18
Márcio foi o primeiro a acordar. Os ponteiros do relógio ainda andariam um pouco para indicar a chegada das cinco horas. Olhou para cama onde estava Angélica. “O que está acontecendo comigo? Essa história com essa ricaça não passará pela entrada da cidade. Acho melhor definir tudo no caminho. Não quero retomar a vida no jornal e em meu apartamento com ela dizendo que me ama, mas bastará ver a esposa na Alemanha que tudo mudará. Não vou embarcar nessa. Já chega ter servido de chacota e passar por idiota para aquele retardada da Márcia provocar seus pais. Chega!”
Enquanto pensava essas coisas, a arquiteta rolava na cama, como fez no começo da noite do dia anterior. Tateava querendo encontrar alguma coisa. Repetiu duas vezes o movimento com as mãos. Não achando o que procurava, abriu os olhos e viu o repórter em pé fitando-a. “- O que foi amor? Tem formiga na cama.?”
– Não patroa. Temos que pegar a estrada e uma longa conversa para termos. Em nosso mundo você é a ricaça e eu sou o simples repórter que precisa voltar às suas funções. Vou tomar um banho e depois você faz o mesmo. Vamos ver se saímos daqui antes que o sol encante o mundo com seus tons laranjas.
Antes de chegar à porta do banheiro, Márcia já viu Angélica interceptar o seu caminho. “- Que história é essa de no nosso mundo eu volto a ser a ricaça e você o repórter dum jornaleco e que tudo será como antes? Quer me explicar melhor?”
– Teremos a viagem para conversar sobre isso. Agora quero tirar o restante do sono do corpo. Vamos tomar café no hotel ou paramos em algum lugar para forrarmos os estômagos?
– Nós não vamos a lugar nenhum enquanto o senhor continuar com essa história. Não fiz essa viagem toda para chegar em nossos mundos e você cair nos braços daquela puta que anda rondando a sua casa. Se for assim, prefiro mofar aqui nesse quarto de hotel, mas tendo você do meu lado.
– Angélica não vamos nos iludir. Uma coisa é a ficção, o conto de fadas e o “foram felizes para sempre” e outra é a realidade e a nossa é simples assim: você está num grau social em que eu não me encaixo, não alcanço e não quero estar. Será que podes me entender?
– Vai tomar no seu cu. Vai lá tomar seu banho, cagão dos infernos. Frouxo. Agora eu entendo porque vive fugindo do passado, mas ao mesmo tempo querendo permanecer lá. Talvez queira ficar enterrado em pequenas cidades ruminando a própria covardia. Faça o seguinte: não precisa retornar comigo! Permaneça aqui e siga o seu plano e aproveite para comprar uma sepultura e se enterre vivo, seu filho de uma puta.
O repórter entrou no banheiro e Angélica seguiu para a janela do quarto, completamente transtornada. Revoltada e com os olhos em lágrimas. “Eu não entendo esse cara. É uma joia rara. Não quer dinheiro. Não quer posição social. Sei que me ama e ainda assim recusa tudo isso. É ser espartano demais. Aquela filha da puta mexeu mesmo com o cérebro e o coração dele. Se eu voltar sem ele, por conta dela, tenho certeza, a farei desaparecer do mapa. Ela não pode ficar com Márcio depois de tudo o que fez com ele. Eu não vou deixar”.
Antes mesmo de terminar o pensamento, Angélica estava batendo na porta do banheiro. “-Márcio! Márcio! Márcio! Quer abrir a porra dessa porta? Se não abrir, o prédio inteiro vai acordar enquanto eu tento derrubar essa maldita porta”, bradou a arquiteta.
Antes que ela continuasse a esmurrar a madeira, o jornalista abriu estando enrolado na toalha. “- O que a madame deseja? Sabe que odeio chamar a atenção sobre a minha pessoa. Ontem à noite na pizzaria foi um vexame só. Depois me falou horrores e novamente agora vomitou um monte de arrazoados inverossímeis”.
– Um monte do quê?
– Ah deixa para lá. Tome o seu banho e vamos. Temos uma longa viagem. Quero chegar logo em casa e retomar as minhas coisas.
