Sobras de um amor

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Dito e feito! Márcio comentou, em linhas gerais, aquelas narrativas e todos na redação se interessaram, inclusive para saber o final e quem sabe publicar num suplemento de domingo, em capítulos, para atiçar os leitores dos jornais, principalmente nesse último dia da semana em que ninguém quer saber de nada, apenas de festas, churrascos e repor as energias para segunda-feira.

Ao conversar sério com o redator, ganhou liberdade para escrever aquela história, em se preocupar com o cotidiano do jornal. Naquele dia, saiu mais cedo e, ao invés de ficar esperando Amadeu, foi sondá-lo através do garçom que sabia todos os passos que a personagem dava desde que chegava ao bar, ou pelo menos, seus passos metódicos como a vida dum filósofo antigo, do qual não lembrava o nome.

Rodolfo afirmou saber pouca coisa, apenas que um dia Amadeu chegou, pediu uma dose de uísque e enquanto a bebida era despejada no copo, este lhe tomou a garrafa, deixando uma nota de R$ 100, levando o litro para a mesa e ficou bebendo, lentamente, acelerando aos poucos, voltando ao ritmo anterior e depois olhava para todos os lados, gesticulando como se conversasse com alguém. De repente, levantou os olhos, viu o relógio e, ao sair, disse que levaria a garrafa. Quando o atendente ia lhe falar do troco, Amadeu disse que o pegaria no dia seguinte. “- Desde então, tem sido assim. Ele não sabe quanto custa o litro de uísque. Todos os dias deixa R$ 100 e vai para aquela mesa ali. Outro dia, tive que lhe dizer que não precisava pagar, porque o que tinha aqui de troco para receber dava para beber uma semana inteira. E tem sido assim, quando acaba, vou e lhe digo que amanhã ele precisa trazer dinheiro e começa tudo outra vez. Detalhe. Ele vem sempre com a mesma roupa, porém, tem cheiro de roupa limpa!”

O que o atendente lhe contou era muito pouco e sondar o que ia n’alma de Amadeu seria tarefa difícil, mas era um desafio que valia a pena. Disse a Rodolfo que quando o dinheiro acabasse não era para lhe falar nada. O jornal é quem pagaria as despesas dele. Márcio pediu a mesma bebida que havia consumido da última vez que ali estivera – até parecia já estar influenciado por Amadeu – ficou sentado no mesmo banco do outro dia.

No mesmo horário, Amadeu entrou repetindo a atitude do dia anterior, como se hoje e ontem fossem uma coisa só. Até a roupa era idêntica, exceto por um detalhe que Márcio não havia reparado, ele calçava meias com cores diferentes: uma era verde e outra era azul.

O repórter foi até a mesa e repetiu o gesto esperando ouvir as mesmas ofensas, todavia, elas ficaram só no início.

– Porra. Será que não posso mais tomar meus goles sem que você apareça como o fantasma de lingerie? Vai! Senta aí e não me aborreça! Quero tomar em paz e não vou te contar nada, sei que se contar pra você, distorcerá tudo mesmo. Então gosto de beber calado pra sentir as palavras de amor tocando meu paladar.

Amadeu repetiu os gestos do dia anterior e começou a falar que a moça sem nome lhe convidou para ir ao lançamento de um livro. “- Não posso ir, nem banho tomei, acabei de vir do trabalho correndo somente para saborear o aroma que emana de seu corpo quando passa por aqui”.

– Ainda mais agora que você está usando um perfume especial e eu cheirando a supermercado, ficarei deslocado, completou Amadeu.

Nas palavras de Amadeu, ela ficou assustada, porém lisonjeada com a poética do galanteio feito por ele. Queria passar mais tempo com ele, saber o que lhe ia na cabeça e de quebra, no espírito. De chofre ela lhe falou: “- Vamos, no caminho passamos numa farmácia e você compra um perfume e passa, ninguém vai saber e tem lojas que ficam abertas até às 22h, te compro uma camisa e você troca dentro da loja mesmo”.

