Sobras de um amor…

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Enquanto Angélica se preparava para a reunião com Márcio, Rosângela aproveitou para conversar e conhecer um pouco mais sobre o repórter que vivia fuçando a vida de Amadeu e levando descontrole para o seu casamento com a arquiteta. De chofre, ela lhe perguntou:

– O senhor é ativista?

– Sou o quê?

– Perguntei se o senhor é ativista?

– Sou jornalista e escrevo sobre a verdade dos fatos, para ver se as pessoas deixam de viver de ilusões e não se viciarem em suas próprias mentiras.

– Não lhe perguntei sobre a sua profissão. Eu sei que o senhor faz e sobre mentiras, creio que sabe muito bem esconder as próprias mazelas que o envergonham, bem como seus familiares.

Márcio ficou surpreso com aquela forma de falar de Rosângela. Parecia um misto de agressão com revelação ou querendo atirar pedra para ver se ele jogava sobre ela todo um descontrole que prometeu nunca mais deixar dominá-lo. “ – Não sei do que a senhora está falando!”

– O senhor é preto! Usa sua atividade para lutar pela causa dos seus semelhantes de cor e infortúnio?

– Ah! Agora entendi. Deixe-me ver como vou responder essa pergunta capciosa. Pois se a senhora tem a formação mesmo que sua esposa disse ter, então sabe muito mais sobre a minha pessoa do que eu possa imaginar. Sendo assim, creio que a questão que me colocas diz respeito aos vícios sociais que usurpam as virtudes humanas. Sendo assim, eu posso falar, berrar, escrever, militar ou sei lá o que você preferir, todavia, uma legislação não molda caráter, do ponto de vista ético e moral, de uma pessoa, pois tudo isso recebemos do berço, seja ele instalado numa palafita, num barraco, em uma mansão, ou num apartamento como esse que a senhora divide com a sua esposa.

– Sou professora-doutora na universidade e compreendo bem onde o senhor pretende chegar. Entretanto, é muito romantizado para os tempos em que vivemos, nos quais somos avaliados pela tonalidade de nossa pele, antes mesmo que possamos nos apresentar enquanto indivíduos.

– Tenho isso bem claro. Afinal a cor da minha pele é preta e antes que eu chegue em algum lugar ela já está lá na consciência daqueles que vão me receber. Então a sentença já foi dada a meu respeito antes mesmo de ouvirem a minha voz. A problemática, é como mudar isso? Não sou panfletário de nada. Não defendo bandeira alguma, pois se me fechar em bandeiras, vou perder a noção da totalidade e posso ferir pessoas que convivem comigo. O racismo não atinge somente o preto, mas também o branco que convive com o preto em harmonia e em amor, como a senhora e sua esposa. Não existe coisa pior do que a pessoa tentar se justificar como sendo não racista, dizendo que tem até um amigo preto. Penso que não há mais nada homofóbico do que externar que se tem uma amiga homossexual. Eu do meu lado, primo sempre pela forma direta: eu tenho amigos, podem não ser muitos, mas os que tenho, estão comigo. Não me emprestam guarda-chuvas quando estou me molhando debaixo dum tremendo temporal. Eles ficam na chuva comigo e não me julgam. Depois que o temporal passar, todos vamos conversar.

– Gostei de sua eloquência, mas não passa disso. Mera verborragia que não mudará a situação dos descendentes de escravos e pelo visto vai demorar, pois pessoas como o senhor que tem uma voz se recusa a usá-la em nossa causa.

– Acho que a senhora, a exemplo daqueles que nos sentenciam pela tonalidade da pele, comete o mesmo equívoco. Está falando a partir do achismo e de uma conversa amistosa que estamos tendo. Não me julgues sem me conhecer. Não ser militante do que quer que seja, significa que eu seja alienado. Não tem um dia que eu não acorde que eu não me veja no espelho. Nasci preto, vou morrer preto, mas não tenho nenhum pé de cabra para abrir a consciência de um racista que aprendeu desde o berço que se achar melhor do que seus semelhantes pela cor da pele e pelo saldo da conta bancária de seus pais.

