando ele partiu para cima daquela gangue de vagabundos conduzidos por Márcia naquela putaria na véspera do casamento dele. Foi um horror. Um escândalo. Todos apontando o dedo para o meu filho, enquanto aquela puta de cabaré de quinta tentava se passar de vítima. A sorte dela é quem viu foi o Marzinho, porque se fosse eu. Já passou. É passado.
As três continuaram a conversar e Angélica quis saber mais sobre o namorido e como ele foi ficando assim. “-Bom. Ele sempre foi na dele. Os amigos diziam que tinha um pé na lua e outro a caminho. Eu via os colegas apresentando namoradas, indo em casa e nos apresentando como sendo aqueles namoricos adolescentes e o Marzinho só na conversa. Um dia eu perguntei a ele porque não aparecia com namorada. Ele foi seco: não estou com pressa de dizer para os outros que sou homem e fico de pau duro quando vejo uma mulher”.
As duas riram, porque imaginaram ele dizendo isso para a mãe. “- O pai escutou e gritou com ele. Se tu fores veado, pode arrumar as suas coisas e sair de fininho. Não fiz filho invertido. Márcio falou mais alto: o cu é meu e eu faço com ele o que quiser, mas posso também fazer um filho e trazer aqui para o senhor sustentar. Aí diz aos seus amigos retardados que ele é filho do meu é homem. Quando Rogério partiu para cima dele, eu entrei no meio”.
– E como a coisa ficou?
– Márcio saiu de casa. Ficou uns tempos na casa de uma amiga e só voltou porque eu pedi. Mas aí a relação com o pai já tinha azedado. A conversa entre os dois eram monossilábicas. Sempre que Rogério queria alguma coisa me dizia “‘fala para aquele teu filho’ou ‘fale para aquele teu irmão’”. Depois daquela briga, senti que o Marzinho começou a se fechar.
– A senhora sabia que ele é gago?
– Sabia sim. E até hoje eu não sei como consigo controlar aquilo. Quando ficava nervoso, a voz não saia. Ficava mais possesso ainda e parava de falar. Achei estranho quando ele falou que ia fazer jornalismo.
– E como foi que Márcia entrou na vida dele?
– Segundo ele, a conheceu numa festa que insistiram para ele ir. Foi num sábado à noite. E ele apareceu na segunda-feira me falando que estava apaixonado. Achei estranho. Como se apaixona por alguém do nada. Isso não existe. Pensei: “aí tem coisas”, mas não quis jogar água na churrasqueira dele. Bom acho que o resto vocês já sabem. Aquela bandida vendeu a história porque precisava de dinheiro. Depois que o pai faleceu, a expulsaram de casa.
Quando Judith terminava de falar, Amadeu apareceu todo alvoroçado dizendo que Márcio ia ser o editor das cartas que ele ia entregar pessoalmente para Tarsila.
“- Quem é essa Tarsila”, perguntou Judith.
– É o grande amor do meu irmão. Ele é doido por ela. A senhora sabe como ele a chama?
– Não!
“- Pergunte a ele”, pede Angélica.
– Meu jovem como se chama a sua amada?
– Tarsila, minha Rainha de Ébano. O Márcio vai se casar com a minha irmã e será o Rei de Ébano e a Rainha branca e eu e Tarsila seremos o Rei branco e a Rainha de Ébano. O quarteto que dará um xeque-mate no racismo que campeia esse país fingindo não existir.
Enquanto Amadeu voltava para o quarto onde Márcio estava, Judith assustada perguntou: “- Vocês querem me dizer que Tarsila é preta”.
– Sim e está na Alemanha. Vamos levá-lo até ela. Acreditamos que se ela não quiser voltar ao Brasil, Amadeu ficará por lá.
Assim que Angélica termina de explicar, a empregada informa que o jantar será servido.