– Olha aqui Márcio! Se estais pensando em me deixar por conta da Márcia, acho melhor ir tirando o cavalo da chuva. Se isso acontecer, não respondo pelas consequências. Quer saber de uma coisa. Quem está de saco cheio sou eu. Vá se foder. Você é um porra de um perdedor e quer ficar se arrastando feito um esmoleiro de localidade em localidade. Não precisa nem entrar no carro se não for para ficar comigo. Estou farta dessas suas criancices. Vá para o inferno.
Assim que Angélica entrou para o banho. Márcio acabou de arrumar os seus pequenos pertences, passou pela portaria, acertou a hospedagem. Perguntou para o atendente onde ficava a rodoviária. Após ser informado, seguiu em frente.
Quando a arquiteta saiu do banheiro, conversando com ele e já pedindo novamente desculpas, Márcio, na rua caminhava para a rodoviária. “Vou comprar passagem para um transporte coletivo. Assim não preciso deixar nome e nem documentos”, pensou o repórter enquanto acelerava a passada para chegar logo no terminal.
Angélica ligou na portaria para saber notícias do amigo. Foi informada que ele pagou a diária e saiu em direção à rodoviária da cidade. “Caralho! Que filho da puta. Mas não vai mesmo”, pensou a arquiteta. Pegou todos os seus pertences, colocou na bolsa de qualquer jeito. Ao chegar no saguão do hotel, perguntou ao atendente se fazia tempo que o “marido” tinha partido.
Ao sair com o carro, cantou pneu e foi até a rodoviária. Estacionou o carro e ficou procurando por Márcio. O terminal estava cheio de pessoas, pois servia também de ponto de coletivo da cidade. Fitou quase todos e viu seu amado em pé, esperando o seu ônibus e completamente desligado do mundo. “Cachorro! Não sei por que faz isso”. O repórter olhou para o relógio de pulso e num maior que fica no alto próximo ao teto do prédio. Fez um movimento que era só dele. Saiu e foi ao banheiro. Angélica o esperou na porta dos sanitários. Quando ele saiu, não deu nem tempo de pensar, já levou um tabefe no rosto que, pelo barulho do estalo, chamou a atenção de muita gente.
– Você vai entrar naquele carro e voltar comigo. E não quero nenhuma desculpas esfarrapadas. Estou cansada de ficar correndo atrás de você. Se eu tiver que te buscar em mais uma cidade, com certeza a sua última roupa será um paletó de madeira. Agora vamos!
– Nem pensar! Quem cansou fui eu. Você só me ofende e depois pede desculpas. Está me achando com cara de vaso sanitário? Segue o teu caminho que eu sigo o meu, mesmo não sabendo para onde vou!
– Mas eu sei! Você vem comigo!
– Eu já disse que não!
– Quer que todo mundo aqui veja o que você já viu e experimentou?
– Você não é nem doida de fazer um troço desse aqui no meio desse mundão de gente que eu nem sei quem é.
Ao olhar do lado, viu uma pessoa que reconheceu. A garçonete da noite anterior. Quando confirmou de quem se tratava, Márcio ficou sem chão e Angélica ameaçava começar a tirar a blusa. E o povo pedia “tira, tira, tira!”
O repórter puxou ela pelo braço e saíram, mas deu tempo de escutar a garçonete conversando com uma amiga.
– Aquela lá é a doida que te falei de ontem a noite. Pensei que fosse me esgoelar por conta do negão dela. Olha aí a consequência de tanto ciúmes. Eu já estava aqui pensando que de repente se pegássemos o mesmo ônibus, poderia não ter parada alguma.
– É! Janaina, eu entendo a loucura dela. Com um homem desse como marido, você tem que cuidar, porque se outra pegar, não larga mais. Vistes como ele estava em pé ali perto da plataforma. Nem parecia que pisava no chão e que tem uma linda mulher do lado, porém, maluquinha de tudo. Se eu fosse ela, faria qualquer coisa para não deixar escapar.
As duas amigas saíram rindo, mas ficaram surpresas com o que viram dentro do carro.
– Olha aqui Márcio. Se me fizer correr atrás de você de novo, a situação não vai ficar assim.
– E vai ficar como dona patroa, mandona, autoritária!
