Sobras de um amor…

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Ao ouvir que Angélica subornou alguém para conseguir monitorar seu celular e localizá-lo naquela noite, Márcio entendeu claramente porque Tarsila vivia nas sombras e os motivos que a afastaram de Amadeu. Nunca teriam paz para viver o sentimento mais nobre que une dois seres humanos, mais do que pessoas, mas duas sutilezas que se expressam em condições sociais e étnicas diferentes.  

– Seja gentil! Entre aqui no carro!

– Não entro em carro porra nenhuma e não vou em lugar algum com a senhora. Isso de subornar pessoas para conseguir o que quer, é inconcebível!

– Que belo discurso Márcio, mas só serve para os templos religiosos e seus fanáticos seguidores que idolatram falsos profetas e pregadores do apocalipse. A vida aqui é pauleira. Ou você janta ou é jantado. De que lado do rio você pretende estar? Agora deixa de conversa mole e venha comigo! Por favor, preciso falar com você. Não é nada sobre o meu irmão. É sobre a minha própria pessoa.

– Eu já sei tudo o que você vai me dizer e, sinceramente, não tenho a menor vontade de ouvir. Ah! Mas se tem algo a dizer, te recomendo um terapeuta. Não só para você, mas também à tua família. Todos estão precisando para ver se baixam esse topete de arrogância, essa mania de querer mandar em tudo e em todos, atropelando sentimentos alheios.

– Por que você acha que quero falar contigo? Olha que estou avisando: se der mais um passo que não seja para dentro do meu carro, provavelmente acordará num hospital amanhã cedo ou quem sabe dentro de um féretro. O senhor é quem sabe!

– Lembre-se … não sou psicoterapeuta. Sou apenas um repórter de bosta que entrou em um bar errado num dia incerto e quis fazer uma matéria achando que iria recuperar sua criatividade. E onde estou hoje, passados vários dias daquele encontro inusitado que me parecia ser fortuito? Ameaçado por uma mulher que tem dinheiro e viciada em mandonismo. Então suas doideiras criadas por excesso de luxo não têm nada a ver comigo. Boa noite.

Quando Angélica percebeu que Márcio estava irredutível e começava a seguir em direção ao seu apartamento, entrou apressada em seu carro e acelerou quase atropelando o jornalista que olhou assustado para o veículo. O assombro foi tanto que parecia que seus olhos saltariam do rosto.

– E agora? Você vem ou não vem?

– Você é mesmo amalucada. Sem juízo algum. Isso é que o excesso de dinheiro faz com pessoas sem o menor valor ético e senso moral. Os carros podem ser mais letais de revolveres. Mas quero deixar registrado que entro aí contra a minha vontade. Estou sendo forçado a isso!

Quando Márcio já estava no interior do veículo, viu que a expressão de Angélica era outra e seus olhos estavam mais esverdeados do que antes. O jornalista quis saber o que tanto tinha para lhe falar. Mas antes que ele dissesse alguma coisa, a arquiteta pediu para o repórter esperar um segundo. Fez uma ligação pedindo para reservar a casa 57. O seu acompanhante ficou mais assustado ainda. Será que a irmã de Amadeu estava pensando em levá-lo a um motel e estupra-lo? “Essa gente é tudo doida. Mas já que estou aqui. Vou esperar para ver o que essa doidivanas pretende”, pensou inocentemente Márcio.

Assim que desligou o aparelho, Angélica lhe disse:

– Calma! Não vou te levar para nenhum motel. Nem clube de swing. Não gosto nada disso. Sou bissexual, mas não tenho afeição a esse tipo de comportamento e jogo sexual com vários casais. Tem gente que gosta, mas não é a minha praia. Quando estou com alguém, sou 100% do relacionamento. Então, como sei que o senhor é muito observador, sabe que sou casada e isso é tudo.

– Você ama Rosângela?

– Vou te responder de uma forma diferente da costumeira. Prefiro dizer que o nosso relacionamento está no meio de uma nuvem carregada numa grande noite negra em que não é possível ler o que é poético entre nós. Isso significa que o belo não deixou de existir, todavia o sublime está encoberto, por nuvens que creio serem passageiras, e com forte rachadura. No fundo, o que ocorreu nos últimos dias, indicou que precisamos de um tempo para reavaliarmos, não só o relacionamento, mas também questões que achávamos que poderiam ficar lá fora do nosso apartamento e do casamento. Mas isso é impossível. Se não entendermos certas condições que o mundo material nos coloca, é muito difícil a carruagem, que conduz o amor, seguir em frente.

– Poético, mas não responde a minha pergunta. Mas quer saber? Não me interessa. Estou deixando essa cidade dos infernos. Só estou aguardando terminar isso tudo. E até o final de semana estou fora. Só não sei para onde vou. Mas também sei que para onde vou, não tem ninguém e nada que me espera. Então é fácil caminhar até lá. Sem pressa, sem expectativa alguma.

