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Ao descer do carro que o conduzira até aquela praça, Márcio seguiu as recomendações dadas pela mulher misteriosa e a uns 50 metros de onde estava, viu que havia um banco com um papel colocado com letras fosforescentes. Ao chegar bem próximo, leu o que estava escrito com letras maiúsculas: “AQUI!”. Ao termino da leitura, escutou uma voz ordenando.
– Pode sentar-se aí nesse exato local. É justamente onde eu posso vê-lo sem que o senhor me veja.
– Quem é você? De onde estou não consigo te ver, mas sei que estais me vendo. Por que tanto mistério por conta de um sujeito amalucado?
– Amalucado para o senhor e para essa gente toda que não sabe ler o que vai n’alma do Amadeu. Um poeta nato. Conversa com as estrelas; lhe dá rosas sem precisar arrancá-la do jardim. É capaz de conversar com o Sol para que você possa pegar um bronze ideal – não que eu precise, mas o senhor entende. Amadeu é muito mais do que um exímio jogador de xadrez, é o homem que eu amo, contudo, não combinamos numa coisa: eu não posso ser branca e ele não pode ser preto e ainda tem aquela família dos infernos que só se preocupa com dinheiro, posição social e aquisições. Aqueles que não se dobram as aquisições, sejam elas de que espécime for, são triturados.
– Afinal, como é o seu nome?
– Achei o jornalista com faro de notícias já sabia. Mas desconfio que uns certos olhos esverdeados tenham ludibriado sua capacidade de enxergar para além do que é dado. Não é essa a sua função: escrever sobre a verdade, principalmente quando os envolvidos não querem que nada seja publicado? Então. Publique isso, ao invés de ficar me procurando feito um degenerado.
– Eu não sei como você se chama. Só sei que o Amadeu ficou amalucado com o seu desaparecimento. E eu tinha interesse em publicar sua história, mas quando descobri que as coisas eram mais complexas, desisti de escrever uma linha se quer. Inclusive vou pedir demissão, assim que ele voltar para os braços da família.
– O senhor não sabe o que está fazendo. Se ele voltar, como está, será a morte certa dum homem que sabe, sobretudo, ler a alma de uma mulher, sem precisar aprisioná-la através do pronome possessivo “meu”. Ele não precisa dizer aos demais dementes que ocupam corpos masculinos que tem ao e do seu lado um ser que o faz andar nas nuvens para dialogar com o dia e com a noite. Ele não ama uma mulher a partir do seu exterior, mas sim a partir da essência dela. O senhor não sabe como aquele homem é genial. Ele até parece uma mulher, de tão especial que é. Se conversar com ele pelas redes sociais é capaz de achar que estava falando com uma mulher, de tanta sensibilidade que exala de suas palavras, coisa que você, jornalista de bosta não sabe. E a propósito que textos de merda tu escreveu. Se eu pegasse aquela parte do jornal e colocasse para forrar a gaiola, os pássaros fariam greve de fome. Eita texto medonho. Horrível. Definitivamente o senhor não serve para o riscado. Acho melhor tentar outra profissão. Que tal a de carregador de bolsa de madame ou puxa-saco de grã-fino esnobe?
– Está bem. Eu já tinha observado que ele é diferente e tem lá suas esquisitices, como usar roupas todas iguais e possuidor duma senhora erudição, mas sempre ficava me perguntando onde foi que o carro de bois dele derrapou. Tem dinheiro que não acaba mais. Tem um mundo aos seus pés, mas o cérebro entrou em curto-circuito.
– Meu caro Márcio, do que adianta dinheiro, posição social, quando tudo o que você quer é estar com a pessoa que ama, mas sabe que qualquer movimento que se fizer nesse sentido, pode aprisionar a sua rainha preta num castelo medieval cercada de grades construídas pelo ódio e ignorância humana. Ele sabe que eu estou por ai, só não sabe onde. Eu cuidava dele todos os dias.
– Como você fazia isso, sem aparecer?
– Usando o mesmo remédio deles: dinheiro e um amigo que topou ser agente duplo cobrando da família deles o serviço equivalente a dois. Antes de o senhor chegar, todas as informações que eram passadas à família de Amadeu me chegavam também. Mas aí você foi cair de paraquedas no bar e resolveu afogar sua incompetência lá dentro. Ferrou tudo. Você com o seu egoísmo provinciano só queria sugar a alma conturbada do meu amor.
– Qual é o seu nome?
– Amadeu já te falou várias vezes: Tarsila. Minha mãe me deu esse nome porque o meu pai chamava Oswaldo, mas morreu quando eu era adolescente. Ficamos eu e minha irmã. Assim que ela entrou na universidade foi-se embora, voltando tempos depois, bem diferente, com outra cabeça, mas aí sabe né.
– Quem é a sua irmã?
– Sem perguntas. Acho que já respondi o suficiente. Agora eu é que pergunto: o que o senhor quer de mim?
