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No horário exato, o celular chamou Márcio para a vida. Acordou ainda meio anuviado, com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, porém, com uma ressaca bem leve. Com essas sensações, foi até a cozinha preparou um chá de carqueja. Acreditava que o que havia sobrado dentro de si, seria limpado por aquele misto de bebida com medicamento balsâmico deveria ser ingrido antes de qualquer coisa. Enquanto o chá ficava pronto, o repórter pensava que roupa iria usar para o café da manhã. Nunca se preocupara antes porque não havia nada de interessante em sua existência para usar um manequim diferente do corriqueiro: calça jeans, sapato preto – não gostava de variar de cores, mas também tinha apenas dois pares e um de tênis que quase nunca utilizava – e camisa polo. Tinha dezenas delas do mesmo modelo, variando apenas as cores.
“Meus Deus do céu! Não tenho roupa alguma”, pensou consigo mesmo ao observar que uma das calças estava fora de serviço. Abriu o guarda-roupa e se espantou com o que viu. Não havia nada que pudesse usar de forma coerente naquela manhã durante o café com a irmã de Amadeu. “Terei que improvisar. Tomara que dê certo!”. Colocou tudo sobre a cama para ver se combinava alguma coisa ou ficaria muito desproporcional. “Fazer o quê? Vai ser assim mesmo. Até porque é apenas um café e depois eu voltarei para casa”.
Tomou banho como se estivesse participando de um descarrego para que a água levasse embora o restinho de ressaca da bebedeira da noite anterior. Sem saber o porquê da animação, estaca com mil pensamentos que não se encontravam em lugar nenhum. Poderia levá-lo ao céu para ter uma conversa com os querubins, ou ao bosque e falar com os pássaros ou até mesmo dizer ao Sol que ele e a Lua formavam um belo casal. Mas do nada, pensou no jogo de xadrez e começou a fazer a conexão com o que Amadeu vinha lhe dizendo.
Recordou que Angélica lhe havia dito que não era racista e que a esposa era uma antropóloga negra, portanto, não cabia dentro dela esse sentimento. “Será que a tal mulher que abandonou Amadeu também era ou é preta?”, se perguntou baixinho Márcio. “Não pode ser. Se assim fosse ele teria me dito ou feito alguma alusão a isso, justamente por eu ser negro”. O jornalista voltou à realidade ao escutar o som do celular indicando que havia recebido uma mensagem. Antes mesmo de abri-la, novamente houve repetição do mesmo sinal. Então haviam duas mensagens.
Saiu do banheiro completamente nu e foi ler os recados. O primeiro dizia que era para ele deixar de ser fujão e deveria aparecer no mesmo local de sempre. Queria saber como foi o encontro com a chefona da família. No final havia apenas uma peça de xadrez: um Rei branco. Márcio entendeu de quem se tratava e respondeu que ainda naquele dia conversariam e desta vez queria respostas às suas afirmativas e perguntas. Na segunda mensagem, mais curta, porém, também em forma imperativa. “Senhor Márcio, não se esqueça do nosso encontro hoje à noite na Praça do bilhete”. No lugar onde deveria ter um nome ou uma letra como da outra vez, havia apenas uma peça do jogo de xadrez. Era uma Rainha preta.
Essa segunda informação acertou em cheio o cérebro do repórter que ia ter com Amadeu antes de falar com a mulher que não aparecia, mas indicava saber de muitas coisas. Não faria pergunta para o amigo, mas já narraria toda a história e que havia finalmente, depois de muita bebedeira, entendido a cabeça dele e o que poderia tê-lo levado ao ponto de entorpecimento em que vivia. De alguma forma, manteve relacionamento com essa mulher, mas não pode seguir em frente e provavelmente um dos fatores pode ter sido a etnia dela. “Será isso mesmo?”, pensou o jornalista. “Se for, acho que o café da manhã será muito mais do que uma comensalidade entre três pessoas”, disse para si mesmo, como para ter certeza do que elucubrava.
Tomou o chá, aguardou uns minutos para saber qual seria a reação do mesmo em seu organismo. Sabia que alguma coisa aconteceria. De fato, ao chegar ao local apropriado, a bebida acabou limpando tudo o que encontrou pela frente e Márcio voltou ao banheiro. Desta vez não para se ajoelhar, mas para se sentar no trono. Ao término, se banhou novamente e terminou de se trocar. Achava que Angélica enviaria mensagem dizendo que o aguardava, mas o celular ficou em silêncio o tempo todo, inclusive durante o trajeto de seu apartamento ao da irmã de Amadeu. Ele fez o caminho todo a pé, já que tinha tempo hábil. Deixara seu prédio faltavam 15 minutos para as sete. Vestia um jeans preto, uma camiseta branca que achou, sem detalhe algum e pegou um blazer azul escuro que trouxera de sua cidade sem saber por que motivo e resolveu usar o tênis preto que quase nunca saia do armário.