– É! Parece que você ainda não superou os chifres. Por que você sabe que a tua noiva não estava lá naquele quarto pela primeira vez. Quero dizer: ela já vinha te enfeitando a testa fazia um tempão e isso que te apertou o saco com alicate. Imagina pensar em quantas vezes ela te traiu na cama e no quarto que você montou pagando os móveis a prestação. Realmente é para socar o dedo no cu e sair berrando pelo mundo e ficar andando aqui e ali.

– Como esquecer se nos últimos dias fui lembrado daquela noite terrível que eu tento fazer terminar, mas sempre tem um filho da puta que me faz recordar daquele teatro sexual que me feriu mortalmente a alma. Não tem uma noite em que eu não veja Caronte me carregando para o meio do inferno vociferando as mais abjetas palavras de ordem e fazendo eu ficar com os olhos abertos o tempo todo. Entoando um canto funeste que faz minha alma se arrepender amargamente do dia que este corpo a conheceu. Portanto, acho que ninguém precisaria ficar me lembrando o tempo todo isso, e o que é pior, espalhando para outras pessoas. Acho isso de uma crueldade sem fim, o que me faz entender porque Amadeu surtou e se desligou desse mundo podre que tua família deseja deixar como herança para ele.

Quando Márcio terminou de falar, Angélica desligou o carro. Um cara todo engomado se aproximou do veículo. A arquiteta se apressou em fechar o vidro do lado do carona e abrindo uma pequena fresta do seu lado, por onde passou um cartão. E ligou o carro novamente. Aquilo deixou o repórter mais intrigado e irritado.

– Por que subiu o vidro do meu lado? Está com vergonha de entrar comigo à mostra no seu clube de ricos apodrecidos pelo orgulho? Pode parar aí e abrir a porra dessa porta! Não vou ficar num lugar em que as pessoas me diferenciam por conta de minha cor.

– Quer calar a boca com essa história de racismo! Que merda! Às vezes vocês pretos dão no saco com essa conversa toda. Eu quero que o mundo se foda. Quando estou com uma pessoa, não quero saber se é branca, preta, amarela, azul, mulata, sei lá que de cor, etnia for! Só estou com quem gosto e se te trouxe aqui é porque quero conversar e é o único lugar que conheço que posso ficar à vontade, sem que as pessoas fiquem me olhando como seu eu fosse um caixa-eletrônico, que tem apenas dinheiro para oferecer para alguém. Achei que com você eu poderia ter uma conversa serena. Mas acho que me enganei!

Ao dizer isso, a arquiteta destravou a porta de Márcio e disse a ele:

– Pode sair. E aproveite e solicite um transporte. Meu querido. Deixa eu te dizer uma coisa: você é preto e pronto! Não tem que ficar justificando isso e aquilo para os outros. Pode agradar uns e não a outros, mas se não estiver bem com você, não importa o dinheiro que tem, a etnia que pertence. Então, quando estiver comigo e é claro se for do seu desejo, esqueça essa porra de cor: ‘eu sou preto, ela é branca. Eu sou pobre, ela é rica’. Agora saia do meu carro, por que se ficar, não quero ouvir essa ladainha toda. Já chega Rosângela que me aporrinhava todo o dia com essa converta toda, sem nunca percebeu por que estou com ela.

Márcio olhou para Angélica que, com aquela fala, o desarmou totalmente. Sentindo isso, a arquiteta travou a porta novamente. E entraram no clube. Assim que deixaram a portaria, ela baixou os vidros e o repórter pode ver a beleza do local. Um lago enorme projetado para refletir a luz da lua ou do sol seja durante o seu nascer quando esteja indo para sua morada celestial dando espaço para sua eterna noiva, a Lua, possa brilhar durante 12 horas.

– Fui eu quem planejei esse local. Quando fazemos reservas, indicamos que ninguém pode se aproximar do nosso chalé. Devem ficar uns 100 metros longe e só se aproximam quando os funcionários autorizarem ou solicitamos.

– É como aquele troço lá no seu prédio. Aquela porra de portão-eletrônico só falta pedir a cor da cueca que estamos vestindo.

Angélica deu risada da fala de Márcio. Em seguida explicou porque tudo aqui.

– Quando a pessoa digita o CPF e o RG há uma ligação com a polícia. É feita uma checagem rápida, mas o suficiente para saber a origem e se a pessoa tem passagem ou não e se responde a processo judicial.

– Que porra doida é essa! Isso é demência total.

– Não meu caro! É segurança! Quanto mais se tem dinheiro, menos liberdade se tem. Vai por mim. Não gostaria de levar a vida que tenho. A sua é muito simples e descomplicada. Olha só. Diz que pedirá demissão e vai embora da cidade. Eu não posso fazer isso e nem posso pedir demissão dessa vida que levo. Estou cansada!