Antes de terminar a frase, Angélica agarrou Márcio e deu um beijo que lhe tocou alma. Em seguida saiu cantando pneu e pegou a estrada. Após andarem uns dez quilômetros, ela parou o carro. Fitou o repórter e pediu em prantos para perdoá-la. “- Amor, estou perdida. Não sei o que fazer. A cada ação sua que pode me distanciar de você, me tira o ar, me tira tudo. Fico sem chão”.
– Angélica! Vamos fazer assim: termina tudo com Rosângela, procure uma psicóloga. Se equilibre e aí depois me procura e conversaremos.
– Nem pensar. De jeito nenhum. Pare de tentar fugir. Só me responda uma coisa: o que você sente por mim, mesmo diante de tanta confusão?
– Se eu falar que não te amo, estaria mentindo. Mas é muita coisa aqui dentro da minha cabeça. Eu sei que os seus sentimentos são sinceros e advém d’alma. Mas parece que há algo aqui dentro pedindo para eu seguir sozinho e que nós dois juntos será uma catástrofe total. Olha só para mim. Não vejo e nem falo com meu pai e nem meus dois irmãos há cinco anos. Somente com a minha mãe e ainda assim escondido. Ela não sabe metade do inferno que eu vivi.
O repórter continuou: “-Você me chamou de covardão, cagão, medroso que prefere ficar num passado, mesmo que horrível, do que tentar construir um futuro melhor. Assim como você, também estou inseguro. Tenho medo que você não se separe de Rosângela e eu fique entre vocês duas. Eu não acho justo. Sou egoísta e quero você só para mim e não a dividirei com mais ninguém. Sim! Estou tentando fugir de ti, desse amor que pode ser apenas chuva de verão, dos seus ciúmes. Estou fugindo de tudo, para talvez ter, na velhice, uma narrativa e dizer: “É! poderia ter sido diferente”.
– Amor! Não vamos deixar que esse medo nos consuma. Não precisa fugir. Eu não aguento mais isso. Olha as loucuras que faço para não deixar você ir embora. Por favor, deixe meu coração em paz para eu dividir esse amor contigo. E vamos juntos para a Alemanha. Se não quiser estar comigo quando eu conversar com Rosângela, eu acho até melhor e assim você aproveita e conhece Berlim e depois podemos fazer um tour pela Europa.
Ao olhar para Márcio, Angélica percebeu que ele chorava e por vários motivos. “Acho que esse homem nunca foi feliz na vida. Entendo as pedradas que levou e em virtude disso, pode estar mais acostumado aos espinhos do que às rosas. Se conseguirmos passar dessa fase, quero dar-lhe todo o amor do mundo”, pensou a arquiteta enquanto apertava a mão de Márcio, colocando o carro em movimento para seguirem viagem.
Percorreram aproximadamente 50 quilômetros sem se falarem. Cada um imerso em seu mundo, observando como seria possível fazer esse relacionamento dar certo. O primeiro a quebrar o silêncio foi Márcio: “- Vamos parar para comer alguma coisa. Meu estômago já começa a olhar diferente para os órgãos que lhe são adjacentes”.
Angélica concordou, abrindo um temerário e sorriso, talvez provocado por tudo aquilo que fez nos últimos três dias. Ela não era fácil, geniosa, mandona. Márcio também tinha lá seus momentos em que era turrão. Não queria se ajustar a modernidade, sempre metido em roupas que ficaram no passado. “A parada não vai ser fácil. Mas acho que vamos conseguir”, pensou Angélica descendo do carro e pegando rapidamente na mão do repórter, indicando que entre pensar e agir, há uma distância muito longa.
O repórter assentiu e deixou sua mão ficar na dela. Apenas trocaram olhares e entraram no restaurante. Sentaram-se um dia do outro e a arquiteta mais fitava Márcio como querendo ver para onde seus olhos se dirigiam. Como ele não usava aliança e ela sim, provavelmente como um estereótipo, pudessem passar a ideia para muitos de que o repórter seria o motorista e ela a madame. A garçonete se aproximou séria perguntando o que a mulher queria. “- E o senhor? O que deseja? Posso recomendar o prato da casa?”