Quando Rosângela ia responder, Angélica apareceu pronta para o café. Mais produzida do que de costume. Márcio que já tinha visto muita coisa pelas transparências, olhou direto no olho da arquiteta e a antropóloga lhe lançou um olhar, como quem quer saber se o repórter quer falar de Amadeu ou de algo mais. Claro que o dragão do ciúme e da maldade encheu a cabeça da esposa de Angélica de turvos pensamentos.

Radiante, sem saber direito por qual motivo, Angélica direcionou a Márcio um sorriso dizendo-lhe: – “Vamos às novidades. O senhor pode nos falar durante o café. Eu e minha esposa não guardamos segredos. E se o assunto é sobre meu irmão, então diz respeito a nós duas. Não é Rosângela?”.

A antropóloga não lhe disse nada. Evidenciando que já desconfiava o motivo daquela alegria repentina, pois Márcio não tinha revelado nada sobre o irmão. Então só podia ser uma coisa. Mas optou por ficar em silêncio.

Durante o café, Márcio, desconfiado das intenções de Rosângela optou por reproduzir apenas o que havia informado pelo e-mail. Ao invés de falar das conclusões que chegara enquanto se preparava para o encontro com a arquiteta, deu corda para que a esposa dela falasse de seu trabalho, do seu ativismo. Fingiu se interessar pelas causas que conhecia, mas sabia que o buraco era mais embaixo.

Rosângela, empolgada porque falava de si, usando muitas vezes os superlativos e o primeiro pronome: “eu”, contou até o projeto de pesquisa que iria desenvolver numa universidade da Alemanha que, logo depois poderia lhe valer a chefia do departamento de sua universidade, inclusive num futuro não muito distante chegar a ser a primeira reitora negra daquela importante instituição de ensino do país.

No meio da exposição de Rosângela, Angélica percebeu que Márcio tinha mais para dizer, contudo, optou por não falar na frente da esposa dela. Por algum motivo, o repórter se calou. Terminada refeição, a arquiteta olhou bem no olho do jornalista, pegando-lhe na mão, dizendo:

– Márcio! Tenho que ir para o escritório. Se você quiser lhe dou uma carona até a sua casa. Sei que você deve ter muito trabalho para publicar no domingo em seu jornal. Então acho melhor não perder tempo com discussões sobre ativismos disso e daquilo.

A arquiteta disse isso olhando diretamente para a esposa que entendeu o recado e Márcio também. Para completar a martelada no ataúde onde a esposa deveria colocar seu ego, Angélica disse ao repórter.

– Amanhã vou mandar a servente do escritório fazer uma faxina em seu apartamento. E não aceita não como desculpas. Faz parte do nosso acordo profissional. Como poderá escrever a matéria sobre meu irmão, se o seu local de trabalho não está adequadamente limpo.

Rosângela não poderia suportar aquilo. Levantou-se despedindo de Márcio, dizendo:

– Quando eu voltar da Alemanha apareça em minha sala na Universidade. Acho que terei novidade para o senhor. Afinal, os governos brasileiro e alemão quem bancarão minha estadia na Europa, então preciso dar uma resposta aos cidadãos que pagam seus impostos para manter a nossa educação e instituições de ensino das quais o senhor se beneficiou.

Angélica pediu à Márcio para esperá-la na sala, enquanto fazia a higiene bucal. O repórter, ao se sentar na mesma poltrona, só escutou sons e tons ríspidos vindos do quarto. “Obviamente as duas estão quebrando o pau. Duas com gênios difíceis. Uma mandona e a outra com o ego maior do que esse prédio. Só podia sair mesmo confusão”, pensou Márcio.

O bate-boca durou uns dez minutos. E tudo cessou. Depois de cinco minutos, Angélica voltou e Márcio, todo cuidadoso, olhou para ela, tentando lhe sondar o humor. Queria saber se estava irritada ou se podia ir com ela até as nuvens. Na dúvida, ficou em silêncio. Seguindo-a quando está lhe chamou. Antes de entrarem no elevador, a arquiteta disse para a esposa.

– A noite continuamos a nossa conversa. Tenha um ótimo dia de trabalho!

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