Chegaram ao quiosque e Angélica levantou os vidros novamente. Saiu do carro, entrou no espaço com um segurança. Olharam tudo. Se não havia nada que pudesse indicar que estariam sendo vigiados. Somente depois que o vigilante saiu, entrou em seu veículo e foi embora, é que a arquiteta abriu a porta do seu automóvel e Márcio saiu.

– Cruzes! Que mundo cão você tem. Tudo isso parece uma prisão. Agora eu entendo porque naquela noite Amadeu bateu o pé com você dizendo que não voltaria de jeito nenhum. Vocês são doidos de pedra.

– Não nos julgue, Márcio. Aliás não faça isso com ninguém até que deixem saber tudo como é. Depois pode fazer a sua sentença ou escrever o que pretender. Mas posso lhe afiançar: encontrei mais paz no seu apartamento, todo revirado e cheirando a vômito, do que nesse meu mundo aqui.

Escutando atentamente o que a arquiteta dizia, Márcio começou a entender a confusão e a vida de merda que Angélica e Amadeu possuíam. Tinham casas confortáveis, com todo o luxo, mas não conseguiam limpar o cu em paz. “- Não quero isso pra minha vida. Nunca! Ainda bem que quando tudo isso terminar, vou embora e voltar para a minha existência, que para muitos pode ser insignificante, mas tem um certo sentido”, sentenciou o repórter.

Enquanto a irmã de Amadeu arrumava tudo para que ficassem sentados na área do quiosque defronte ao lago, Márcio pode finalmente entender aquela mulher mandona. Era medo, puro medo. Aprendeu a bater para se proteger. A exemplo do irmão, era um cristal a ser lapidado, mas a vida e o dinheiro, não deixou que isso acontecesse como num poema inacabado que a morte levou sorrateiramente o seu autor.

O jornalista se deixou ficar ali. O casal permaneceu no local por quase três horas. Angélica falou de si, de como chegou ali, porque escolheu arquitetura. Era a única forma de trabalhar com arte que permitia conciliar os seus interesses com o de seus familiares. Falou de suas paixões, amores, de Rosângela e também da queda que tem por homens, mas não é qualquer um. Ele precisa ter algo de especial que ela não soube explicar o que era, mas apenas disse que é preciso ter uma certa poesia ao ler a vida. Com um certo lirismo. Uma pessoa sem bula. “Você me entende, não entende?”, perguntou a arquiteta.

Márcio por sua vez abriu seu pequeno mundo à arquiteta, falando um pouco sobre seus sonhos, desejos e querenças. Seus gostos, esperanças e utopias. Sabia muito bem que quando entrava em um determinado lugar, sua cor já estava lá fazia tempo o esperando chegar para resgatá-la e voltarem pelo mesmo caminho. No começo aquilo tudo lhe incomodava, mas levou tanta porrada, tanta cusparada que resolveu se silenciar, gastando toda sua energia para se qualificar. Mesmo que o rejeitassem, o rebaixassem a faxineiro, ainda assim, tinha algo que ninguém poderia lhe tirar: seu conhecimento e sua cultura. Mas jamais ficaria exibindo-a como um troféu. O seu cabedal era fruto de seu trabalho e batalha diária e nenhum branco iria tirar.

Quanto ao seu relacionamento com Márcia, a noiva tinha o mesmo nome que ele e isso era muito engraçado, não quis falar muito, mas tinha coisas mais além da traição. Ela havia dito coisas no calor da discussão que lhe cegara. Segundo ele, a ex-noiva não tinha intenção de casar e armou tudo aquilo para que o noivo a flagrasse em atos lascivos, pois sabia do seu conservadorismo. O objetivo era humilhar os pais que queriam lhe administrar a vida. Começou a namorar Márcio para contrariá-los, porque sabia que detestavam pretos, mas quando souberam que ele estava terminando a universidade, a coisa começava a mudar de rumo e a vingança perdia o sentido. Então, o jeito foi ficar noiva e provocar toda aquela situação, pois achava que o noivo iria explodir e perder o controle. E foi o que aconteceu.

Do nada, o jornalista olhou para o relógio e pediu para Angélica levá-lo de volta. Precisaria fazer o relatório do encontro com Tarsila que deixou de ser misteriosa. Falou para a arquiteta como ela se chamava e aí recordou que a irmã de Amadeu se apresentou, na primeira vez que se falaram, como Tarsila.  Ela deu risadas, informando que o fez para saber até onde ele sabia da vida de Amadeu.

Já dentro do carro, a arquiteta agradeceu a Márcio pela noite, lhe dando um beijo na face de puro afeto. O repórter estremeceu inteiro, com frio passando pela região da coluna, fazendo com que recordasse um dos seus pesadelos. Achou que tinha a ver com Angélica, ou com Márcia. Contudo, achou melhor não alimentar aqueles pensamentos. A motorista colou uma música em que o refrão dizia “da lua cheia eu sei…” e deixaram o clube. Com certeza, ambos estavam melhores consigo mesmos e seus fantasmas.

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