– Que você apareça, fale com o Amadeu e lhe explique tudo e fiquem juntos para enfrentar essa situação.
– Como? Eu trabalhava numa livraria para ajudar a me manter na universidade, mas ai o pai dele descobriu que ele estava saindo comigo. Foi lá um dia e, do nada, comprou a livraria e olhou bem nos meus olhos e diz que preto com branco só no café da manhã e de preferência sempre separados. Ele jamais deixaria que o filho lhe desse um neto que não era nem preto e nem branco. Jogou em cima do balcão um pacote cheio de notas e me disse que era o suficiente para eu comprar bananas pelo resto de minha vida. Agora eu lhe digo: o senhor acha mesmo que temos chances? Acho que não e te aviso: se tiver pensando em comer aquela dona, pode tirar o seu pau da chuva, aliás, da ideia de fazê-la gozar. Vai morrer antes. A irmã de Amadeu só está com outra mulher porque sabe que não engravidará dela, então, não terá um filho meio preto, meio branco. Acho que ela é a mais infeliz de todos.
– De qualquer forma, espero que você venha comigo para falarmos com Amadeu. Ele precisa de uma resposta sua. Eu prometo que não vão lhe machucar.
– Faz-me rir, caro jornalista. Tu é chifrudo! Tua noiva deu para outro cara que lhe apresentou junto do pau uma outra língua que a fez entrar em órbita. Coisa que o senhor nunca conseguiu. Quando foi cantar de galo levou tanta esporada que precisou ser socorrido por um amigo que lhe trouxe para essa pocilga de cidade. Ela é grande ou parece ser, mas a mentalidade de seus moradores é provinciana.
– Eu sei disso tudo, mas por favor, eu lhe garanto que não vai lhe acontecer nada. Podemos marcar em meu apartamento se você quiser.
– Apartamento ou chiqueiro? Por que você acha que amanhã a galega mandará uma faxineira lá? Para deixar o apartamento lindinho para um ninho de amor, ou para apagar qualquer vestígio dela lá dentro?
– Cruzes! Você faz o pior juízo dela.
– Eu analiso-a pelo que é, juntamente com seus familiares. Todos doentes por dinheiro e perseguidores de uma ideia de pureza de raça. Coisa mais antiga que deveria ter sido sepultada com aquele outro lunático alemão.
– Vamos lá. Essa é a minha última ação. Não vou publicar porra de matéria nenhuma. E logo depois me mandarei dessa cidade esquecida por Deus e abraçada pelo diabo.
– Bom. Não tinha intenção alguma em aparecer para essa gente, desde que fui chamada de macaca pelo pai dele, mas, como deixarei o país em breve e o senhor vai embora daqui também, então acho que posso fazer isso sim. Pode ser amanhã de noite lá no Bar da Net. O local é seguro e meu amigo vai nos dar guarida. Ele providenciará uns seguranças que estarão dentro do bar como clientes. Eu apareço. Converso com Amadeu e desapareço. Se aquela mulher que anda grudado no senhor estiver lá, já sabe: o pau vai quebrar. O senhor deixará a cidade e terá que arrumar emprego como eunuco naqueles haréns árabes ou se quiser, virar baitola e começar a dar o rabo para pagar o aluguel daquele muquifo que chama de casa.
– Está bem. Como faço para saber quem é você. Estou aqui de costa enquanto você fala comigo. Não sei nada sobre você.
– Sabe o suficiente para marcar o encontro amanhã e por favor, não vai dizer nada para o Amadeu. Ele pode ter um treco. Vou chegar de surpresa. Sentar-me-ei com ele, prosearei e sairei sem ser notada. Se encarregue de que isso seja possível. Ah! Lá pelas 18h30 o senhor receberá uma mensagem com uma foto minha para não ficar ansioso também.
– Explique-me por que ele fica falando de lingerie que o persegue. Ele me disse que tem uma mulher dentro do copo dançando para ele. O que sabe disso?
– Existem coisas intimas entre um casal que não devemos falar para ninguém. Se quiséssemos que o mundo soubesse, filmaríamos e divulgaríamos gratuitamente na internet. Se tem uma coisa que Amadeu não é, é ser exibicionista. O meu poeta das estrelas roubaria o fogo dos deuses para acender o meu coração. O senhor já foi capaz de fazer isso por uma mulher, ou melhor, noiva? Acho que não. Se tivesse feito não seria chifrudo. Se contente com seus desejos e se ocupe em mantê-los dentro da cueca, porque se ficar se assanhando para os lados da arquiteta, é capaz do pai dela mandar o grão-vizir fazer o senhor comer seus testículos. Fica a dica. Boa noite! Espere cinco minutos e pode se virar e seguir o seu caminho e mandar o relatório para a sua amada de olhos tentadores que mudam de cor quando está do seu lado. Não se esqueça que eu sei muito mais do que o senhor imagina.