Automaticamente Angélica trocou de lugar, se sentando ao lado do repórter, lhe chamando de amor e sugerindo que tomassem suco, uma fatia de queijo, pão na chapa e pingado. “- Acho que é o suficiente para nós dois. Logo estaremos em casa para almoçar”, completou a arquiteta olhando diretamente para a atendente.
– Pode ser querida. É só para forrar o estômago mesmo.
A atendente anotou o pedido e saiu com um sorriso sarcástico do lado, pensando. “O negão é um belo homem e a loura sabe o macho que tem, mas é um capacho dela. Detesto homem que deixa a mulher mandar em tudo. Este aí não pode nem escolher o que deseja comer. E o olhar dela? Exala ciúmes”.
– Angélica! Nem bem começamos e novamente você já apresenta as suas garras de mulher ciumenta. Olha o que conversamos. A garçonete só quis ser gentil.
– Ela que vai ser gentil com a puta que pariu ela. Não com meu homem!
– Não sou seu homem, mas apenas um simples repórter dum jornaleco, como tu outrora dissestes. E por não desejar o Pulitzer, se meteu numa matéria que não existe mais, porém está com as consequências do não realizado. E mais: com uma mulher que sente o cheiro de outra a quilômetros. Assim que chegarmos, vou comprar uma armadura.
Ao dizer isso, deu um sorriso que deixou Angélica nas nuvens, porque atingia toda a face do jornalista. Pela primeira vez via Márcio sorrindo com os olhos. “ – Olha só. Se tu tivesses dado essa risada para a garçonete, eu ou ela ficaria despedaçada nesse chão. É por essa e outras coisas que tenho ciúme”.
– E bota ciúmes nisso. A pobre da garçonete, a exemplo do que você fez com aquela moça da pizzaria ontem à noite, saiu sem entender nada.
– Entendeu sim. Mulheres! Ah e por falar na garçonete da pizzaria. Hoje de manhã eu a vi na rodoviária. Você tinha marcado de fugir com ela? Ainda bem que cheguei a tempo.
Márcio olhou para Angélica, não respondeu nada, apenas deu uma sonora gargalhada quando a atendente chegava com os pedidos. Esta não deixou de observar e falar, como forma de ser simpática.
– Olha só! Que belo sorriso para começar mais um dia de trabalho.
– Mas já tem dono, minha cara.
– Parabéns! A senhora é uma mulher de sorte! Estar casada com um homem lindo, simpático e sereno, e com um sorriso que mais se parece com o nascer do sol, não é para qualquer uma. Quereria eu poder estar no lugar da senhora.
Quando Angélica ia dizer alguma coisa, Márcio apertou a mão dela, indicado que não precisava dar espetáculos. Assim que a garçonete se afastou, a arquiteta disse entre os dentes: “- Se ela voltar aqui vai apanhar naquela cara lavada. Te cantou na cara dura e sem a menor cerimônia”. O jornalista não resistiu e deu novas gargalhadas. “- Quer parar de rir assim. Está me deixando toda molhada”. Ao ouvir isso, Márcio a provocava mais ainda e olhava para ela e ria.
– Amor! Pare com isso. Ela só fez isso para te provocar. Na certa percebeu que você é ciumenta e resolveu atiçá-la, te provocando e tu reagindo. Controle esse seu sentimento. Já começo a vê-la arrumando confusão por nada. Você se lembra da notícia de uma mulher que brigou na seção de votação.
– Acho que só li o título. Aliás eu só comecei a prestar mais atenção aos jornais quando vi aquele seu texto querendo falar da vida de meu irmão e expor um segredo familiar. Ah! Como fui tola.
– Não acho que foi. Se não tivesse sido tão temperamental, mandona, autoritária, eu não estaria agora nessa beira de estrada assistindo seu ciúme desmedido.
Ao dizer isso, o jornalista cai na gargalhada e agora mais intensa ainda por saber que Angélica estava excitada. “- Você é muito malvado. Sabe que estou em brasa e fica aí dando essas belas risadas. Mas vai ter troco. Me aguarde neguinho!”
– Então naquela matéria que eu escrevi, achei interessante o motivo da briga. A mesária foi pegar na mão do eleitor para colocar a digital e votar, mas a mulher dele viu e partiu para cima da servidora. Que coisa de louco.
– É! Mas eu não sou assim não!
