Sobras de um amor…

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Diante do olhar intimidatório de Márcio, Angélica, que pela manhã se colocava como dona da situação, ali no apartamento, parecia um animal acuado. Desviou o seu olhar para todos os lados do cômodo, fixando-o num quadro com uma bela paisagem com a seguinte observação em destaque: “A vida é uma poesia. Que eu saiba rimá-la com a beleza de minha alma”.

Talvez inspirada pelo que leu no quadro, a “madame”, conforme o jornalista se referia a ela, se sentiu mais serena e pensou em como iniciar aquela conversa que lhe era tão importante, pois poderia mudar os rumos da situação. Então, sem qualquer rococó disse: “- Amadeu é meu irmão! Preciso trazê-lo de volta à família!”

Márcio olhou estupefato para Angélica. Imaginava que ela fosse esposa, ex-noiva, mas jamais que pudesse ter um grau de parentesco sanguíneo com aquele destrambelhado que tentava entrevistar fazia semanas e o máximo que conseguia eram conversas vagas e porres homéricos, sem que no final encontrasse o trono do Minotauro que parecia estar dentro do ser Amadeu. “- E daí?”, perguntou o jornalista de forma sarcástica.

– E daí que antes deu fazer uma solicitação ao senhor, quero lhe pedir desculpas pelo transtorno que lhe causei hoje de manhã e ontem a noite. Temia que a vida do meu irmão fosse exposta em suas reportagens e ele ficasse mais arredio e indefeso.

– Do teu irmão ou de sua família? Sim! Por que pelo jeito que fui recebido hoje pela manhã foi como se eu fosse um zé ninguém e a senhora, com toda a sua empáfia, mandasse e desmandasse no mundo. Fui humilhado e ofendido. Recebi umas cusparadas do meu chefe, ameaçado de execução sumária. E a madame acha que um pedido de desculpas resolve tudo? Não!

– Talvez se eu lhe contar um pouco das ocorrências que levaram Amadeu a ficar nessa situação, pode ser que o senhor me compreenda. Mas de qualquer forma, foi bom conversar com o senhor. Boa noite!

Quando Angélica se levantava para ir embora, Márcio pediu que lhe contasse a história e que não iria publicar nada, a não ser que ela o autorizasse e por escrito. Já que parecia que vivia um drama familiar que dinheiro nenhum no mundo iria resolver e nem mesmo uma possível matéria ou uma série delas.

– Tudo bem, vou resumir tudo para não tomar o seu tempo.

– Você não quer tomar água ou até mesmo uma dose daquele uísque? Não se importar se eu tomar?

– Não quero beber nada, exceto um copo d’agua e quanto ao uísque, o senhor pode tomar o quanto quiser. Eu já conheço a qualidade do produto e sinceramente não me agrada em nada!

Márcio foi a cozinha, voltando com um copo cheio de uísque e uma garrafa d’água e outro copo numa bandeja. Depositou sobre a mesa central e aguardou Angélica se servir. Assim que terminou, ela disse ao repórter: “ – Ele é dois anos mais velho do que eu e tinha tudo para ser o centro das atenções. Foi para a Universidade, desistiu de dois cursos e aí meu pai se irritou e fez ele se fixar em Administração. Depois de muito relutar, concluiu o curso e quando terminou entregou o diploma para o meu pai e saiu de casa. Minha mãe ficou por conta, mas descobriu que ele estava morando numa edícula num bairro aqui da cidade”.

– Um belo dia, ela saiu de casa me dizendo que ia trazer o Amadeu de volta. Não o aceitava naquelas condições. Mas quando retornou sem ele, perguntei onde estava o meu irmão. Ela respondeu que tinha ficado no mesmo lugar, mas aceitou que ela alugasse um apartamento só até ele arrumar um emprego, pois não queria nada e nem ver a cara do nosso pai.

– Nada de mais nessa história. Eu conheço milhares e nenhuma delas me motivaria a escrever nada sobre os participantes, pois todos os dias encontramos pessoas nas ruas da cidade, esmolando por vários fatores, se entregando a todos os tipos de vícios. Mas o seu irmão me chamou a atenção, por que não me pareceu alguém largado na rua, que havia saído de casa por briga com os familiares. Reparei num detalhe: o fato dele usar sempre as mesmas roupas e estas estarem sempre limpas.

– É mania dele. Quando comprava roupas, levava para casa diversas peças iguais. Aí começou a mandar fazê-las. Ele deve ter umas dez calças iguais e camisas e pares de sapato também. E também porque minha mãe paga para o porteiro do prédio para avisá-la quando Amadeu sai e aí ela vai lá e pega as roupas sujas e leva para lavá-las e as devolve no dia seguinte. Quando eu o encontro sóbrio, digo que sou eu quem as pego lá. Outro dia, o senhor deve ter me visto conversando com ele. Eu o vi passando por perto de nós e nos olhando.

– Desculpe-me. Curiosidade de jornalista, pois eu tentava fazer uma entrevista com ele, mas nunca conseguia. Ele marcava, mas quando eu chegava para a conversar ele invertia o foco dos nossos diálogos, parecendo que eu é quem estava sendo entrevistado, inclusive me fazendo pesadas acusações. Mas naquele dia eu não os reconheci. Senti que não me eram estranhos.

– Mas o que ele lhe falava era ou é verdade?

– Não tem a menor importância, dona Angélica.

A irmã de Amadeu e Márcio trocaram olhares. Ele tentando desviar o foco da pergunta que ela lhe fez e Angélica, apresentando aquele aspecto facial indicando que o jornalista deveria estar escondendo algo, mas não dela, mas de si mesmo.

– Mas ter manias, esquisitices como essas de mandar fazer roupas todas iguais, não faz com que as pessoas sejam desequilibradas ao ponto de beber até duas garrafas de uísque por dia. Deve haver algo a mais nessa história. E acho que é isso que motivou a senhora a vir aqui ontem como uma doidivanas e hoje tentar me foder na empresa.

– Sim e não! Até hoje depois do almoço, eu acreditava que deveria manter essa situação sob meu controle para proteger meus pais de novos escândalos. Já não basta meu irmão viver como um alucinado, ser o único homem que usa roupas iguais todos os dias. Imagina se o que o levou a ficar assim, sem saber que dia é ao certo, a espera de algo que não sabe se virá ou ficará naquele mundo em que ele construiu só para ele, resolve colocar a “boca no mundo” ?

– Mas o que fez com que a senhora mudasse de opinião, tão repentinamente?

– A possibilidade de que, se a história vir à tona pelo jornal, àquela que, acreditamos seja o motivo dos desarranjos mentais de Amadeu, apareça.

– Ela ou ele. Não é possível afirmar nada nesse mundo do pós-humano em que tudo o que é de manhã pode ser diferente a noite.

– Eu posso lhe afiançar que é uma mulher, mas só sei isso, pois ele me falou na última conversa séria que tivemos.

 

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