Enquanto Tarsila se afastava, Márcio ficou ali sentado. Não ousou virar-se, pois sabia que na praça deveria ter amigos dela, e na certeza, o agrediria. Esperou o tempo marcado e quando se levantou, observou que havia um papel pendurado no galho de uma árvore agradecendo-o pela oportunidade dela poder deixar, mesmo que por poucas horas, o anonimato e rever, tranquilamente o seu grande amor. Depois desse pequeno texto, um desenho de uma Rainha Preta e do lado um T gráfico.
Pegou o papel, dobrando-o e colocando no bolso. Lembrou-se de Amadeu dormindo num daqueles bancos com a carta dela no bolso de trás da calça. Com esse pensamento, Marcio resolveu voltar para casa a pé. O céu estava com um belíssimo estrelado, o convidando a retornar lentamente ao seu apartamento. No trajeto ficou pensando no Amadeu poeta, escrevendo versos para a sua amada e de repente ela some. Embora não tivesse visto a mulher, alguma coisa na voz dela não lhe era estranho. “Mas o quê?”, ficou com essa pergunta a lhe incomodar por dois quarteirões.
Tirou novamente o papel do bolso e viu que havia algo escrito no verso. “Amadeu nunca foi um homem. Foi um semideus que os deuses me presentearam. Eu sempre sonhei em encontrar um amor como aquele que vira emanar dos olhos de meus pais. Mas aí parece que o lado sombrio dos homens que ainda reina entre os deuses, enviou um tal de Jovelino para tingir de negrume lodoso esse desejo que encontrei nos braços de um belo ser que, antes de ser homem, é uma digníssima alma. Uma pena que não está dando conta de tanto amor que tem dentro de si num mundo repleto de maldades. Tente cuidar dele para mim, por favor, meu caro jornalista. Eu sei que ele o adora. Me falaram que outro dia, ele teve uma crise e só se acalmou depois que o senhor apareceu”. No lugar da assinatura, havia apenas um micro tabuleiro de xadrez.
Assim que terminou de ler o recado, ouviu som indicando que havia recebido uma mensagem. Ao abri-la viu que era de Amadeu. “Hoje o amigo me deu os canos. Espero que não esteja enfronhado com a dona do mundo. A miss xerife. A gestora dos planos dourados do doutor Jovelino. Eita nome feio que esse senhor tem. Do amigo… Amadeu. Amanhã não quero desculpas. Vamos finalizar a partida. Te ofereço o empate”.
Márcio apenas deu um ok e o reenviou no corpo mesmo da mensagem. E quando ia colocar o aparelho no bolso escutou uma chamada. Ao olhar no visor, viu quem estava chamando. Ignorou. Mas logo veio outra mensagem, dizendo-lhe “Atenda essa porra de telefone caralho. Preciso falar com você”. No lugar do nome havia uma Rainha branca. Assim que terminou de ler, recebeu outra chamada do mesmo número. Resolveu atender, pois sabia que Angélica não iria deixá-lo em paz e se não falasse com ela, era capaz de chegar em casa e dar com ela esperando na porta do prédio.
– Alô! O que a senhora quer comigo? Eu já não disse que mandarei o relatório até amanhã cedo? E que linguajar chulo é esse?
– Eu sabia que a única forma de chamar a sua atenção é fazendo coisas que você nunca espera que eu faça. Boa noite. Preciso falar com você ainda hoje.
– Sem chances! Já fui humilhado o dia todo por você e sua gente. Apanhei no rosto e me esforcei para não revidar. Não o fiz por conta do dinheiro que tem, mas porque aprendi a nunca reagir. Quem nos bate quer nos levar para o degrau de baixo da dignidade humana onde a pessoa está residindo.
– Gostei do que falou e espero que isso não se aplica a minha pessoa. Mas onde o senhor está? Vou lhe pegar.
– Em lugar nenhum!
Ao dar-lhe essa resposta, desligou o telefone. Ocupou-se em mudar a rota. Achando que Angélica sabia mais ou menos o trajeto que ele fazia sempre por ser metódico. Então pensou em entrar pela rua de seu apartamento no sentido contrário ao que sempre fazia. Diminuiu a passada, pois se a mulher cismasse de ficar-lhe esperando na porta do prédio, provavelmente desistiria.
Quando faltava umas dez quadras para chegar em casa, Márcio percebeu que poderia estar sendo seguido. “Será que aquela doida da Tarsila mandou os amigos me perseguirem para ver se eu ia para casa mesmo ou ia ao bar dar com a língua nos dentes!” Assim que terminou esse pensamento o carro lhe fechou a frente quando ia atravessar a rua. Angélica desceu do carro e lhe disse em tom imperativo.
– Quer entrar no carro por favor, senhor Márcio!
– Caralho! Porra! Como conseguiu me achar?
– GPS e mais um punhado de dinheiro na conta de pessoas sem escrúpulos.