– Pelo que eu vi nas últimas 24 horas que passamos juntos, é muito pior. Eu não queria estar na minha pele se eu olhasse diferente para outra mulher. Você nos fritava em óleo quente para fazer sabão. Eu sei que sou ciumento. Começando pela roupa. Se você usar uma peça que mostrará mais do que devia, é melhor nem colocar, pois de duas uma: ou você muda a vestimenta ou não vamos a lugar nenhum. Não quero ninguém olhando mais do que devia em ti.
– Nem pensar! Esquece.
– Experimente. Não preciso me exibir contigo em lugar nenhum. Não quero estar com alguém para ficar te mostrando à sociedade como um troféu. Não tenho interesse nenhum em cultivar slogan do tipo: “o negro que deu certo”. “Se ele subiu, você também poderá”. Não quero nada disso e quanto mais eu ficar sem aparecer melhor.
Angélica respirou fundo. Olhou para o relógio e para os pratos. Chamou a garçonete e pediu a conta. A atendente voltou rapidinho com os valores e Márcio tirou o dinheiro da carteira para pagar a fatura. Ao passar os valores à funcionária, sentiu que ela segurou a sua mão mais do que devia. Imediatamente o repórter disse que o troco era dela.
– Vamos amor!
– Vamos! Porque se eu ficar mais dez minutos aqui vou espancar uma certa pessoa e enfiar os olhos de outro alguém no próprio rabo. Você precisava dar a gorjeta para ela? Tinha que deixá-la pegar na sua mão mais do que devia?
– Você queria que ela voltasse com o troco? Desejava que visse meu nome no cartão e descobrisse onde moramos? E o que mais eu deveria informar a ela? Que sou louco por esses olhos esmeraldinos e que me presenteou com a sua calcinha quando me declarou seu amor? Devo dizer a ela que a madame tem um ciúme maior do que as muralhas da China? Acho que não devo dizer nada, né paixão. Ninguém precisa saber quem eu sou, o que sou. Só tem uma pessoa que eu desejo que me conheça de fio a pavio: essa arquiteta com quem tive, logo de cara, uma briga torrencial e quase fui demitido por conta da empáfia dela.
Quando Angélica estava de pé e Márcio também, este a agarrou e beijou com devoção, dizendo que vai esperá-la o tempo que for preciso. “- Sei que terei a eternidade para fazer a dona desses olhos esmeraldinos, que tanto me alucinam, feliz. Isso se ela e o ciúme que tem, deixarem”, ao terminar de dizer, pegou a arquiteta pela mão e a conduziu até o carro. Ao chegarem até o automóvel, o repórter a encostou na porta do carro, a beijando novamente e agora foi ele quem deu uma mordicada dizendo: “- Não quero essa boca passando por nenhum lugar que não seja esse corpo aqui. Ai de a senhorita que sair da linha”.
De dentro do estabelecimento, a garçonete que os atendeu momentos antes, olhava e pensou “Que mulher de sorte. Estar com um homem desses e ele ainda apaixonado por ela. Ali está uma verdadeira panela com a sua tampa. Eu no lugar dela não deixava ele olhar para os lados nem a pau”, respirou fundo e seguiu em frente.
Já dentro do carro, Angélica era outra. Quem conseguisse ler a sua aura verificaria que, antes de entrarem no restaurante, as cores eram fortes, beirando às escuras e agora era toda colorida, passando do laranja para o amarelo caminhando para o verde das cores dos seus olhos, como naquele quadro O grito. Márcio estava mais leve, mais seguro. Compreendeu que o único jeito para ajudar a amiga a equilibrar aquele ciúme danado, era transmitindo-lhe paz e segurança. “Olhar de soslaio para outras mulheres não é crime algum. Mas só não pode deixa-la ver. Se isso acontecer, o Saara vira uma floresta”, pensou Márcio dando um leve sorriso percebido pela arquiteta, que optou pelo silêncio. Preferiu pegar na mão do repórter e dizer apenas com o olhar que o amava.
