Sobras de um amor…

20

 

         Feito uma mosca de bar ávida por um melaço ou carne putrefata, o repórter chegou ao boteco, pedindo uma garrafa de conhaque, caneta e papel. Os pedidos foram logo atendidos e Márcio rabiscou algumas coisas no bloco de anotações que o garçom lhe trouxera. Lógico que não poderia escrever tudo o que vinha à memória da carta-bilhete que havia retirado do bolso de Amadeu. Se fizesse isso, confessaria que tinha vasculhado o bolso do alucinado bêbado.

Optou então por um pequeno trecho: “É amor quando o frio na barriga cede espaço ao calor do coração. Quando o brilho das estrelas ilumina a alma e acende o fogo da paixão”. Terminou de escrever, destacou o papel do bloco e o colocou no bolso, chamando Rodolfo e lhe entregando o caderno.

Entre uma dose e outra, o jornalista criava e recriava as formas como poderia abordar Amadeu a partir do que escreveu, mas nenhuma delas parecia ser a maneira mais apropriada, já que seu interlocutor poderia veementemente rechaçar qualquer tipo de aproximação depois dessa entrevista.

Quando Márcio já havia consumido metade da garrafa, Amadeu entrou afoito no bar olhando para todos os lados, como quem tinha visto um fantasma e tentava desesperadamente fugir de seus olhares ameaçadores. Sentou-se à mesa de costume e, antes mesmo de pedir alguma coisa, Rodolfo colocou sobre a mesa a sua garrafa de uísque e o copo.

– Senhor Rodolfo, será que pode me trazer umas pedras de gelo feitas com água de coco? Disseram-me que tomar uísque com esse ingrediente evita ter dores de cabeça no dia seguinte. As minhas são horríveis, fazem com que eu fique  vendo coisas. Outro dia levantei e vi um sapo com cabeça de gente rindo e indo em minha direção. Foi horrível. Ele só parou de me olhar quando eu terminei a garrafa que tinha levado daqui.

Márcio e Rodolfo ficaram espantados, mas não o questionaram. O repórter observou que Amadeu trazia consigo um livro. Nunca tinha visto ele com nenhum objeto em mãos. Resolveu perguntar sobre o conteúdo do livro.

– Veja você mesmo, já que é tão curioso, repórter de merda! Enxerido, mexeriqueiro. Jornalistas são todos fofoqueiros, inventam um monte de coisas para fisgar o leitor, principalmente aqueles que se parecem com peixes de quinta qualidade, os carapicus!

Sem pretender demonstrar curiosidade, mas deixando claro que tudo o que vinha do parceiro era o seu interesse, abriu a primeira página, mas não viu nada escrito, nem título, nem autoria, apenas uma página em branco. Márcio manuseou umas vinte folhas e não viu nada impresso, mesmo tendo uma belíssima encadernação semelhante à dos livros lançados pelas editoras.

– O que é isso, Amadeu? Está ficando maluco! Andar com um livro que não tem nenhuma palavra escrita? O que você pretende com isso?

– Ora para quando eu chegar num lugar como esse e ter um chato como você querendo saber mais do que deve, para eu não ser indelicado, abro esse romance de páginas em branco e posso tomar meu uísque sossegado. Agora se você quiser dar um título à minha narrativa pode ser “Pega trouxa”.

Márcio não sabia o que dizer, mas de repente mexeu no bolso onde estava o bilhete, se levantando, foi ao balcão como quem vai pedir uma coisa, mas deixou cair perto do pé de Amadeu o bilhete que havia escrito e, ao ser chamado por Amadeu, fez de conta que não tivesse escutado e seguiu em frente.

Enquanto o repórter conversava amenidades com o garçom, pegando um copo contendo limão e sal, Amadeu abriu o bilhete e leu o que estava escrito. Achou muito estranho aquilo estar com o jornalista. Mexeu em seu bolso e sentiu que seu precioso tesouro estava ali intocável. “Mas se eu não o perdi, como ele pode escrever esse conteúdo?”. Intrigado, ficou aguardando o retorno de Márcio.

– O senhor pode me explicar o que é isso aqui? Caiu do seu bolso!

– Primeiramente, eu não dou a você o direito de ler aquilo que não lhe pertence. Portanto, não lhe devo satisfação sobre isso ou qualquer outra coisa qualquer. Afinal, o fofoqueiro sou eu, então eu que faço as perguntas aqui. Como se atreve a ler aquilo que não é seu?

– O doutor me desculpe, mas é que esse conteúdo não me é estranho. Por isso eu fiquei sem chão. Vamos esquecer isso e tome aqui o seu bilhete. Vamos tomar uma dose para pacificar esse entrevero?

– Só se você me disser por que o que está escrito nesse papel te chamou a atenção? Esse é um pequeno trecho de uma carta que pretendo enviar para uma pessoa que não me sai da cabeça. Eu a vi uma única vez, mas foi o suficiente para me deixar sem chão. Então, quem sabe a carta que vou lhe escrever me devolva o chão.

-Está bem, mas pode ser outro dia. Hoje não quero falar disso. Se eu tocar nesse assunto vai estragar o nosso drinque e eu, sinceramente, só quero as suas sinceras desculpas!

– Tudo bem! Mas eu vou lhe cobrar. Está me devendo está e olha, quando eu for te perguntar, não quero ver nenhum chilique e nem saídas intempestivas pela porta.

– Combinado doutor!

A dupla terminou a noite, cada um bebeu mais duas garrafas e, quando ambos, embriagados já pensavam em ir embora, Amadeu disse a Márcio.

– Vou te contar parte da história, desde que me prometa que não vai publicar nada no seu jornaleco. Pode ser?

O repórter fez anuência, parecendo que o teor etílico que havia sobre o seu cérebro havia arrefecido, o deixando mais atento ao que iria escutar da boca de Amadeu.

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