Quando chegou ao local, ficou assustado com o que viu. Uma construção imponente. Sabia que o edifício estava sendo erguido, mas como não era a sua área no jornal, nem lia o que saia sobre aquele imóvel que agora estava pronto e imponente apresentando todo o dinheiro que seus moradores possuíam. Não tinha porteiro. Apenas um portão que parecia ser revestido de chumbo e um interruptor eletrônico que lhe solicitou o número do apartamento que desejava ingressar. Ao acionar o mecanismo, uma voz pediu para digitar o número do CPF. “Que coisa de doido. Para que essa porra toda?”, indagou mentalmente o visitante.
Seguiu o protocolo e escutou uma voz dizendo: “aguarde!” Novamente a mesma voz pediu o número do RG. “Mas que porra é essa? Esse povo está ficando maluco. Tanto dinheiro para encher o cérebro de porcaria e gastá-lo com essa besteirol todo!”. Olhou para o relógio e viu que estava adiantado para o encontro. Acabou de digitar os números e ficou ali esperando. De repente escutou uma voz feminina. “O senhor pode subir. O elevador o está aguardando!”
Dentro do cubículo, que mais parecia uma sala, Márcio foi pensando na noite anterior quando esteve com Angélica em seu prédio. Lembrou-se do corte na mão. Realmente foi mais um susto, pois havia apenas sinal do ferimento que precisou ser coberto antes de sair de casa. Mas nada que o atrapalhasse a participar do café com a irmã de Amadeu.
Ao abrir a porta do elevador, o jornalista percebeu que estava no meio do apartamento de Angélica e uma mulher bem vestida, tendo aproximadamente 1,60 e com a cor da pele pouca coisa mais clara que a sua, o aguardava. Se a anfitriã não tivesse lhe falado que sua esposa era preta, poderia tê-la confundido. E aí seria pior. Rosângela se apresentou com um aperto de mão firme, como quem quer delimitar o território, dizendo que quem mandava ali era ela. A mulher da arquiteta o encaminhou para a uma poltrona na sala, dizendo que a esposa ainda não havia acordado.
– Estranho! Minha mulher sempre acorda cedo, às vezes, até mesmo antes do que eu. Hoje, não sei o que aconteceu e Angélica ainda não acordou. Sei que ela marcou com o senhor às 8h e não costuma se atrasar. Vou acordá-la.
– Por favor! Não faça isso! Acho que fui eu quem cheguei cedo demais. Afinal ainda não são oito horas. Deixe-a acordar do mesmo jeito de sempre. Não precisa mudar a rotina porque eu estou aqui.
– O senhor é quem sabe. Vou acabar de preparar a mesa para o nosso café.
Assim que Rosângela terminou de falar e, enquanto se encaminhava para o local onde o trio se alimentaria, Angélica apareceu na porta do quarto do jeito que estava quando foi dormir. Vestida apenas com uma camiseta gigante e sem nada por baixo. Ela estava de costas para uma janela pela qual o sol entrava, fazendo com que o seu corpo fosse todo delineado pela claridade. Márcio que estava na poltrona que dava direto para o corredor, viu muito mais do que imaginava enxergar naquela manhã.
A cena não durou mais do que poucos segundos. A arquiteta percebeu que mostrou mais do que devia ao visitante. Voltou correndo para o quarto gritando o nome de Rosângela. A esposa a atendeu prontamente.
No quarto perguntou, entre assustada, nervosa e envergonhada. “- Como ele entrou aqui?”
– Pela porta do elevador. De que jeito ele chegaria à sala? Voando?
– Que horas são?
– Faltam 10 minutos para as oito horas.
– Por que não deixou ele lá fora esperando até às 8h?
– Por que você não me disse nada. Você faz das suas e agora quer dividir as consequências ruins comigo. Se ele viu o que essa camiseta timidamente esconde, deve estar lá na sala com o pau quase na cabeça.
Rosângela disse isso e saiu dando gargalhadas, completando. “- Ainda bem que amanhã estou indo para a Alemanha e, se tudo der certo, não volto tão cedo. Aí você não precisará mais usar essas camisetas. Poderá ficar peladona nos braços dele. Se é que já não ficou!”
Angélica optou pelo silêncio. Discutir ali não seria a melhor opção. A questão já havia sido conversada na noite anterior e tudo havia ficado mais ou menos resolvido. Contudo, a noite pretendia ter uma conversa séria, franca e aberta com Rosângela, inclusive sobre dinheiro, segurança e moradia para ela na Alemanha. Colocou rapidamente uma bermuda e uma blusa escura e foi falar rapidinho com o visitante.
– Senhor Márcio, me desculpe por ter perdido a hora. Tomarei um banho ligeiro e logo venho ter com o senhor e, durante o café me dirá quais as novidades. Espero que as tenha aos montes.
– Tenho e não tenho. Pois creio que sejam apenas conjecturas minhas. Mas vai lá. Eu a aguardo aqui. Não precisa pressa. Eu tenho o dia todo!
– Mas eu não. A vida é urgente. Por isso vivê-la é preciosíssimo.