Depois de muito resistir a ideia, Amadeu não conseguir ficar firme em sua posição com aqueles olhos cor de amêndoas escurecidos a lhe implorar companhia, mesmo porque ela sabia que ia ficar sozinha no meio daquele monte de gente dizendo um amontoado de coisas que não entendia, pois gostava de livros para lê-los e não para explicá-los, isso era coisa de gente pedante.

– Fui! Sabe como é, doutor? Ninguém resiste um perfume daqueles e um par de olhos divinos, inspiradores. Se um poeta os visse naquele começo de noite, iria compará-los as estrelas mais brilhantes do céu e os guiaria rumo a pátria do amor. Se é que ela existe! Bom! Também se não existe, o bom poeta a criou com palavras inspiradoras, fazendo com que os leitores se afoguem nas mais diversas garrafas em busca dela.

Márcio ficou impressionado como aquele misto de mendigo, pau d’água esquizofrênico e cheio de TOC sabia usar as palavras para expressar os mais diversos sentimentos. “Como podia acabar seus dias se afogando numa garrafa de uísque?”, pensou o repórter decidido em ajudá-lo de alguma forma.

– E como foi o lançamento do livro?

– Cheio de gente pedante, um horror! Todos queriam dizer que encontraram isso e aquilo. Eu disse que queria apenas ler o livro, passando momentos descontraídos com a leitura. Se o autor conseguisse me tirar do meu cotidiano, estava bom! Ai uns homens engravatados com roupas chiques me levaram até o sujeito que estava lançando aquele romance cheio de página e uma capa estranha. Falei com ele, mas sem ter lido a obra, ele destruiu toda a magia. Percebendo o meu desinteresse, elegantemente me lançou um desafio: ler o romance e escrever uma crítica sobre o que eu havia lido e deixar ali na livraria que ele pegaria depois. Aceitei o desafio.

Márcio percebeu que Amadeu começou a ficar mais agitado, falante e as mãos se mexiam em demasia e seus olhos paravam como de crocodilo, buscando alguma coisa no horizonte e depois tornou a falar.

– Acabei ficando até o final, ganhei o livro e a companhia de minha musa que me pediu para acompanhá-la até a sua casa. Disse-lhe eu que não tinha carro. Ela me falou que não era isso que importava e sim a companhia. Quando estávamos saindo da livraria, o escritor se ofereceu para nos levar até onde ela morava. Olhando-a afirmei que ela poderia ir. Eu caminharia até minha casa, mas a diva me sussurrou no ouvido que só iria se fosse comigo.

Amadeu falou que se sentou no banco da frene e sua acompanhante no banco de trás, guiando o caminho. Chegaram no imóvel, desceram e o motorista seguiu o seu trajeto. O repositor fez menção de ir embora, mas foi convidado a entrar e comerem alguma coisa porque não haviam jantado.

– Não poderia recusar, estava com “o estômago nas costas”.

– Vocês jantaram e depois foram pra cama?

– Caralho! Vocês acham que é só isso que uma mulher tem para oferecer a um homem: sua genitália molhada. Cacete, elas gostam de ser encontradas, mas não se descobre uma verdadeira mulher na primeira noite. É preciso paciência, verificar o que lhe vai n’alma, na sua essência, e isso elas nunca nos contam. Deixam pistas, mas nunca vão lhe dizer que gostaram do jeito que você as olhou, que a alça do sutiã foi notada e você não ficou toda hora olhando. Coisas simples que a maioria dos homens não sabe observar, pois está mais preocupada em deitar sobre elas e empurrar seus sexos vaginas adentro.

Márcio ficou espantando como o esquizofrênico sabia mais sobre mulheres do que aqueles colegas dos tempos de faculdade e de redação que viviam dizendo que comiam mulheres diferentes todas as semanas.

Amadeu encheu o copo, levantando o olhar que alcançou o relógio, engolindo todo o conteúdo que havia no recipiente, levantou apressado, dizendo ao colega: “até amanhã doutor, passei da minha hora. Cacete! Não posso me atrasar!”

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