Inebriados um pelo outro, seguiram viagem. Às vezes Márcio espiava a arquiteta, inclinando lhe dando um beijo na face, em outros momentos ficava seguidos minutos em silêncio, fitando as matas que circundavam a rodovia. Para depois passar o mesmo tempo só observando Angélica. Para ele, a arquiteta possuía uma certa magia, algo que o permitia tocar o céu, andar pelas estrelas, conversar com o Sol, achar uma pequena cabana em noites de tempestades. Naquele momento compreendeu que teria que brigar muito, mas muito mesmo para tê-la do seu lado, pensando nela, a fazendo feliz. “Não vai ser fácil. Essa mulher tem um gênio do cão. Mas que não precisa ser domado. Se isso ocorresse, deixaria de ser ela, abandonaria sua essência, mas deve ser, sobretudo, compreendido. Será que vou conseguir?”. Ao terminar o raciocínio, se dirigiu à motorista, solicitando um beijo no que foi atendido.
– Coloque uma música para nós, meu caro repórter. Eu confio no seu bom gosto sonoro. Sei que não tem ouvido remissivo. Você sabe o que quer dizer isso?
– Não! Não sei minha cara madame! Apenas que diz respeito aos ouvidos que perderam a capacidade de ouvir sons que não se repetem.
– Tonto. Se sabia por que disse que não sabia?
Escolheu uma estação em que tocava uma antiga canção italiana. “ –Você gosta desse tipo de música, Márcio?”.
– Sim! Gosto de toda música que me diz algo e essa em especial é bem apropriada para o momento. Do nada o repórter começou a cantar a música vertendo-a para o português. Primeiro ele diz que a letra aborda a crença em anjos. “… um anjo desceu para mim/tu, inesperadamente, tu…”. A arquiteta perguntou se era aquilo mesmo que a canção dizia ou estava simplesmente inventando para impressioná-la. Do nada, o repórter começou a acompanhar a música em italiano.
– Seu filho de uma puta. Você sabe falar em italiano e não me disse nada. Por quê?
– Eu aprendi quando achava que valia a pena. Hoje não tem mais sentido algum. Então, não disse porque o nosso assunto, seu irmão, não tinha nada a ver com eu saber italiano ou outra língua qualquer. O foco era tirá-la daquele mundo de lingeries assassinas, enigmas trebelhantes e peças de xadrez, além de descobrir quem era Tarsila.
– O que o senhorito sabe mais e está me escondendo?
– Não tenho necessidade de te esconder nada, até porque não tenho nada para esconder. A minha última fronteira foi descoberta por você e, quando tentei fugir, saiu em meu encalço, inclusive me achando em questões de horas. Então, meu existir é um livro aberto.
– Não! Das páginas que deixa que te leem. Ai dentro de ti sei que tem muitas coisas que você procura remover e outras transformá-las. Mas me diga quando se sentir confortável para falar.
Do trecho em que estavam na rodovia foi possível avistar a cidade. “- Enfim, nossa cidade”, disse Márcio.
– Então quer dizer que o meu neguinho delicioso não vai mais fugir?
– E tem como? Com uns olhos maravilhosos desse que atravessa o estado para me achar. Não existi lugar nesse mundo em que eu possa me esconder que seu coração não me ache. É aquela história: quanto mais eu tento sair, mais fico preso a ela.
Angélica ia pegar o celular para falar com a mãe, mas Márcio pediu para ela parar o carro no acostamento e fazer a ligação. Ela apenas observou o carona e seguiu a recomendação. “- Alô! Mãe! Já estamos chegando. Está sim! Seu futuro genro é divino. Torrão, mas muito apaixonante. Vamos almoçar por aqui e passarmos a tarde juntos. A noite jantaremos com a senhora. Ah liga para o hospital dizendo que vamos pegar o Amadeu amanhã. Ele está bem?”
– Que história é essa de passarmos a tarde juntos? Você decide sem me consultar. Eu estava pensando em ver o meu apartamento, ir ao jornal dizer que estou de volta e saber se ainda tem emprego.
– A única coisa que você precisa hoje à tarde é de ficar comigo e mais ninguém. Já está tudo decidido. Ficaremos em meu apartamento.
Márcio fitou Angélica de forma carinhosa, pensando o quanto será complicado conviver com essa mania de mandar, de querer dominar tudo que a arquiteta tem. “Mas fazer o quê?”, suspirou o repórter enquanto a arquiteta colocava o carro em movimento.